COPA DE VACAS MAGRAS
Marinilda Carvalho
"Bem-aventurados os que não entendem nem aspiram a entender de futebol. Deles é o reino da tranqüilidade", repetiria Drummond se aqui estivesse, a três dias da abertura da Copa do Mundo 2002 e a seis da estréia do Brasil. A frase está em livro que reúne textos do poeta sobre futebol, lançado na semana passada por seus netos, aproveitando a Copa. Respira-se futebol na TV, nos jornais, nas conversas. Tempo de rever documentários antigos, de ver novos filmes. E tempo de olheiras também. Aqui nos preparamos para formar a torcida dos zumbis em pijamas. De Kuala Lumpur, na Malásia, e Ulsan, na Coréia, repórteres e comentaristas sofrendo com a mudança de fuso horário exibem rostos cansados e vozes sonolentas antes mesmo do início da competição.
Os grandes jornais já estrearam os cadernos especiais de esporte. Tardiamente, é verdade: em anos anteriores, a farra começava bem antes. E, com exceção do Jornal do Brasil, que não enviou equipe à Ásia, os jornalões vêm salvando a cobertura nesta fase pré-jogos com seus colunistas e matérias que buscam fugir à mesmice da televisão. Porque na TV está difícil: devido ao fuso ingrato, as imagens são praticamente as mesmas em todos os telejornais, de manhã à noite, em todas as emissoras que enviaram equipes ? as provocações dos adversários, os treinos da Seleção, as entrevistas de Luis Felipe Scolari. Que por sinal são torturantes. O telespectador-torcedor não consegue entender por que os jornalistas brasileiros riem tanto das piadas do técnico, especialmente quando ele diz, a uma semana da estréia, que só tem 10 titulares na cabeça…
A Globo dispara na frente, com mais festa, mais imagens, mais entradas ao vivo e até brindes especiais: cenas inéditas com os jogadores nos vestiários, na piscina, na sala de musculação, gravadas com exclusividade pela CBF. (Não se soube de protestos das demais emissoras contra esse privilégio.) Agora, tem que agüentar Fátima Bernardes entrevistando o animadíssimo Galvão Bueno, reclama a observadora Cláudia Rodrigues. "O que é aquilo?" É a Globo, minha gente, tudo a ver!
Na outra ponta fica a CNT, que reproduz imagens do portal Terra: se são bons vídeos na tela do computador, na da TV ficam tão ruins que dá pena. Aliás, para as emissoras sem direito de transmissão a luta é inglória. Luciano do Valle tenta recriar na Band a magia de seu antigo Apito Final, mas as estrelas mudaram todas de canal. "Você vê o jogo lá e volta pra cá correndo", convidam os apresentadores da ESPN Brasil (TVA/Net), que montou programação alternativa sobre a Copa, com vários grupos de comentaristas e analistas, praticamente para as 24 horas do dia. Haja assunto!
Sem dublar não funciona
Lá na Ásia, a falta de assunto é a mesma de sempre. Já foram entrevistar os jogadores brasileiros sobre as declarações do francês Vieira, de que o futebol brasileiro é decadente; dos turcos, que sentem poder derrotar o Brasil (coincidência: muita gente por aqui sofre com essa sensação também). As mesmas respostas, a mesma encheção de lingüiça.
No Globo Esporte, um bom momento: o atacante Jairzinho, o Furacão da Copa, experimentou saltos altos e gabou-se de que em 1970 conseguira igualar-se a Garrincha. No dia seguinte, o programa foi conferir com o capitão Carlos Alberto Torres, que rindo muito decidiu: "Jair, desculpe, gosto muito de você, você jogou à beça, mas Garrincha e Pelé não dá para comparar". Curiosidade: uma bravata do próprio capita foi desmentida pelos velhos filmes agora retirados das latas. Ele disse ter sido o primeiro a beijar a Jules Rimet, em 1970, no México. O filme oficial da Copa de 1966 mostra, na final de Wembley, um jogador inglês dando seu beijinho de felicidade na taça.
Canais que nada têm a ver com futebol aproveitam a Copa. A Fox (Net/TVA) está apresentando uma mesa-redonda com jovens jornalistas argentinos, cuja maior alegria é fingir que o Brasil não concorre ao penta. Até o Discovery Channel (TVA/Net) disse presente, com o documentário Febre do futebol, narrado por Terence Stamp. Canal sério, preocupou-se em mostrar como o futebol-negócio chega a provocar crises internacionais, porque "os arrogantes" clubes europeus não liberam jogadores do Terceiro Mundo para suas seleções nacionais.
Até agora, uma das melhores séries é a do repórter Décio Lopes, que apresenta A Copa na Europa no Sportv (Net). O episódio filmado na França trouxe os números frios, as provas de que futebol é realmente o maior negócio do planeta: você fica sabendo que a Copa 2002 custou US$ 1 bilhão (declarados) ? para um evento de um mês. "Três vezes mais do que a França gastou no Mundial passado", espanta-se um ex-executivo do comitê organizador francês. Fica sabendo também que a Fifa estima que 400 milhões de pessoas vivem do futebol no mundo.
Algumas produções nacionais nada acrescentam ao torcedor brasileiro, a não ser paisagens exóticas de Coréia e Japão. Um exemplo é Conexão Oriente, do próprio (Sportv), em que entrevistas desinteressantes com gerentes de estádios coreanos seguem entrevistas desinteressantes com vendedores de lojas coreanas, tudo legendado, e definitivamente não funciona o som monocórdio da língua coreana. Legendar sai mais baratinho do que dublar ou narrar, não?
Multicâmeras mixurucas
Os filmes oficiais das Copas, produzidos pela Fifa, estão sendo exibidos um a um. E percebe-se que a irritante prática de dar close na torcida durante jogadas importante é, infelizmente, tão antiga quanto a competição. Rostos, barrigas, limpeza de dentes ? tudo parece interessar aos cinegrafistas. Em 1958, a bola parte do pé de Garrincha rumo ao gol. O diretor de imagens dá um inacreditável corte para o rosto de uma torcedora sueca na arquibancada, e só volta ao campo no momento em que a bola entra! De outra feita, em 70, um jogador chuta, há um corte para o goleiro ? e só se vê a bola entrar. Inacreditável. Como naquele tempo não havia o recurso das "multicâmeras", perde-se a trajetória da bola. Cartão vermelho ? que aliás, só surgiria em 70 ? para os diretores!
Pelas falas dos narradores, nota-se também na seqüência dos documentários crescente antipatia pelo Brasil. A antipatia vira desprezo na Copa de 1974: ao contrário da maioria dos filmes, que começa mostrando a viagem dos vencedores do Mundial anterior rumo ao país-sede dos jogos, para defender seu título, o Brasil tricampeão só aparece na semi-final, na derrota para a Holanda. Seleções africanas e sul-americanas são tratadas como times exóticos que se esforçam para jogar à altura dos poderosos europeus. E cometem faltas "selvagens", enquanto os nobres adversários praticam "divididas duras, porém leais". Bem, isso tudo deve ser impressão de jornalista de país exótico…
Surpresa mesmo foi descobrir o que são afinal as tais multicâmeras, o recurso que os canais pay per view do Sportv estão alardeando como a oitava maravilha da televisão. Reproduzo notinha da página 2 do caderno Copa 2002 do Globo de terça, 27/5:
Todos os ângulos
Nos jogos da seleção brasileira, os quatro canais Premiere Esportes, do Sportv, proporcionarão uma visão da partida sob diferentes ângulos. No Premiere 1, uma câmera no alto do estádio mostrará a movimentação tática dos times. O canal 2 acompanhará um dos times (torcida, banco, jogadores etc.) No 3, as mesmas imagens da outra seleção. O canal 4 exibirá reprises em slow motion dos melhores momentos.
Sinceramente? Muito pouco por R$ 130.