ESPECIAL 3+5
OBSERVADORES DE CARTEIRINHA
Machado de Assis
"Balas de estalo", crônicas, in Obra Completa, vol. 3, Editora Nova Aguilar, Rio, 1986
[13 dezembro de 1896] O Senado deixou suspensa a questão do veto do prefeito acerca do imposto sobre companhias de teatro. Não falaria nisto se não se tratasse de arte em que a política não penetra, ? ao menos que se veja. Se penetra, é pelos bastidores; ora, eu sou público, só me regulo pela sala.
Houve debate à última hora, esta semana, e debate, não direi encarniçado, para não gastar uma palavra que me pode servir em caso mais agudo… Não, eu não sou desses perdulários que, porque um homem diverge no corte do colete, chama-lhe logo bandido; eu poupo as palavras. Digamos que o debate foi rigoroso.
Não sei se conheceis o negócio. O que eu pude alcançar é que havia uma lei taxando fortemente as companhias estrangeiras; esta lei foi revogada por outra que manda igualar as taxas das estrangeiras e das nacionais; mas logo depois resolveu o conselho municipal que fosse comprida uma lei anterior à primeira… Aqui é que eu não sei bem se a lei restaurada apenas levanta as taxas sem desigualá-las, ou se as torna outra vez desiguais. Além de não estar claro no debate, sucede que na publicação dos discursos há o uso de imprimir entre parêntesis a palavra lê quando o orador lê alguma coisa. Para as pessoas que estão na galeria, é inútil trazer o que o orador leu, porque essas ouviram tudo; mas como nem todos os contribuintes estão na galeria (ao contrário!) a conseqüência é que a maior parte fica sem saber o que é que se leu, e portanto sem perceber a força da argumentação, isto com prejuízo dos próprios oradores. Por exemplo, um orador, X…, refuta a outra Y…:
"X… E pergunto eu, V. EX.? pode admitir que o documento de que se trata afirma o que o governo do Estado alega? Ouça V. Ex.?. Aqui está o primeiro trecho, o trecho célebre. (Lê) Não há aqui o menor vestígio de afirmação…
"Y… Perdão, leia o trecho seguinte.
"X… O seguinte? Ainda menos. (Lê) Não é nada mais vago. O governador expedira o decreto, cujo art. 4? não oferece a menor dúvida; basta lê-lo. (Lê) Depois disto, que concluir, senão que o governador tinha o plano feito? Querem argumentar, Sr. presidente, ?7? do art. 6?; mas essa disposição é um absurdo jurídico. Ouça a Câmara. (Lê)
"Vozes: Oh! Oh!"
Não há dúvida que este uso economiza papel de impressão e tempo de copiar; mas eu contribuinte e eleitor, não gosto de economias na publicação dos debates. Uma vez que estes se imprimem, é indispensável que saiam completos para que eu os entenda. Posso ser para preguiçoso, morar fora, e tenho o direito de saber o que é que se lê nas câmaras. Se algum membro ou ex-membro do congresso me lê, espero que providenciará de modo que, para o ano, eu possa ler o que se ler, sem ir passar os meus dias na galeria do congresso.
Como ia dizendo, não tenho certeza do que é a lei municipal restaurada; mas para o que vou dizer é indiferente. O que deduzi do debate é que há duas opiniões: uma que entende deverem ser as companhias estrangeiras fortemente taxadas, ao contrário das nacionais, outra que quer a igualdade dos impostos. A primeira funda-se na conveniência de desenvolver a arte brasileira, animando os artistas nacionais que aqui labutam todo o ano, seja de inverno, seja de verão. A segunda, entendendo que a arte não tem pátria, alega que as companhias estrangeiras, além de nos dar o que as outras não dão, têm de fazer grandes despesas de transporte, pagar ordenados altos e não convém carregar mais as respectivas taxas. Tal é o conflito que ficou suspenso.
Eu de mim creio que ambas as opiniões erram. Não erram nos fundamentos teóricos; tanto se pode defender a universalidade da arte como a sua nacionalidade; erram no que toca aos fatos. Com efeito, é difícil, por mais que a alma se sinta levada pelo princípio da universalidade da arte, não hesitar quando nos falam da necessidade de defender a arte nacional; mas é justamente este o ponto em que a visão do Conselho Municipal, do prefeito e do Senado me parece algo perturbada.
Posto não freqüenta teatros há muito tempo, seu que há aí uma arte especial, que eu já deixei em botão. Essa arte (salvo alguns esforços louváveis) não é propriamente brasileira, nem estritamente francesa; é o que podemos chamar, por um vocábulo composto a arte franco-brasileira. A língua de que usa dizem-me que não se pode atribuir exclusivamente a Voltaire, nem inteiramente a Alencar; é uma língua feita com partes de ambas, formando um terceiro organismo, em que a polidez de uma e o mimo de outra produzem nova e não menos doce prosódia.
Este fenômeno não é único. O teuto-brasileiro é um produto do Sul, onde o alemão nascido no território nacional não fica bem alemão nem bem brasileiro, mas um misto, a que lá dão aquele nome. Ignoro se a língua daquele nosso meio patrício e inteiro colaborador é um organismo igual ao franco-brasileiro, mas se as escolas das antigas colônias continuam a só ensinar alemão, é provável que domine esta língua. Nisto estou com La Palisse.
Não é pelo nascimento dos artistas que a arte franco-brasileira existe, mas por uma combinação do Rio com Paris ou Bordéus. Essa arte, que as finadas Mmes. Doche e D. Estela não reconheceriam por não trazer a fisionomia particular de um ou outro dos respectivos idiomas, tem a legitimidade do acordo e da fusão nos elementos de ambas as origens. Quando nasceu? É difícil dizer quando uma arte nasce; mas basta que haja nascido, tenha crescido e viva. Vive, não lhe peço outra certidão.
Acorde-me entretanto, uma idéia que pode combinar muito bem as duas correntes de opinião e satisfazer os intuitos de ambas as partes. Essa idéia é lançada uma taxa moderada às companhias estrangeiras e libertar de todo imposto as nacionais. Deste modo, aquelas virão trazer-nos todos os invernos algum regalo novo, e as nacionais poderão viver desabafadas de uma imposição onerosa, por mais leve que seja. Creio que assim se cumprirá o dever de animar as artes; sem distinção de origens, ao mesmo tempo que se protegerá a arte nacional. Que importa que, ao lado dela, seja protegida a arte franco-brasileira? Esta é um fruto local; se merece menos que a outra, não deixa de fazer algum jus à eqüidade. Aí fica a idéia; é exeqüível. Não a dou por dinheiro, mas de graça e a sério.
Não me arguam de prestar tanta atenção à língua de uma arte e à meia língua de outra. Grande coisa é a língua. Aquele diplomata venezolano que acaba de atordoar os espíritos dos seus compatriotas pela revelação de que o tratado celebrado com a Inglaterra, graças aos bons ofícios dos Estados Unidos, serve ao interesse destes dous países com perda para Venezuela, pode não ter razão (e creio que não tenha), mas dá prova certa do que vale a língua. Os outros dous são ingleses, falam inglês; foi o pai que ensinou esta língua ao filho. Venezuela é uma das muitas filhas e netas de Espanha que se deixaram ficar por este mundo. A língua castelhana é rica; mas é menos falada. Se o diplomata tivesse razão, em Caracas, que é o Rio de Janeiro de Venezuela, as companhias nacionais é que agüentariam os maiores impostos, enquanto que as de Londres e New York representariam sem pagar nada. Mas é um desvario, decerto; esperemos outros telegramas.
Relevem o estilo e as idéias; a minha dor de cabeça não dá para mais.
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