Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Augusto Nunes

ILUSÕES ARMADAS

“O caixa dois do medo”, copyright Jornal do Brasil, 15/12/02

“O painel que o jornalista Elio Gaspari começou a montar nos dois primeiros volumes do livro As Ilusões Armadas avisa: será enfim contada como se deve a história da ditadura militar que só foi sepultada de vez, entre gemidos de alma penada, em 1985. A leitura de A Ditadura Envergonhada e A Ditadura Escancarada, editados pela Companhia das Letras, suscita sensações só aparentemente contraditórias. Parece que foi ontem. E parece coisa de outro século.

Em ritmo de roteiro de cinema, com relâmpagos de humor e ironia que tornam menos penosa a travessia, capaz de condensar pilhas de informações num punhado de páginas, Gaspari, jornalista brasileiríssimo nascido em Nápoles, ganhará o campeonato de leitura pelo calendário do futebol italiano: como a série vai virar o ano, será o campeão da temporada 2002/2003. Adverte que não pretendeu escrever a história do período. Sim, certos episódios poderiam ser ampliados. Sim, certos setores talvez merecessem mais espaço. Isso é irrelevante.

Os livros permitem compreender que a ditadura parida no golpe contra João Goulart em 1964 (desentendimentos entre os parteiros resultaram num bebê sem contornos definidos e com deformações notáveis) só aprenderia a andar com passadas arrogantes em dezembro de 1968, depois do AI-5. E transformaria o Brasil num país estranho, repleto de subterrâneos medonhos. Por muito tempo, a pátria do homem cordial não se permitiu contemplar sequer como miragem.

O pouco espaço concedido nos livros a alguns setores serve para sublinhar, pedagogicamente, o papel secundário que lhes coube. É o caso do empresariado. No índice onomástico, a brigada de coronéis, majores e tenentes supera amplamente o pelotão dos industriais e banqueiros. Não porque Gaspari tenha decidido circunscrever aos quartéis o universo pesquisado: sempre foi assim nas ditaduras, sobretudo quando forjada por oficiais prontos para enxergar, sob quaisquer tapetes, comunistas, criptocomunistas, pára-comunistas, simpatizantes e inocentes úteis.

O movimento de 1964 desencadeou-se, segundo seus articuladores, para impedir que o presidente João Goulart consumasse a montagem de uma república sindicalista vinculada à União Soviética. Reunidos no Instituto de Pesquisas Econômicas e Sociais – o IPÊS, concebido pelo general Golbery do Couto e Silva -, dúzias de empresários ajudaram a patrocinar a ação golpista. Garantida a permanência do sistema capitalista, silenciado o berreiro contra o imperialismo ianque, o empresariado recolheu-se (ou foi recolhido) ao fundo do palco.

Regimes militares sempre têm como personagens principais atores fardados (ou nostálgicos dos coturnos provisoriamente descalçados). Banqueiros, industriais, fazendeiros, grandes comerciantes, empreiteiros – nenhum deles costuma ir além do papel de figurante. A regra foi reprisada no Brasil, mas alguns fizeram boa figuração em atos relevantes. No segundo semestre de 1969, por exemplo, quando a guerra suja já acumulava incontáveis capítulos brutais, o ministro da Fazenda, Delfim Netto, tratou de arranjar dinheiro para a reestruturação da Operação Bandeirantes (Oban), encarregada de coordenar a repressão aos grupos terroristas de esquerda.

Num palacete em São Paulo, juntaram-se 15 banqueiros, mobilizados por Gastão Eduardo de Bueno Vidigal, dono do Mercantil (hoje absorvido pelo Bradesco). Delfim explicou que as Forças Armadas careciam de verbas e instrumental para liquidar o inimigo. Vidigal fixou a contribuição de cada um – algo equivalente a US$ 110 mil neste fim de 2002. Ninguém pechinchou. Em 1981, o banqueiro justificou sua atitude, em conversa com o jornalista Sílvio Ferraz, com uma frase reproduzida no livro de Gaspari: ?Dei dinheiro para o combate ao terrorismo. Éramos nós ou eles?.

No parágrafo seguinte, mais revelações. ?Na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, convidavam-se empresários para reuniões em cujo término se passava o quepe. A Ford e a Volkswagem forneciam carros, a Ultragás emprestava caminhões e a Supergel abastecia a carceragem da Rua Tutóia com refeições congeladas.? Segundo o ex-governador Paulo Egydio Martins, ?todos os grandes grupos comerciais e industriais do Estado contribuíram para o início da Oban?.

Houve quem fizesse mais que isso, e um deles – Henning Albert Boilesen – seria assassinado por terroristas já na fase agônica da oposição armada. Dinamarquês, presidente da Ultragáaacute;s e diretor da Fiesp, Boilesen aproximou-se como poucos dos órgãos de repressão. Gaspari descreve a morte do empresário de 51 anos de modo sucinto:

?Na manhã de 15 de abril de 1971, um Volks emparelhou com seu Galaxie azul, e Iuri Xavier Pereira, o Joãozão, disparou um tiro de fuzil Mauser. A bala raspou sua cabeça. Boilesen abriu a porta e correu alguns metros na contramão. Uma rajada de submetralhadora derrubou-o e Joãozão saiu para a rua. Tinha 1,90m, cem quilos e 23 anos. Deu-lhe mais um tiro, que lhe destroçou o lado esquerdo do rosto?.

No livro Cemitérios Marinhos Às Vezes São Festivos, editado pela Topbooks, o escritor Per Johns conta a história romanceada de Boilesen. Mas não há nada de ficção quando o autor revela que Boilesen se tornou amigo demais do delegado Sérgio Fleury, símbolo da tortura. Convidado a testemunhar uma sessão de barbárie, gostou do que viu e passou a freqüentar o porão do horror. Numa ocasião, o torturado era um de seus sobrinhos. Não pareceu comover-se. Ao voltar para casa, mostrou-se carinhoso com os familiares. Os outros. (Essa reportagem está na revista Forbes Brasil que circula esta semana)”

“Notas sobre ?As Ilusões Armadas?”, copyright No Mínimo (www.nominimo.com.br), 14/12/02

“Difícil criticar ?A Ditadura Envergonhada? e ?A Ditadura Escancarada?. A massa formidável de informações garimpada por Elio Gaspari, as novidades factuais de uma história da qual se acreditava conhecer os acontecimentos decisivos, o constante ir e vir do detalhe ao panorama geral, a discussão de fontes e versões conflitantes, as sínteses parciais que fecham capítulos e seções, os perfis de dezenas personagens, os mergulhos ensaísticos e as investigações temáticas que rompem com o ordenamento cronológico, os recursos de estilo e linguagem e a velocidade da narrativa configuram uma construção opulenta, que possibilita uma miríade de abordagens.

Nenhuma delas pode ser plenamente realizada, dado que os dois livros são os primeiros de uma obra em progresso, que deverá chegar a cinco volumes, dois deles já escritos mas passíveis de alterações, e um terceiro ainda a ser composto. O plano geral do trabalho, cujo título é ?As Ilusões Armadas?, está exposto na abertura. Mas, assim como a planta de uma catedral, ele é insuficiente para se visualizar o todo pretendido e, mais ainda, o todo realizado: uma torre malajambrada pode alterar a harmonia do edifício, uma determinada gárgula pode modificar a percepção que se tem da obra.

É ótimo que venham mais torres e gárgulas, pois a riqueza transbordante de ?A Ditadura Envergonhada? e ?A Ditadura Escancarada? deixam uma incongruente sensação de vazio. Fechado o segundo volume, quer-se ler mais, quer-se saber mais, quer-se que Virgílio nos leve mais fundo aos abismos do inferno ditatorial. (Num plano mais chão, dá vontade de ligar para o autor e ser impertinente: haverá um perfil de Heitor Ferreira, essa gárgula que fuma charuto? Vai ter um capítulo sobre o movimento sindical? Que fim levou o Julião?)

Em que pese a incompletude, desde já é possível constatar que se está diante de uma catedral: de uma obra complexa, que altera a paisagem intelectual brasileira. Como ?Os Sertões?, de Euclides da Cunha (também ele um repórter e intelectual que encarou o desafio de contar uma história de crueldade militar), os livros de Elio Gaspari resgatam do passado regime político para pensar o presente. Como somos o que fomos, ?A Ditadura Envergonhada? e ?A Ditadura Escancarada? ajudam a entender o que o Brasil foi e é.

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Se minha expectativa está correta, Elio Gaspari está errado: ?As Ilusões Armadas? pode ser, sim, uma história da ditadura militar. Na Explicação que introduz os livros, ele alega: ?Em nenhum momento passou pela minha cabeça escrever uma história da ditadura. Falta ao trabalho a abrangência que o assunto exige, e há nele uma preponderância de dois personagens (Geisel e Golbery) que não corresponde ao peso histórico que tiveram nos 21 anos de regime militar. O que eu queria era contar a história do estratagema que marcou suas vidas. Fizeram a ditadura e acabaram com ela?.

A composição de uma história da ditadura independe do que passou pela cabeça do autor. Ela se dá no plano objetivo e não no subjetivo. Se for feita uma obra que tenha o alcance da contada por Gaspari, que ultrapasse a bibliografia e fontes com as quais trabalhou, ela será uma história da ditadura militar. Realisticamente, é improvável que isso ocorra, pois o essencial sobre o assunto já veio à tona. Se surgirem mais documentos dos arquivos estatais brasileiros, americanos, soviéticos ou cubanos, ou se milagrosamente aparecer um relato mais completo sobre a guerrilha no Araguaia, eles servirão de complemento, de apêndice a ?As Ilusões Armadas?.

Partindo dos mesmos documentos, um outro autor pode fazer uma história diversa da ditadura militar. Nesse caso, se trata de interpretações diferentes. Talvez se possa comprovar que de fato Geisel e Golbery, e o nó que lhes marcou as vidas, não foram os determinantes do período. Será uma outra história que, mesmo se opondo à de Gaspari, dela forçosamente partirá, pois nela estão os fatos essenciais, unidos por uma tese que lhes confere nexo. A vocação de ?As Ilusões Armadas? é a de ser a história canônica da ditadura.

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Como nas catedrais, há um aspecto de obra coletiva nos livros de Gaspari. Ele pesquisou tudo o que há de publicado sobre a ditadura, tanto em livros como na imprensa. É um trabalho danado, que demanda tempo e energia, mas até certo ponto fácil: qualquer alfabetizado pode fazê-lo. O trabalho intelectual é o complicado. É preciso separar o essencial do acessório, o pertinente do anedótico – e às vezes o pertinente está justamente no anedótico – tendo em vista um escopo geral.

Com o fim da censura, houve uma certa decepção com os livros que foram publicados sobre a ditadura. As gavetas, foi dito, não estavam cheias de originais, repletos de informações estarrecedoras, impedidos de serem publicados. A bibliografia coletada por Gaspari corrige essa percepção. Os livros apenas não estava prontos. É auspicioso constatar que se escreveu muito, e bem, sobre o que ocorreu na ditadura. Há tanto relatos de terroristas como memórias de militares, assim como investigações específicas sobre casos, episódios e temas (a Igreja, a censura, a economia etc).

Há dois projetos de pesquisa que sobressaem na bibliografia. O primeiro é a iniciativa do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea da Faculdade Getúlio Vargas em tomar os depoimentos dos militares que dominaram o Brasil. Graças aos profissionais do CPDOC, próceres da ditadura explicam serenamente como e por quê fizeram isso e aquilo. Complementarmente, o Centro também é responsável pelo formidável ?Dicionário histórico-biográfico brasileiro pós-1930?, obra de referência indispensável.

A segunda pesquisa é o Projeto Brasil: Nunca Mais, da Arquidiocese de São Paulo, que levantou os processos nas auditorias militares contra os adversários da ditadura. É nele que está o grosso do material sobre os torturados pela ditadura.

Em 1985, quando foi lançado o livro resultante do projeto, ?Brasil: nunca mais – Um relato para a história?, ele permaneceu meses no topo da lista dos mais vendidos. Ainda assim, a percepção de que se estava diante de um trabalho de dimensões colossais veio não de um brasileiro, o que é sintomático, mas do jornalista e escritor americano Lawrence Weschler, da revista ?The New Yorker?, que dedicou a ele metade do seu livro ?Um milagre, um universo?.

Minto: Elio Gaspari teve a exata percepção da importância de ?Brasil: nunca mais? no próprio dia em que o livro foi lançado, uma terça-feira. Na quinta-feira, defendeu que o livro fosse tema da capa de ?Veja? daquela semana e seus argumentos foram descartados: era o historiador e jornalista em ação.

Grosso modo, e usando uma fórmula duvidosa, o projeto do CPDOC traz a chamada ?voz dos vencedores?, enquanto o ?Brasil: nunca mais? apresenta a ?versão dos vencidos?. A fórmula é duvidosa porque divide a história em dois compartimentos incomunicáveis, o dos vencedores e o dos vencidos. Mediando um compartimento e outro, a bibliografia de Gaspari se apóia num sem-número de reportagens de jornais e revistas. Os profissionais de imprensa, dos repórteres aos pesquisadores de seus departamentos de documentação, formam a operosa multidão, muitas vezes anônima, que também contribui para dar o quê de obra coletiva à catedral de Gaspari.

Em ?A Ditadura Envergonhada? e ?A Ditadura Escancarada? vencidos e vencedores são confrontados o tempo todo, gerando boa parte da tensão dos livros. Como alguns dos vencedores de ontem são os vencidos de hoje, e vice-versa, a tensão é multiplicada e problematizada – ao menos para aqueles que buscam o passado para entender o presente.

A maneira como Gaspari trabalhou a bibliografia é um misto de argúcia e respeito. Há nela livros que, francamente, são ruins de doer. O autor os trata de forma judiciosa, generosa até. A operação faz com que livros relativamente fracos fiquem bons. É o caso, para ficar num exemplo, de ?Autópsia do medo – Vida e morte do delegado Sérgio Paranhos Fleury?. Em ?A Ditadura Escancarada?, o trabalho de Percival de Souza adquire a sua verdadeira estatura.

Essa operação, adotada como método, faz com que os livros de Gaspari sejam bem mais que a soma criteriosa das informações dispersas pela bibliografia. Independente do ponto de vista do autor, a força da sistematização por si só faz com que a quantidade se transforme em qualidade.

À bibliografia pública, Gaspari acrescentou três fontes primárias da maior importância: o Arquivo Privado de Golbery do Couto e Silva e Heitor Ferreira (com 5 mil documentos), o diário manuscrito deste último (com 1.500 páginas) e suas dezenas de entrevistas com Ernesto Geisel (vinte delas gravadas). As novidades dos dois livros, que são muitas, provêm desse material. Nalguma hora, ele se tornará público e passará pelo crivo de outros pesquisadores. Nada autoriza a suposição de que o autor não tenha extraído dele o sumo.

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?A Ditadura Envergonhada? e ?A Ditadura Escancarada? têm a história do regime militar como fio condutor, tratam de dezenas de assuntos políticos, culturais e religiosos e mostram centenas de personagens em ação. O tema deles, contudo, é um só: a tortura. Mais do que um achado, essa é uma criação, uma admirável invenção sociológica de Elio Gaspari.

Assim como o tempo em ?Em Busca do Tempo Perdido?, e a mercadoria em ?O Capital?, (também elas obras com a dimensão de catedrais), a tortura é o vetor e a constante de ?As Ilusões Armadas?. Não é à toa que há dois capítulos teóricos sobre a tortura: é que sem que ela esteja no centro do sistema não se entende a ditadura. Assim como o trabalho escravo foi o núcleo do Império, a tortura serviu de base para o regime militar. Foi a partir dela, em torno dela, e por meio dela que a ditadura se construiu, consolidou e acabou. A realidade da tortura, que a sociedade brasileira tem tanta dificuldade em aceitar, é praticamente esfregada na cara do leitor a cada página.

O autor desmonta os argumentos a favor da tortura (ela dá resultados e salva vidas), as falácias da falsa consciência (os chefes militares e governantes dela não tinham conhecimento) e a sua suposta necessidade histórica (fica demonstrado que ela precedeu o terrorismo de esquerda e sobreviveu a ele). A cada nova aproximação do problema, a consciência se aguça, pois a abordagem está longe de ser fria: em vários momentos o narrador mostra a dor física, o suplício, as crises e culpas daqueles que passaram pela tortura.

Transbordando os marcos da ditadura, os livros recuam a tortura até o Estado Novo, sepultando de vez a mitologia de que ela foi praticada por meganhas. Também a trazem até o presente, lembrando que ela continua a ser usada, agora só por meganhas, como procedimento de investigação criminal.

A tortura parece ser o equivalente violento do decantado ?jeitinho? brasileiro. Jamais na ditadura (nem fora dela, aliás) a classe dominante discutiu a sério a adoção da pena de morte para determinados crimes, como o terrorismo. Em vez disso, aceitou placidamente a prática extra-legal da tortura. E levou-a ao paroxismo no Araguaia, com a decapitação e a queima de cadáveres.

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Quem aceitou placidamente a tortura? A pergunta é inevitável, já que ela foi o divisor de águas da ditadura. E no entanto poucos a fazem. Há dignatários e colaboradores da ditadura que estão vivos e atuantes. Há gente ficou rica com o regime militar, e portanto com a tortura. Há aqueles que ainda vêm o suposto lado bom do período, e exemplificam com o Milagre Brasileiro, como se o progresso tivesse a ver com a ditadura, e não com a situação concreta do capitalismo, mudialmente, naquela época.

Pelo menos um colaborador e beneficiário do regime, o ex-presidente José Sarney, saudou os livros de Gaspari com enorme entusiasmo, tendo a cautela de não usar uma única vez a palavra ?tortura? na sua resenha. Outros estão bem quietinhos.

A exceção é Jarbas Passarinho, coronel conspirador, golpista, ministro da ditadura nos governos de Costa e Silva, da junta militar e de Emílio Garrazastazú Medici, signatário do AI-5 (?Às favas, senhor presidente, neste momento, todos os escrúpulos de consciência?, foi a sua frase lapidar ao defender o endurecimento da ditadura, abrindo caminho para o aprofundamento da tortura), e ministro novamente no governo Collor – um currículo e tanto.

Passarinho referiu-se duas vezes aos livros de Gaspari, em artigos publicados em ?O Estado de S. Paulo? (3 de dezembro) e no ?Jornal do Brasil? (10 de dezembro). Fica a impressão que não os leu. No primeiro, ele escreve que, no discurso de Marcio Moreira Alves que serviu de pretexto para o AI-5, o então deputado teria dito que as Forças Armadas eram ?valhacoutos de bandidos?. Ora, na página 316 de ?A Ditadura Envergonhada?, Gaspari esclarece que Moreira Alves usou ?valhacouto de torturadores? e, numa nota de pé de página, corrige Passarinho, que num depoimento feito há dois anos disse que a expressão do deputado foi ?valhacouto de gangsters?. Mesmo sem ter entendido uma página na qual aparece, e sem saber em qual valhacouto esteve metido, Passarinho se permite duvidar de uma fonte de Gaspari, Delfim Netto. No final do artigo, ele entrega os pontos, dando a entender que está definitivamente perdida a batalha sobre o legado da ditadura: ?Recolho, de vez, a vela ao barco da verdade?, escreve.

Uma semana depois, as velas foram novamente enfunadas. Dessa vez para, usando o livro ?Notícias do Planalto?, espalhar mentiras e infâmias sobre Gaspari, . Segundo Passarinho, o perfil que meu livro faz de Gaspari é o seguinte: ?militante do Partido Comunista, chantageador de mestres do colegial, expulso por indisciplina de faculdade, o primeiro emprego na embaixada de Cuba, a recortar jornais para arquivo, foca do jornal oficial do PCB, Novos Rumos, aprendiz de Ibrahim Sued, arrogante quando chefe e posteriormente tido entre colegas como alcagüete da ditadura?.

O amálgama mistura fatos corretos (a militância de Gaspari no PCB, nunca escondida), com meias verdades (ele foi expulso da Faculdade Nacional de Filosofia, a pretexto de indisciplina, mas num processo eminentemente político) e calúnias. Atenho-me a duas.

Primeiro, ?chantageador de mestres?. Em ?Notícias do Planalto? se conta que, garoto, Gaspari escondia o escapulário de um professor de matemática e pedia, para devolvê-lo, que aumentasse as notas de suas provas. Era apenas um professor, e não ?mestres?. Tratava-se de uma brincadeira e não de uma chantagem, e muito menos caracteriza um ?chantageador?.

Segundo, ?tido entre colegas como alcagüete da ditadura?. ?Notícias? relata uma situação específica, a da volta de Gaspari a ?Veja?, em 1979. Uma parte da redação não gostou do novo diretor-adjunto porque ele queria que todos trabalhassem mais e melhor. Outra parte o recebeu com frieza porque o considerava um aliado da ditadura. Não uso a palavra ?alcaguëte? nem nenhum dos seus sinônimos, como delator ou dedo-duro. É Passarinho que, covardemente, está fazendo a insinuação mentirosa.

Já que se está no assunto, registre-se que a mão ia no sentido contrário: era Gaspari que intercedia junto a Golbery e à ditadura para ajudar perseguidos e exilados. Dois exemplos de pessoas por quem ele fez gestões: Jorge Ristun e Darcy Ribeiro.

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Não se deve confundir o autor com o narrador. O autor faz a obra. O narrador é um instrumento que ele usa na composição do livro para interferir no seu andamento. Nos livros de ficção, essa distinção é clara. O narrador de ?Em Busca do Tempo Perdido?, que umas poucas vezes recebe o nome de ?Marcel?, não é Marcel Proust, o autor. Eles são entidades distintas.

Em ?A Ditadura Envergonhada? e ?A Ditadura Escancarada?, o autor se apresenta na ?Explicação? inicial, informando quem é e a que veio. No corpo dos livros, ele cede lugar ao narrador, que é personagem: conta que entre 1962 comeu só no restaurante Calabouço e testemunha, na porta da Faculdade Nacional de Filosofia, a posição do PCB no dia do golpe de 1964. Mas é como autor que, nas notas de rodapé, esclarece com quem e quando obteve certas informações.

A passagem da voz do narrador para a do autor, a mistura delas numa obra de não-ficção, longe de propiciar confusão, permite ao leitor a identificação precisa do ponto de vista exposto. Fica-se sabendo que os dois livros foram feitos por um ex-militante do PCB, por um jornalista profissional que teve acesso a figuras-chaves da história que conta, e por pesquisador motivado pela curiosidade em entender a ditadura. Os livros, assim, não caíram do espaço, não são obra de um sabe-tudo erudito, e sim de um participante dos fatos narrados, os quais organiza e a respeito dos quais opina.

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Ninguém na esquerda sai bem dos livros de Gaspari. Alguns saem pior do que se suspeitava: a direção stalinista do PCB, Fidel Castro e o governo cubano, Carlos Marighella e os arautos do terrorismo, e a direção do PC do B, sobretudo João Amazonas.

Luis Carlos Prestes, aliado ao golpismo de João Goulart, barrou a possibildiade de organização independente dos trabalhadores. Fidel Castro financiou e instigou a aventura terrorista, que Marighella materializou. E o PC do B jogou um punhado de militantes na guerrilha do Araguaia para depois abandoná-los sem explicação à própria sorte, e à tortura e à morte certas.

O balanço é tenebroso. Não se esboçou, na direção das organizações operárias, nenhuma tentativa de política de massas nem para a tomada do poder e nem para a resistência à ditadura.

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As frases de Gaspari são curtas e assertivas. Elas tocam a ação para a frente. O fluxo se interrompe para dar lugar a sínteses, novamente assertivas: ?A tortura é filha do poder, não da malvadeza?.

No mais das vezes, se dá preferência às metonímias em vez de às metáfora, ?Porão?, por exemplo, para designar os locais de torturas na frase ?O porão ganha o privilégio de uma legitimidade excepcional?. A metonimização constante desloca os detalhes, conferindo-lhes estatuto sintético, outra vez.

O estilo de Gaspari busca a condensação. Ele confere velocidade à narrativa, ao mesmo tempo em que lhe dá foros de verdade indesmontável. Ao expor seu objetivo pela primeira vez, Gaspari escreve: ?explicar por que os generais Ernesto Geisel (o Sacerdote) e Golbery do Couto e Silva (o Feiticeiro), tendo ajudado a construir a ditadura entre 1964 e 1967, desmontaram-na entre 1974 e 1979?. Cinco páginas adiante, o objetivo é condensado em sete palavras: Geisel e Golbery ?fizeram a ditadura e acabaram com ela?. As duas frases são semelhantes, mas a segunda é incisiva, provocativa mesmo. Onde está o processo histórico? A ditadura foi feita e desfeita num vácuo social? Cadê a luta de classes?

Feita a provocação, Gaspari escreve milhares de páginas, bota de pé uma catedral para descrever o processo histórico, o contexto social e a luta de classes.”