Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Bala no coração dos outros é doce na boca da gente

TELEJORNALISMO

Paulo José Cunha (*)

Será que entendi bem? Estão cobrando atitudes éticas de… bandidos? Algo como "a imprensa é sagrada" e "o trabalho de repórteres é intocável", e que os bandidos não tinham nada que matar o Tim Lopes pelo simples fato de ser um jornalista no exercício da profissão, portanto coberto por uma pretensa imunidade profissional? Queriam que facínoras de morro tivessem por Tim Lopes o respeito que autoridades policiais constituídas são obrigadas a ter por prisioneiros sob custódia? É mesmo a sério ou estão querendo brincar com a gente? Pensam que estão enganando a quem?

Inda outro dia, reli o trecho de Ao vivo do campo de batalha (Peter Arnett, Ed. Rocco, 1994, 513 págs), em que o então jovem repórter Peter Arnett recebe a ordem de um major americano, em plena Guerra do Vietnã: "Vou precisar de todos os homens esta noite (…) Pegue esta carabina e apanhe 300 cargas de munição para proteger o lançador de morteiros do lado oeste". Arnett escreveu o que sentiu: "Meu coração desceu até os pés. Eu sabia que ia obedecer, mas comentei, para desencargo de consciência. ? Sei que o senhor é responsável por este lugar, o senhor é um soldado profissional. O que me diz da Convenção de Genebra, que proíbe civis de fazer este tipo de coisa? Ele olhou para mim. ? Acha que o vietcong vai respeitar sua condição de civil esta noite, amigão?" Arnett, felizmente, não precisou usar a arma. Mas confessou que a usaria, se houvesse necessidade.

Quando um repórter, munido com uma arma (desculpe, mas uma câmera oculta é uma arma, sim, bem diferente de uma câmera exposta ou de uma caneta ou um bloco de notas) entra numa região conflagrada como a dos morros cariocas, onde acontece uma guerra mais que declarada envolvendo traficantes e outros canalhas, não conta com a proteção da Convenção de Genebra. O vietcong não a respeitava em relação aos combatentes de exércitos regulares nem aos jornalistas em serviço. As quadrilhas de traficantes não a respeitam porque nem sabem o que é. Principalmente em relação a algum repórter que se meta a besta de ir bisbilhotar suas atividades nas áreas sob sua "proteção", como o baile funk onde Tim pretendia documentar a prostituição de menores. Então, que papo é esse de que os traficantes "passaram dos limites"? Como se, em algum momento, eles tivessem respeito por algum limite. Desde quando bandido tem limite?

Claro que a morte de Tim é para ser chorada, lamentada, condenada, repercutida, usada para denunciar o poder paralelo do tráfico. É morte que, como tantas outras, exige punição exemplar dos culpados, reparação e justiça. Mas é impossível não identificar na forma como o assunto foi tratado uma profunda hipocrisia. Teria sido criado o mesmo clima de comoção nacional se Tim Lopes pertencesse a outra emissora? Por que a Rede Globo não colocou em discussão o uso da câmera oculta para a obtenção de informação com ingredientes de espetáculo, nem tocou nos riscos que tal atividade acarreta? Quanto ganhava Tim Lopes ? o "instant celebrity" da hora, cuja morte alavancou espetacularmente a audiência do Fantástico de domingo passado ? para fazer esse trabalho sujo?

Trabalho sujo cujo resultado seria pouco depois exibido na assepsia dos estúdios de Hans Donner por apresentadores bem maquiados, no conforto do ar condicionado, com salários dez, vinte vezes maiores que o dele. Que garantias tinha Tim Lopes para se expor daquela forma? E não se venha com o velho argumento de que Tim sabia o risco que corria. A própria Globo, na década de 80, desmentiu esse argumento ao proibir que seus repórteres corressem risco de vida, logo após o episódio em que o repórter Francisco José se ofereceu como refém e embarcou num carro sob a mira das armas dos bandidos.

O centro da questão não é nem sequer a ética da câmera oculta, instrumento próprio à ação da arapongagem, mas até aceitável como parte da atividade jornalística em condições absolutamente extremas, quando se esgotam os meios convencionais de apuração. Existem outros aspectos a examinar. Um deles é o desvio do foco, ao se produzir da noite para o dia uma celebridade ? pois além de seus colegas, amigos e parentes, quem mais conhecia Tim Lopes até a Globo transformar a morte dele em atração nacional? A partir daí deflagrou-se um movimento de indignação que ganhou o apoio até mesmo de entidades de defesa da atividade jornalística em outros países.

Ora, assassinatos nos morros cariocas executados com requintes de crueldade existem às carradas, é só abrir o jornal de hoje, de ontem, de amanhã para justificar a indignação e a cobrança pelas providências dos poderes constituídos. Será que entendi bem ou pirei de vez quando a leitura panorâmica que faço do episódio me remete à perplexidade de admitir que, enquanto cidadãos, digamos, comuns, são mortos a torto e a direito pelos traficantes, até aí tudo bem, a gente vai levando. Até porque este tipo de morte não eleva audiência mesmo, né? Mas, quando alguém de casa é atingido, então, aí sim, chegou a hora de mexer céus e terras pra indignar o povão. Que os bandidos matem umas centenas de pessoas por aí, vá lá, tudo bem, a gente até noticia, principalmente quando o dia está fraco de notícias de impacto e o jornal precisa de uma esquentadinha. Mas quando as balas chegam ao nosso quintal e atingem nossos meninos, aí não…

Fenaj, ABI, OAB, alguém aí, por favor, me confirme: essa tal de ética funciona assim mesmo ou nós, assim como o Eremildo do Elio Gaspari, somos mesmo uns idiotas?

(*) Jornalista, pesquisador, professor de Telejornalismo, diretor do Centro de Produção de Cinema e Televisão da Universidade de Brasília. Este artigo é parte do projeto acadêmico "Telejornalismo em Close", coluna semanal de análise de mídia distribuída por e-mail. Pedidos para <pjcunha@unb.br>