TELEJORNALISMO
Paulo José Cunha (*)
Um dos grandes problemas do crescimento das corporações jornalísticas é a tendência a ir adotando um comportamento cada vez mais paquidérmico. Os reflexos ficam lentos, a capacidade de reagir aos estímulos vai diminuindo e a agilidade se afoga lentamente em toneladas de banha e burocracia. Como o crescimento normalmente implica novas instâncias de decisão, os procedimentos burocráticos e administrativos vão se sobrepondo ao interesse da rapidez que se exige de quem existe para produzir notícias.
Nos anos 80/90, em que trabalhei como repórter na Rede Globo de Brasília, a regra se confirmava a cada dia. Uma vez, por curiosidade, calculei o tempo médio que se levava desde o instante em que era tomada a decisão de enviar uma equipe para uma cobertura até o instante em que o carro saía da redação. Isto acontecia depois que o chefe da reportagem preenchia um papel com datas, assuntos, endereços e eventual autorização para abastecimento, depois de ter discutido a pauta com o repórter e obtido a anuência da chefia da redação; passando pelos procedimentos preliminares obrigatórios como os de os membros da equipe tomarem cada um seu copo d?água, beberem seu café, fumarem seu cigarro (na época ainda se fumava) e cumprirem com rigor o sagrado ritual do xixi e da gozação do torcedor do time vencedor sobre o torcedor do time derrotado na véspera, para depois passar pela assinatura de outro papel para o recebimento das fitas a serem gravadas, o carregamento do carro com câmera, luzes, microfones, baterias, rebatedores e o escambau até a paradinha final, na guarita, onde novo papel era assinado para, enfim, valentemente, nos dirigirmos ao local do crime.
Éramos muito ágeis, sim, pois conseguíamos cumprir todo o percurso dessa corrida de obstáculos em 25 minutos, no máximo. Mais uns 40 minutos até chegar ao local do incêndio e, com sorte, às vezes ainda pegávamos a imagem de alguma fumacinha. Juntando-se a tudo isso o fato de que as coletivas das autoridades, os incêndios e as quedas de aviões, por força do hábito, sempre esperavam a chegada da equipe da Globo, dava pro gasto. A lerdeza era tanta que, de brincadeira, dizíamos que se acontecesse um assalto na agência bancária que funciona(va) dentro do prédio da Globo, a equipe da Band chegaria antes da nossa…
Esta longa e curiosa introdução vem a propósito da excelente oportunidade perdida pela Rede Globo que, por pura sorte, foi colhida pelo atentado terrorista em Washington e Nova York e que culminou com a guerra contra o Afeganistão no instante em que entravam no ar as chamadas para O clone. A então nova novela das 8, de Glória Peres, teve sua primeira fase totalmente ambientada na cultura muçulmana, tema que assumia naquele instante, em todo o mundo, a cabeceira do noticiário em razão do fundamentalismo dos talibãs. A sorte presenteou a emissora dos Marinho com um baú enorme, cheio de ouro, incenso e mirra. O fato de maior repercussão no primeiro século do novo milênio poderia ser situado, comentado e discutido com uso de uma obra de ficção, em horário nobre, no conforto da audiência assegurada e reforçada pela atenção compulsória de todo o país.
Know-how na área não faltava à Globo, pois dera um banho quando aproveitou outra novela, O rei do gado, para discutir a questão das invasões de terras, os conflitos entre proprietários e invasores, o aspecto político da reforma agrária. Criou-se até um personagem inesquecível, o senador Caxias, cujo corpo foi "velado" na presença de Benedita da Silva e Eduardo Suplicy, dois senadores de verdade, que concordaram em se enfiar por dentro da ficção para carimbar com suas presenças a semelhança entre a trama e a realidade do campo.
No futuro, algum mestrando de Comunicação vai se debruçar sobre os capítulos de O clone para lamentar que a maior emissora latino-americana tenha desperdiçado tão singular e única oportunidade em sua história, preferindo uma saída simplória: a exploração de detalhes da cultura muçulmana que atraem a atenção pelo contraste entre a extravagância de seus hábitos e costumes e a cultura da audiência brasileira, calcada na boa e velha civilização cristã ocidental. Com a agravante de que sequer conseguiu ser fiel à cultura muçulmana, como bem comprovou a professora-doutora Zélia Leal, da Faculdade de Comunicação da UnB, que morou alguns anos no Marrocos e conhece aquilo ali não apenas de ler, mas de ver [ver remissão abaixo].
Seria exigir demais que a Globo tivesse a sensibilidade e a agilidade para aproveitar a novela do primetime para inserir dentro dela uma discussão séria e conseqüente sobre a questão palestina, as razões históricas da rivalidade, a disputa territorial, as motivações dos autores de atentados terroristas e o fundamentalismo religioso. Tudo misturado com a momentosa discussão da ética da clonagem humana, regada com boas doses da sensualidade das mulheres orientais, entre os véus diáfanos das danças e o odor dos incensos e – vamos lá, não sejamos tão intelectuais e chatos assim ? ao embalo de uma bela e lacrimosa história de amor que, afinal, ninguém é de ferro.
Aquele rapaz, autor da tese de mestrado, ia nadar de braçada. Mas, que diabo, é melhor não ter esperanças. Afinal, o estímulo no rabo do hipopótamo leva um tempão pra chegar ao cérebro do bicho. Nossa sorte é que, daqui a alguns anos, com muita calma e depois de fazer algumas pesquisas de mercado, o Aguinaldo Silva vai escrever uma novela em que umas taliboas muito boas vão lutar pelo direito de serem garotas de programa em Copacabana. E tamos conversados.
(*) Jornalista, pesquisador, professor de Telejornalismo, diretor do Centro de Produção de Cinema e Televisão da Universidade de Brasília. Este artigo é parte do projeto acadêmico “Telejornalismo em Close”, coluna semanal de análise de mídia distribuída por e-mail. Pedidos para <upj@persocom.com.br>