Friday, 27 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Augusto Nunes

ELEIÇÕES 2002

“?Eu renuncio ao debate?”, copyright No Mínino (www.nominimo.com.br), 10/8/02

“Em cada mil telespectadores, 999 provavelmente nem perceberam que, além da apresentadora Márcia Peltier, outros jornalistas participaram do debate promovido pela Bandeirantes. No estúdio, poucos metros à frente de Márcia e dos protagonistas, quatro profissionais compunham uma bancada de entrevistadores. Não parece, mas posso garantir que houve isso. Fiz parte do quarteto.

Para quem pretende acompanhar o que ocorre logo adiante, trata-se de um camarote especialíssimo. O campo de visão é excelente, contempla-se em close o vinco recém-surgido na testa, ouve-se até murmúrio de candidato. Para jornalistas dispostos a induzir políticos a debates de verdade, a discussões que exponham a cabeça de cada um, a revelações que permitam vislumbrar o que vem por aí, a bancada dos entrevistadores é apenas um mirante particularmente penoso.

Dali se contempla o Brasil cartorial, o país dos capítulos, artigos, parágrafos e incisos que tudo regulam sem colocar nada em ordem. Absolva-se tanto a Band quanto qualquer emissora que tente promover debates: os assessores vão às reuniões preliminares com o objetivo de evitar que haja confrontos esclarecedores, que réplicas e tréplicas fluam até a gestação da verdade. Os candidatos só aceitam postar-se no campo de batalha depois de certificar-se que a retirada, quando convier, estará garantida. Debates entre candidatos são lutas de boxe que suprimiram a possibilidade do nocaute.

Os responsáveis pela organização do evento – autores da proeza de juntar homens que gostariam de atravessar a campanha em monólogos no próprio horário eleitoral – foram claros ao formalizar o convite. Haveria um único bloco com participação dos jornalistas. Cada um dos quatro faria uma pergunta, limitada a 30 segundos, sem saber a quem. A resposta seria dada por alguém escolhido por sorteio. Anunciado o nome, o jornalista apontaria qual dos candidatos deveria comentar a resposta, cujo autor teria 30 segundos para a chamada ?tréplica?.

Feita a pergunta, deveríamos recolher-nos ao silêncio. Nenhuma contestação, nenhum pedido de esclarecimento, nenhuma observação sobre a resposta ou o comentário. Às oito e meia da noite, numa rápida reunião na emissora, essas regras foram repassadas. Deveríamos descer para o estúdio 20 minutos antes do começo do debate, previsto para as nove e meia. Haveria plaquetas indicando os lugares a ocupar na bancada. Tudo certo? Tudo. E lá fomos nós, descendo a ladeira.

Eu seria o primeiro a perguntar. Quis saber se, para os políticos, também devem existir limites éticos além dos quais certos insultos tornam inviável a reconciliação com o agressor. Ou não há ofensas imperdoáveis e qualquer aliança é possível? Torci para que o sorteio apontasse Ciro Gomes ou Lula. Deu Ciro. Indiquei Lula para comentar a resposta. O candidato da Frente Trabalhista ainda não explicara a cerimônia do beija-mão na visita a Antonio Carlos Magalhães, que Ciro já achou ?sujo feito pau de galinheiro?. (ACM pinçou um punhado de frases do seu vasto estoque e replicou na lata.) Lula ainda não justificara em público a aliança com Orestes Quércia, que há poucos anos considerou o líder do PT incapaz de administrar um carrinho de pipoca. (Em resposta, Lula avisou que pelo menos não roubava pipoca do carrinho.)

Mudo, ouvi Ciro discorrer sobre a importância de garantir-se a governabilidade da nação. O Brasil está acima de ressentimentos e rancores, pensemos todos na grandeza que há no ato de perdoar. Mudo, ouvi Lula proclamar que alianças consolidam a democracia e, no caso do PT, reafirmam o amadurecimento do partido. Mais tarde, bem mais tarde, Serra e Garotinho trataram do beija-mão na Bahia e das espertezas em São Paulo. Mas sem garra, sem brilho, sem imaginação. Ciro e Lula desconversaram, o tempo se esgotou, entraram outros temas na conversa. Na TV, tudo é sempre muito rápido.

Faltou um Jânio Quadros perguntando a Fernando Henrique se sabia onde fica Sapopemba. Faltou um Franco Montoro mandando Reinaldo de Barros calar a boca e ouvi-lo com o respeito devido. Faltou um Leonel Brizola implodindo regras sob o argumento de que não se calaria até completar o raciocínio. Faltou algum jornalista disposto a dizer aos candidatos que, se não desejavam falar do que o povo queria saber, melhor seria encerrar de imediato a conversa fiada.

Por não ter dito isso (e por ter comparecido ao estúdio também de terno azul escuro, camisa azul bem clara e gravata em tons vermelhos e azuis), renuncio formalmente à participação em debates do gênero. O gesto não tem importância, sei disso. Minha renúncia é tão irrelevante quanto vai ficando, no Brasil, esse tipo de debate.”

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“Uma lição a aprender”, copyright Jornal do Brasil, 8/8/02

“O sábio Villas-Bôas Corrêa, no artigo de ontem nesta página, oferece uma lição aos jornalistas que, teoricamente no papel de ?entrevistadores?, participaram do debate da TV Bandeirantes. Nove em 10 leitores que viram o programa nem notaram, mas havia uma bancada composta por quatro profissionais de imprensa. Acreditem, porque fui um deles. Valem replay sobretudo as palavras de Villas-Bôas aqui reproduzidas. ?Convidar jornalistas para, em duas horas, serem distinguidos com a honra de formular, em 30 segundos, uma única pergunta a ser respondida pelo candidato sorteado pela bolinha que gira na roda da maquineta (…) é um desrespeito, ainda que involuntário. (… ) . Como coadjuvante de segunda classe, (o jornalista) indica o candidato que deve comentar a pergunta que ele formulou?.

O fecho do artigo é perfeito. ?Jornalista que se preza não pode se submeter ao vexame de mero figurante no elenco do circo?, aconselha Villas-Bôas. Ressalve-se a lisura dos organizadores do debate, que haviam descrito com clareza o papel a nós reservado. Nenhum jornalista entrou no estúdio com algum revólver roçando-nos as costas. Estivemos lá por vontade própria.

Sujeitamo-nos a regras fixadas em reuniões complicadíssimas. Até chegar-se a uma data, assessores esgrimem agendas que estenderiam a campanha até o próximo século. Quem está muito à frente nas pesquisas inventa compromissos para não ir. Para sorte da Band, a diferença entre Lula e Ciro Gomes obrigou-os a comparecer. Os que estão atrás vivem disponiveis. Mas também tratam de cuidar-se. E então vêm as normas.

No debate da Band, por exemplo, enquanto um candidato estivesse falando, seu rosto deveria manter-se dominante na tela. Os ligeiros movimentos de câmera autorizados pelo regulamento obedeciam a fronteiras traçadas minuciosamente. Nada de recorrer a cortes que mostrassem o sorriso irônico de um adversário, alguma reação da platéia, mesmo um quase impalpável tremor nas mãos ou prenúncio da gota de suor.

Assessores enviados a tais reuniões têm por missão evitar que haja debates reais. Eles não querem discussões esclarecedoras, não se interessam por réplicas e tréplicas que conduzam à verdade. Querem é um papelório que livre o chefe de estragos na imagem. Os combatentes só admitem a batalha depois de certificar-se de que a retirada, quando convier, estará garantida.

Num primeiro momento, os candidatos rejeitaram a inclusão de jornalistas no debate. Só toparam depois de fixadas normas rígidas. Às oito e meia da noite, já na emissora, a bancada da imprensa ouviu de novo como seriam as coisas. Além do que está no artigo de Villas-Bôas, teríamos de aceitar outras imposições. Feita a pergunta, deveríamos recolher-nos ao silêncio, certo? E convinha descer para o estúdio 20 minutos antes do começo do debate. Haveria plaquetas indicando o lugar de cada um.

Primeiro a perguntar, quis saber se também para políticos existem limites éticos além dos quais certos insultos tornam inviável alianças futuras com o agressor. Ou qualquer ofensa é perdoável? O indicado no sorteio foi Ciro. Escolhi Lula para comentar a resposta. Os três sabíamos do que se deveria tratar. Os dois desconversaram. Mudo, ouvi um discorrer sobre a importância de se assegurar a governabilidade da nação e outro fazer o elogio do perdão.

Renuncio formalmente à participação nesses encontros enjaulados por regras absurdas. Sim, o gesto não tem relevância. É tão irrelevante quanto um debate que proíbe o debate.”

“Babás de ingênuos bobalhões”, copyright No Mínino (www.nominimo.com.br), 9/8/02

“Exageros de generosidade à parte, o depoimento de Augusto Nunes, no primoroso artigo no JB de Quinta-feira e em sua coluna-renúncia de véspera no NoMínimo, sobre a imposição ditatorial de assessores e marqueteiros da tábua das regras restritivas ao primeiro debate entre presidenciáveis, promovido pela Rede Bandeirantes, remeteu-me, na regressão da memória, ao último debate de que participei, no distante segundo turno de 89, entre o então estreante Lula e Fernando Collor de Mello, finalistas classificados no primeiro turno.

Dribladas as diferenças óbvias entre o mano a mano decisivo, que garantiu a eleição de Collor com diferença ampliada pelo decepcionante desempenho de Lula, a transmissão em rede nacional, com audiência recordista de mais de 100 milhões de telespectadores, a guerrilha preliminar nos bastidores foi a mesma, sem tirar nem pôr.

A primeira campanha para eleição presidencial direta – depois dos quase 21 anos de arbítrio do rodízio de generais-presidentes e dos cinco anos do mandato do presidente José Sarney, o vice do Tancredo Neves, eleito pelo voto indireto, na virada da mutreta do Colégio Eleitoral – inaugurou a ditadura dos marqueteiros, com a cumplicidade dos assessores dos candidatos.

Precedida por rodadas infindáveis de negociação para definir as normas rígidas como regulamento militar, que confinam a participação dos candidatos, com severidade duplicada para limitar a presença dos jornalistas convidados ao enfeite que ilude o telespectador com a imagem da discussão livre, democrática e polêmica. Comentarista do jornal da falecida e insepulta TV Manchete, não acompanhei a maratona das reuniões para o primeiro debate na reta do segundo turno. Coube à experiência de Carlos Chagas, então diretor da sucursal de Brasília, suportar o martírio das infindáveis exigências.

Mas, desde então, assessores e marqueteiros pilotam candidatos como babás de ingênuos bobalhões, que têm que ser protegidos para não escorregarem em asneiras que botem tudo a perder, estragando o serviço de profissionais, especialistas na venda do produto como artigo de quitanda.

Intrigante e contraditória tática que entorta o raciocínio lógico dos ignorantes dos truques da arte de embrulhar gatos no pacote de lebres. Ao invés de estimular o confronto de idéias, a exposição das divergências, a vivacidade dos diálogos para atrair o interesse e despertar a emoção do eleitor, todo o esforço é orientado para reduzir a participação dos jornalistas ao mínimo humilhante de uma, duas intervenções de segundos e o compromisso de engolir as respostas do candidato na mudez constrangedora de paspalhões alienados. Não é só. Também os debates entre candidatos são policiados pelas limitações de internato de menores.

A competente equipe da Bandeirantes foi além do limite da paciência para suportar a ranzinzice dos censores dos candidatos, donos do espetáculo. Fez a sua parte com brilho e impecável organização nos mínimos detalhes. Nenhuma falha, com destaque para a condução exemplar de Márcia Peltier.

Mas, a sensação frustrante da pobreza da controvérsia, das sínteses das propostas para o encaixe nos dois minutos do prazo, somada ao descontrole temperamental de alguns, ao baixar o nível para o bate-boca do denuncismo, reclamam a urgente necessidade de rever o código da censura para os próximos programados, anunciados por várias emissoras.

Afinal, a esperada volta da novidade para quebrar a monotonia do horário de propaganda eleitoral, com programas gravados como capítulos de novela, embaraça-se numa encruzilhada. Ou mudam e entram na moda democrática ou se adaptam ao desfile de entrevistas de candidatos. Outra saída seria substituir os jornalistas por marqueteiros e assessores, rasgando a fantasia.

No que nos toca, estamos devidamente advertido. Não será fácil encontrar profissional que se dá ao respeito para o papel de adorno de uma farsa. Trinta segundos para formular a única pergunta, desconhecendo o candidato a quem é dirigida, e que será sorteado como em bingo, com a agravante de indicar o outro candidato para a ?réplica? à resposta à sua pergunta é um desrespeito que roça pela grosseria do insulto.

A melhor reação do brio é a recusa pura e simples. Ou comparecer e protestar no ar, ao vivo, de surpresa.

Na forma de esquecido precedente.”