Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Baixaria na Câmara Alta

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ACM E A MÍDIA

Alberto Dines

Falta contar mais. Ir fundo e além. Transcender ao caso específico da violação do painel eletrônico. Os depoimentos da diretora do Prodasen, Regina Célia Borges, primeiro no Jornal do Brasil e, um dia depois, perante a Comissão de Ética do Senado, ainda estarrecem a nação mas deverão provocar outras revelações. A busca da verdade é dinâmica, incontrolável.

Pelo teor, pela decência com que minuciou sua participação no escabroso episódio mas, sobretudo, pelo que ficou implícito no depoimento da funcionária, está evidente que aquela sucessão de infrações não foi fortuita.

A devassa da urna eletrônica seguramente foi caso único. Seguramente, não há precedentes de transgressões desse tipo no currículo do Prodasen. Mas, seguramente, havia um clima no Senado de cega submissão ao que "o Mestre mandar". E o Mestre era ACM, o todo-poderoso presidente da Casa.

O líder do governo, José Roberto Arruda, não teria a ousadia de ordenar que funcionária tão categorizada cometesse um crime de responsabilidade se não soubesse que ACM podia tudo. Não se pretende aqui minimizar a culpa do agente transferindo-a apenas ao mandante da ação criminosa. Ambos são igualmente culpados. Mas líder de partido, de governo ou da oposição não tem poder para ir tão fundo na máquina de uma câmara legislativa. Líderes operam no âmbito dos plenários e comissões. Já o presidente da Casa pode tudo: maneja pessoas, estabelece métodos, cria padrões. Presidente do Senado não administra mas assina contratações, promoções, demissões, licenças e prêmios. E cobra fidelidade. Sobretudo quando se trata de um operador manhoso e experiente como ACM que, com igual maestria, sabe morder e assoprar, distribuir benesses e castigar, soltar dinheiro ou o rebenque.

Tão surpreendente quanto as revelações da diretora do Prodasen foi a confissão do líder da oposição, senador José Eduardo Dutra (PT-SE) na mesma ocasião, perante a mesma Comissão de Ética e transmitida por todas as redes de TV: depois da votação que cassou o mandato de Luís Estevão, ACM provocou-o com aquele seu tom de coronel que cobra votos do curral eleitoral ? "vocês não votaram conosco".

Portanto, sete meses antes da confissão perante os três procuradores do Ministério Público Federal em Brasília, ACM arrotava o domínio de um segredo teoricamente inviolável. E por que razão não reagiu o bravo senador oposicionista? Por duas razões: 1) desconfiava de que ACM estava certo, de fato teriam ocorrido defecções no chamado "bloco ético" – um escândalo respingaria nas suas hostes; 2) mesmo sendo líder da oposição (PT, PDT e PPS), não lhe passaria pela cabeça contestar "a máquina". Ou il capo, o poderoso chefão.

Por que razão o senador José Eduardo Dutra não passou para os jornalistas a informação de que a votação secreta deixara de ser secreta? Simplesmente porque àquela altura qualquer estagiário sabia que ACM, além de vice-rei do Brasil, era o imperador da mídia brasileira. Algo que ferisse seus interesses eventualmente poderia filtrar-se através de alguma instância em alguma redação mas jamais conseguiria transformar-se em letra de forma.

Resignou-se o senador do PT ao status quo. E nesse ambiente de resignação aos caprichos do chefe ocorreu a profanação do painel do Senado. Grandes violências só podem ocorrer em ambientes aclimatados às pequenas violências. A imunização pelo veneno ou pela doença é fenômeno orgânico e moral. A violação no Prodasen não foi acidente de percurso, é fruto da arbitrariedade combinada ao desrespeito. Retrato da permissividade.

Tenho as provas, fui vitimado pela mesma infração. Há quatro anos, na manhã de 4 de abril de 1997, ao iniciar-se a sessão da CPI dos Precatórios, nas instalações da Câmara Alta, na mesa que presidia os trabalhos e diante das câmeras da TV Senado, o senador Roberto Requião (PMDB-PR), relator da CPI, xingou-me com palavras de baixíssimo calão a propósito de uma polêmica que corria através do Jornal do Brasil. Para o gozo do presidente da CPI, Bernardo Cabral (PFL-AM). Alertados pela baixaria, os técnicos da TV Senado fizeram sinais para os senadores que, finalmente, envergaram o imperioso decoro. A deplorável cena foi transmitida, ao vivo, para todo o país mas, na reprise noturna, suprimida.

A intervenção foi flagrada pelo jornalista Nelson de Sá que, na ocasião, mantinha na Folha de S.Paulo um posto de observação sobre o noticiário televisivo. Sua denúncia foi publicada no dia seguinte, sábado, 5/4. Nesse mesmo dia um funcionário da TV Senado avisou que a gravação da sessão da CPI fora definitivamente cortada, portanto manipulada. Durante o fim de semana tentei sensibilizar repórteres e colunistas políticos da capital, praticamente sem resultados. Segunda-feira, desembarcava na redação da Folha a diretora da TV Senado, jornalista Marilene Chiarelli (nomeada por ACM) com uma gravação debaixo do braço, obviamente truncada, sem a baixaria comprometedora. Dia 9/4, a Folha tornou a informar que dispunha tanto em vídeo como em áudio das provas da manipulação. A Federação Nacional dos Jornalistas oficiou à Mesa do Senado pedindo explicações. Assunto engavetado: ACM abancara-se há pouco na presidência do Senado.

As infrações de abril de 1997 e de junho de 2000 diferenciam-se apenas em grau. A essência é idêntica. Não chega a ser motivo para cassação de mandato o fato de dois senadores comportarem-se indecorosamente numa sessão da CPI. Mas a violação do registro documental de uma sessão parlamentar na emissora do Senado equipara-se, moral e legalmente, ao arrombamento eletrônico no painel de votação desse mesmo Senado.

A Câmara Alta está, há pelo menos quatro anos, vulnerável ao achincalhe. Elos da mesma leniência, as duas violações provam que degradação jamais é súbita. Nada acontece por acaso.

(*) Copyright Jornal do Brasil, 21/4/01

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