Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

As palavras, sempre as palavras

MEIO SÉCULO DE TV

Deonísio da Silva (*)

Aos que nos lêem na telinha do computador ou vêem o Observatório na televisão: vou dizer-lhes uma obviedade brutal. Ninguém sabe nada do futuro. Nem o que será do Brasil depois das eleições de 6 de outubro, nem o que será, digamos, daqui a meio século. Talvez por isso seja o futuro um grande negócio ? tanto no atacado, como demonstram as seguradoras e os presidenciáveis, como no varejo, de que é exemplo o folheto que me foi entregue por um desempregado há pouco num semáforo. "Problemas de impotência, financeiros, brigas do casal? Procure a professora X". Alguma intuição têm as cartomantes e assemelhadas para estabelecer elos de domínio conexo entre sexualidade, economia e paz familiar. Deixo como pequena nota à margem o fato de serem os que predizem e não os que dizem os docentes a receberem melhor remuneração. Por que será que toda cartomante é professora? Onde se formou? Quantos anos estudou? Terá feito concurso para exercer o seu ofício?

Pois essas lembranças me vêm porque entre minhas obsessões estão as efemérides, quase todas esquecidas da imprensa. Não aprendemos sequer o que nos ensinam as folhinhas católicas? Será que somente a Igreja deve lembrar os seus santos? E os nossos? Ou que outra designação tenham aqueles que fizeram por merecer que não nos esquecêssemos deles!

A televisão teve entre seus próceres alguns anônimos populares. Jorge Luís Borges inventou essa preciosidade estilística: os pequenos próceres. No começo, quando ainda estava no latim, o prócer era apenas uma ponta de viga, um barrote, algo que servia de sustentação. Passou depois a designar pessoas que se destacavam, sobretudo na política como a arte suprema de organizar ou reorganizar a sociedade. Lima Barreto anotou em Triste Fim de Policarpo Quaresma: "Há nos próceres republicanos uma necessidade extraordinária de serem gloriosos e não esquecidos pelo futuro".

Nossos próceres ou candidatos a próceres não saem da televisão. E, quem diria, quase todos eles são mais jovens do que ela, de que os brasileiros tomaram conhecimento em feiras realizadas durante a Segunda Guerra Mundial. Eram alemães os primeiros expositores que não mereceram sequer a certeza de um registro do que faziam no Brasil. A primeira documentação sobre a TV remonta à década de 1940, em evento realizado no antigo Museu da Arte de São Paulo. Dizem os cronistas que uma multidão acorreu à Rua Sete de Abril para ver na televisão um frade-cantor chamado José Mojica. Padres e letrados nos primeiros séculos do Brasil! Padres e letrados nos seguintes! A Igreja parece onipresente em tudo, sempre.

Princípio, meio e fim

A primeira televisão brasileira foi a Tupi, inaugurada em setembro de 1950. Talvez tenha sido no dia 18 de setembro que tudo começou. Era o canal 3. E o Brasil era o primeiro país da América Latina a ter televisão. Menos de meio século para chegar a Ratinho e Gugu Liberato. Crescemos e degringolamos bem depressa. Na nossa frente, apenas EUA, Inglaterra, Holanda, França. Esquecemos que foi no governo Getúlio Vargas que trouxemos a televisão. Também ela!

Havia em fins de 1950 cerca de 2.000 televisores. Estavam todos em São Paulo. Em 1951, este número saltou para 7.000, tendo chegado também ao Rio. Por que nenhum sino dobra por Bernardo Kocubej, pioneiro da indústria eletrônica no Brasil? Em 1935, ele trabalhava na Byington, montando kits importados de rádio. Alguns anos depois deixou a empresa e passou a fazer chassis para rádios. Em 1943, tendo fundado a Invictus, já montava rádios completos, à base de 15.000 aparelhos por mês. Com a experiência acumulada, a partir de 1950 foi montar televisores. Nascia ali o neologismo "televizinho", pois as televisões eram ainda um luxo acessível a poucos. Não demorou e surgiu um comercial que escancarava a vergonha de ser televizinho, apelava para a pressão dos filhos do televizinho, inferiorizados na casa do amigo do pai.

É difícil uma residência de classe média que não tenha hoje várias telas pela casa, somando-se as das televisões e dos computadores. E as invencíveis letras da Galáxia Gutenberg, que antes apenas legendavam imagens ou anunciavam coisas esquisitas nos intervalos, agora são a principal atração nas telas dos computadores.

Celebremos! O futuro chegou. Como sempre sem que ninguém o previsse! Aqueles que anunciaram desgraças como o fim do livro, por força da inarredável globalização da imagem, morreram antes da morte do livro. E ? suprema contradição de suas teorias ? precisaram escrever livros para anunciar o seu fim. O dos livros, não o deles. Mas eles foram primeiro. Felizmente. Não porque morreram. Mas porque o livro permaneceu. Mais do que o livro, a palavra. A ditadura da imagem, que se anunciava com força, não prevaleceu. Nossos jornais e revistas estão cheios de fotos. Nossas telas, cheias de imagens. Inclusive a telinha onde agora escrevemos para que vocês nos leiam e reescrevam nosso artigo a seu modo. Mas nenhuma dessas telas dispensou a palavra.

Celebremos! No princípio era o Verbo. No meio está sendo. E tudo indica que no fim também será.

(*) Escritor e professor da UFSCar, doutor em Letras pela USP; seus livros mais recentes são Os Guerreiros do Campo e A Vida Íntima das Palavras