Saturday, 28 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

As teorias da notícia

OLHAR PORTUGUÊS

Sérgio Luiz Gadini (*)

O jornalismo português em análise de casos, Nelson Traquina, Ana Cabrera, Cristina Ponte, Rogério Santos, 333 pp., Editorial Caminho SA. Lisboa, 2001.

Coletânea de textos de autores portugueses, lançada recentemente em Lisboa, faz um percurso das principais teorias do jornalismo contemporâneo e apresenta ensaios sobre a cobertura periodística de fatos e problemas marcantes nos últimos anos. Esse é o propósito e conteúdo do livro O jornalismo português em análise de casos, publicado pela Editorial Caminho.

Dos quatro autores, jornalistas profissionais, professores universitários e pesquisadores da área, o mais conhecido deles no Brasil é Nelson Traquina, autor de vários títulos lançados sobre teorias do jornalismo, e que, coincidentemente, também está publicando outro livro pela Editora da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (RS), O estudo do Jornalismo no Século XX. O que interessa, entretanto, é discutir o que a coletânea de ensaios sobre o jornalismo propõe de pertinente e válido para quem estuda, trabalha ou pesquisa alguma coisa em comunicação, especialmente no campo jornalístico.

Para entender o contexto de que se fala, em Portugal o estudo de jornalismo é muito recente. O primeiro curso de Comunicação Social surgiu em 1979, cinco anos depois da queda do regime de Salazar, que marcou a história do país pela censura, controle político, econômico e militar durante quase cinco décadas. Mas, diferentemente do Brasil ? onde a polêmica em torno do reconhecimento profissional consegue estranhas adesões inclusive de pessoas que trabalham em veículos, espaços ou até escolas de Comunicação Social ? os estudos portugueses em jornalismo parecem estar conseguindo registrar importantes conquistas em poucas décadas ou anos. E aí é que a presente publicação adquire pertinência, em especial pelo fato de ilustrar situações da funcionalidade cotidiana do jornalismo, de forma analítica e questionando o próprio modo como são produzidas as notícias, tematizada nos vários ensaios editados.

No primeiro texto ? "As teorias das notícias: o estudo do jornalismo no século XX" ?,Nelson Traquina faz uma apreciação histórica e contextualizada das principais linhas de pensamento sobre o jornalismo ao longo do século passado. No segundo ensaio ("Práticas produtivas e relacionamento entre fontes e jornalistas"), o historiador e pesquisador em comunicação Rogério Santos discute o assunto de sua dissertação de mestrado. Ao integrar, metodologicamente, olhares sociológicos à compreensão das rotinas do jornalismo, o autor analisa a produção jornalística num ambiente de redação de um diário de Lisboa no início da década de 90. É aí que ele identifica a "forte presença das fontes oficiais, o acesso desigual ao campo jornalístico e a existência de constrangimentos organizacionais" na discussão do assunto.

Nos dois ensaios que se seguem, Traquina analisa a cobertura midiática do II Congresso dos Jornalistas ("O campo jornalístico e o II Congresso dos Jornalistas"), realizado em novembro de 1986, e apresenta estudo sobre a forma como os principais diários de circulação nacional noticiaram o surgimento da Aids no país ("O jornalismo português e a problemática VIH/SIDA"), entre os anos de 1981 e 1991.

O leitor encontra, na seqüência, um estudo feito pela historiadora e professora universitária Ana Cabrera sobre a construção discursiva da luta pela independência do Timor Leste, com base em notícias de jornal e televisão veiculadas no mês de novembro de 1991 ("Missão de Paz em Timor: o percurso de um pseudo-acontecimento"). No último ensaio, de autoria da jornalista e doutoranda em Comunicação Cristina Ponte, entra em pauta a tematização das drogas nos jornais impressos portugueses. O evento escolhido foi a cobertura do Dia D (27/1/97), além de dois meses de edições dos jornais analisados no ano de 1996, sobre a escolha que o governo socialista fez da droga como "inimigo público número um" (como ocorreu na eleição de 95).

É, contudo, o primeiro ensaio ? "Teorias das notícias" ? que merece uma leitura mais atenta, dada sua proposta. Nelson Traquina propõe uma leitura do jornalismo com base em cinco orientações que nortearam a historia da produção das notícias, com a seguinte caracterização: teoria do "espelho", teoria da ação social pessoal ou teoria do gatekeeper, teoria organizacional, teorias de ação política e as teorias da notícia como construção social, donde surgem a perspectiva de uma teoria estruturalista e a teoria interacionista. Traquina se detém, entretanto, nessa última abordagem do jornalismo no século 20.

Esse paradigma que compreende a notícia como construção social da realidade surge basicamente entre o fim dos anos 60 e o início da década de 70. O pressuposto é de que a notícia, na medida em que presentifica o acontecimento a que se remete, também o constrói e, assim, participa do processo de instituição (coletiva e contínua) da realidade social. Nas palavras do autor, "as notícias são o resultado de um processo de produção, definido como percepção, seleção e transformação de uma matéria-prima, os acontecimentos, num produto, as notícias".

Com base na reflexão desenvolvida por Gaye Tuchman (principalmente no livro News making: a study in the construction of reality", New York, The Free Press, 1978, ou, na versão espanhola, La producción de la noticia: estudio sobre la construcción de la realidad. Barcelona: Gustavo Gilli, 1983), Traquina lembra que a teoria interacionista, ou, pela aproximação conceitual, também conhecida como etnoconstrucionista, "encara o processo de produção das notícias como interativo, em que diversos agentes sociais exercem um papel ativo no processo de negociação constante".

Revisão da literatura

Para a teoria interacionista, "os jornalistas, confrontados com abundância de acontecimentos e escassez de tempo, lutando para impor ordem no espaço e ordem no tempo", acabam criando uma rotina de "previsibilidade" até para conseguir de fato cobrir os principais fatos considerados noticiáveis para a edição do dia ou da hora seguinte: é daí que surge a pertinência das "rotinas produtivas", bem como das necessárias "ordens" no tempo e no espaço.

A lógica da teoria interacionista reside, assim, na hipótese de que um determinado acontecimento pautado pelo campo jornalístico origina a notícia, na forma de um produto que "atribui" publicidade (não no sentido comercial, mas de tornar público) ou visibilidade à situação, e na mesma proporção "a notícia também constrói o acontecimento, porque é um produto elaborado que não pode deixar de refletir diversos aspectos do processo de produção" (p.88).

A reflexão é, de fato, oportuna e mais do que necessária. Aliás, talvez, mais válido ainda seria discutir o jornalismo ? para além da noção funcional e tecnicista que muitas vezes marca a imagem da profissão ? de um modo mais consistente, capaz de justificar que "agendar" o imaginário de milhões de pessoas, com notícias garimpadas entre fontes e entrevistas nem sempre de fácil disponibilidade e transparência, não é algo que pode ficar no limite do senso comum ou de meia dúzia de técnicas de redação.

Se por um lado "O jornalismo português em análise de casos" consegue dar um maior reconhecimento reflexivo e profissional ao campo, por outro lado não há como deixar de perceber, em especial no primeiro texto, que aborda as teorias das notícias, ou ao longo das várias páginas da bibliografia final, a ausência (proposital ou não) de qualquer referência a uma hipótese conceitual que busque compreender o jornalismo como forma singular de conhecimento humano, cotidianamente elaborado, que também vai intervir nas relações sociais da realidade. Até pela proximidade que essa abordagem tem com a via interacionista, a lacuna na discussão parece digna de lembrança.

Enfim, uma idéia do livro já se encontra no próprio texto de introdução: "Este livro remete para o estudo do jornalismo em dois sentidos: apresenta diferentes linhas de pesquisa na área e uma revisão de literatura sobre fontes e jornalistas." E também "contém um conjunto de estudos de caso sobre a cobertura jornalística de eventos e problemáticas no contexto português nos últimos anos". Para quem está na área, e acredita no potencial e no desafio do jornalismo, é uma importante sugestão de leitura.

(*) Jornalista, professor de Jornalismo da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG-PR); e-mail: <slgadini@uepg.br>