M. F. NASCIMENTO BRITO (1922-2003)
“O homem que sabia agradecer”, copyright Jornal do Brasil, 10/02/03
“Muito obrigado – ouvi ao fim da conversa por telefone. Estranhei o agradecimento. Não costumavam emergir das gargantas dos donos de jornal que minha geração conheceu. Ou porque tinham pressa demais, ou porque outras conversas os esperavam na agenda atulhada de relevâncias, ou porque se haviam habituado a dar ordens e instruções como quem dá bom-dia, donos de jornal raramente agradeciam. Não era o caso de M. F. do Nascimento Brito. Terminada alguma conversa, fosse qual fosse o assunto, vinha o ?muito obrigado?.
O doutor Brito sempre cultivou hábitos amáveis nesse mundo em que o relógio revogou afagos que pareçam perda de tempo. Nas redações, mensagens trocadas entre jornalistas, quando incluem no final alguma expressão carinhosa, cuidam de matar vogais. Não mandam beijos. Apenas ?bjs?. Nem mesmo abraços. Só ?abrs?. Natural que me surpreendesse, naquele agosto de 1986, o ?muito obrigado? de um dos integrantes da poderosa Trindade dos Doutores da imprensa brasileira.
Em quase dois anos de convívio, testemunhei episódios que confirmariam o retrato esboçado do mito: a polidez foi uma das facetas que, com a coragem e a franqueza, sublinharam essa personalidade singular. Num jantar na casa em Santa Teresa, os convivas ouviram do Doutor Brito a ressalva: embora estivesse grato ao governador do Rio pela presença inesperada, o homenageado da noite era, e continuaria a sê-lo, o amigo bem menos ilustre e vistoso.
Depois de ter enfrentado generais e subalternos ainda mais estrelados em matéria de insensatez, depois de ter combatido a censura, pressões cotidianas do poder irritado, ameaças sugeridas e violências concretizadas, o doutor Brito lutava, a cabeça sempre erguida, contra as seqüelas da doença. Ofereci-lhe uma vez o braço no alto de uma escada. Recusou educadamente, mas com o olhar de quem consideraria ofensiva uma segunda oferta.
Recebo a notícia da morte do Doutor Brito enquanto percorro o Rio Amazonas acompanhando filmagens que reconstituem a primeira viagem de Che Guevara pela América Latina. Na fronteira do Peru com o Brasil, constato que grandes viagens podem ser feitas em embarcações distintas. A bordo de um jornal em combate, por exemplo. Constato também que os guerreiros da imprensa livre se confundem com seus exércitos — passados, presentes e futuros. E incorporam os estandartes hasteados nas frentes que os tiveram como comandantes.
É enganoso recorrer a medidas comuns para medir-lhes tanto o tempo de vida quanto o espaço que ocuparam. Fisicamente morto aos 80 anos, M.F. do Nascimento Brito já alcançou a idade que tem o JB. Seguirá circulando todos os dias. E viverá enquanto houver imprensa livre no Brasil. Muito obrigado, murmuro na noite da selva.”
“O melhor legado”, copyright Jornal do Brasil, 10/02/03
“Naquele dia a reportagem do JB tinha sido particularmente feliz. O jornal estava fechado, a madrugada começava e estávamos na redação esperando que começasse a rodada só para levar a cria recém-nascida para casa. O assunto era o Riocentro e, em duas páginas, o jornal desmontava completamente a farsa dos militares. O editor-chefe, Walter Fontoura, também estava na redação e vendo-o eu disse:
– Acho que hoje estamos de parabéns, Walter. – Quem está de parabéns é o doutor Brito – respondeu Walter e emendou: ?Se ele não quisesse, nada disso sairia no jornal?. E era verdade, mas eu nunca pensara nisso dessa maneira. Para mim, que comecei foca em 1968, pouco antes do AI-5, e que testemunhei fatos memoráveis e vivi alguns deles, a liberdade era algo tão natural como respirar. Essa era uma das características que fizeram tanta gente se apaixonar pelo Jornal do Brasil: a liberdade, a confiança no jornalista e a convivência democrática.
Vendo o doutor Brito (era assim que era chamado pela redação) e conhecendo-o a princípio superficialmente, não parecia que ele fosse o motor dessa liberdade. Tinha um jeito de lorde inglês. Para nós, os índios da redação, era uma figura algo distante, imperial, mesmo depois do derrame que o acometeu. Detestava ser ajudado. Sonhou muito, arriscou muito, ganhou algumas batalhas e perdeu outras, como o sonho de constituir um poderoso grupo de mídia. Mas sempre deu liberdade a seus comandados.
Advogado e piloto de bombardeiro B-25 durante a Segunda Guerra, o doutor Brito, ao assumir o JB, incorporou uma alma de jornalista que o levou sempre a comprometer o jornal com posições de independência, mesmo quando essas posições, eventualmente, prejudicavam a sua empresa.
Só o conheci mais de perto quando retornei ao JB como editorialista, nos anos 90. Em seu gabinete, no nono andar do prédio da Avenida Brasil, 500, expressão maior de seu sonho e hoje fechado, os editorialistas reuniam-se com ele, pontualmente, às 15h, em torno de uma grande mesa redonda. Ali se discutiam e alinhavam os editoriais do dia seguinte. De um lado o doutor Brito, já com ar cansado, e do outro Wilson Figueiredo, sempre atilado e irônico. No meio, nós, os editorialistas. Nunca o vi impor sua vontade, exigir algo. Admitia a discussão. Particularmente, lembro um editorial encomendado por ocasião da prisão do general Pinochet em Londres. O doutor Brito declarou ser amigo do ex-ditador chileno e pediu-me um editorial suave. Não me contive e disse que isso seria impossível. A ação do governo inglês – argumentei – seria um lição para evitar a impunidade de futuros tiranos. Discutimos a respeito e disse que não seria verbalmente duro com Pinochet mas que, por uma questão de consciência, não me seria possível tomar, nem de leve, o partido dele.
– Faça como quiser – foi a resposta. Fiz e aguardei a reunião de Wilson com o doutor Brito às 20h. Ele lia e aprovava (ou não) cada um dos editoriais. O que eu escrevera tinha o título Boca torta, lembrando o velho ditado de que o hábito do cachimbo… Dizia que ele havia sido avisado para que não fosse à Inglaterra, pois seria preso, mas, acostumado à prepotência e à onipotência, foi e se deu mal, seguia por aí.
Para minha surpresa, Wilson retornou e disse que o doutor Brito havia lido e aprovado o editorial. Para alguns, isso poderia até ser interpretado como fraqueza ou falta de convicção mas, do meu ponto de vista, revelava alguém que tinha uma crença inabalável no papel do jornalismo e da liberdade e que sabia aceitar um bom argumento. Esse é o seu legado.”
“Doutor Brito, um combatente da liberdade”, copyright Jornal do Brasil, 10/02/03
“A liberdade é uma história de lutas que nunca vão ter fim. Os seus lutadores, também. Nunca vão ter fim. São duros na queda, integram uma espécie humana diferente, resistente, à prova de déspotas. Assim o foi Manuel Francisco do Nascimento Brito, o doutor Brito do Jornal do Brasil, testemunha ocular e personagem ativa de tantos declives e aclives deste País querendo democracia.
Quem o visse, num relance, de primeiro flash, naquele seu jeitão meio atleta, empertigado, sereno, dificilmente resistiria à tentação de imaginar que ali por dentro, naquele homem, só havia vértebras. Aquele ar severo, mais convincente nas fotografias, podia ajudar na configuração do perfil. De um certo ponto de vista, o doutor Brito era isso mesmo, todas as vértebras lugar, osso duro de roer. Não foram poucos os tiranos e até chantagistas poderosos que tentaram roê-lo e se deram mal.
Elegante, sabia aplaudir sem ser ridículo, na medida certa. E discordar sem medo, com respeito. Sob seu comando, o Jornal do Brasil suportou triunfante os abusos da ditadura, o seqüestro das liberdades civis e celebrou com o país o reencontro do tortuoso e estreito caminho pelo qual estamos chegando, enfim, à democracia. O legado do doutor Brito é essa chama de bons exemplos, de cultura e de civismo, de compromisso inarredável com as lutas pela liberdade, que ainda em vida ele passou a José Antonio, seu filho. Há mais de um século, o Jornal do Brasil tem sido bússola confiável quando a falta de juízo desaba em tempestades de retrocessos, arruinando as construções democráticas. Na luta pela liberdade é assim. Se tomba um combatente, de pronto já se tem outro pronto, vida empenhada, continuando a luta.”