A VOZ DOS OUVIDORES
FOLHA DE S.PAULO
"Chapeuzinhos vermelhos, lobos maus, vovozinhas", Ombudsman. copyright Folha de S. Paulo, 18/3/01
"A Folha está morna e acomodada. Sofre de passividade e apatia. Esse diagnóstico, severo, só não é trágico porque foi exposto pela própria direção do jornal, dia 18 de fevereiro, no caderno sobre seus 80 anos.
Admitir fragilidades, como se sabe, embora não as desagrave, é um começo para superá-las ? mas também não passa disso.
De onde vêm a mornidão, o acomodamento, a passividade, a apatia da Folha? Três explicações genéricas se destacam:
1) o jornal não tem sabido responder de modo enfático à situação pós-Muro de Berlim, em que as cargas ideológicas se obscurecem e os fatos cobram enfoque especializado, mais profissional;
2) a ascensão ao governo de um setor identificado com a Folha nos anos 70 e 80 (o tucanato) e o seu engajamento num projeto oposto às idéias de 20 anos atrás teriam criado, diz o caderno, uma ?esquizofrenia? nas relações do jornal com o poder;
3) a ?revolução tecnológica? e a Internet expandiram e viraram de ponta-cabeça as formas de acesso a dados e informações, ?obrigando o jornal ? impresso ou na tela ? a se reorientar?.
Tudo bem. São causas profundas, de difícil administração. Mas existe outra, comezinha, sub-reptícia, que vem de muito antes e que, no quadro resumido acima, apenas se agravou.
Trata-se da confusão entre comunicação e informação.
Confusão astuta
Para definir uma e outra, utilizo itens retirados do livro A Saga dos Cães Perdidos, do professor Ciro Marcondes Filho (Hacker Editores, 2000):
Comunicação: o jornalista recebe de graça a ?notícia?, ?angulada segundo o interesse do informante?; a ?notícia? tende a reproduzir o conhecido, a reforçar valores e idéias.
Informação: o jornalista busca a notícia; pesquisa, burila dados; observa, investiga; tende a produzir algo novo, conflitivo.
Parece fácil distinguir uma coisa da outra. Mas essa confusão tem muito de velhaca: procura a turbulência do dia-a-dia e a pressa dos corredores para se instalar. E se instala mesmo.
É fenomenal a quantidade de dados despejada nas Redações, a abundância de lobbies ou ações promocionais camufladas. É despudorada a ação de conglomerados que embaralham propaganda e entretenimento, notícia e espetáculo.
Age também a pressão formal dos cada vez mais ativos ? e a seu modo competentes ? departamentos de relações públicas, áreas de comunicação de instituições ou governos, grupos disso ou daquilo, organizações não-governamentais daqui e dali.
Vale para o jornalismo cultural e suas estrelas. Para o jogo de pega-ladrão da política, em que os jornais não raro fazem sem saber o papel de ?mensageiros?. Vale para a economia, seus empenhos e conveniências. Para a ciência ou para o esporte.
Com isso não quero dizer que jornalistas, inclusive os da Folha, sejam chapeuzinhos vermelhos a passear no bosque alegremente, nem que as assessorias ou áreas de comunicação se escondam atrás de árvores como lobos maus de dentes afiados. Muito menos poderia dizer que os leitores sejam vovozinhas acamadas, em atmosfera de remanso, à espera de suas cestas de doces.
Como toda criança sabe, os maus e os bons podem ser encontrados em qualquer parte, às vezes onde menos se espera. Com a diferença de que aqui não existe a figura do caçador, pois a história nunca acaba.
Quero afirmar, sim, que na confusão floresce um ambiente onde fica difícil evitar tropeços. No caso do jornalista, se a atenção fraqueja diante dos empurrões dessa espécie tentacular de comunicação ? hoje mais do que nunca em expansão ?, asneiras se reproduzem às pencas, reputações dignas são atropeladas, divulgam-se reclames sem querer. O jornal tende a perder sua agenda autônoma; ele se retrai; comprime investigações.
É preciso admitir: nos jornais, e na Folha, há comunicação demais e informação de menos.
Direito à informação
O projeto editorial do jornal defende que ?é preciso maior originalidade na identificação dos temas a ser objeto de apuração, bem como uma focalização mais precisa de sua abordagem?. Prega ?redobrada vigilância quanto à verificação prévia das informações, à precisão e inteireza dos relatos, à sustentação técnica das análises e à isenção necessária para assegurar o acesso do leitor aos diferentes pontos de vista suscitados pelos fatos?. O que mais se pode querer de um jornalista?
Ocorre que entre os princípios desse projeto e a sua aplicação vai a mesma distância que se pode identificar entre os termos da Constituição Federal ? todos são iguais perante a lei ? e a realidade social brasileira.
Crise, já se disse, é quando a situação anterior desaparece sem que uma nova situação já se tenha estabelecido. A Folha reconhece o seu próprio embaraço, e isso é bom, mas desde que os jornalistas não menosprezem as ?discussões teóricas?, não repilam a auto-reflexão radical; desde que deixem de desdenhar as ponderações ou as críticas de terceiros ? inclusive e principalmente dos leitores ? sobre o seu trabalho.
Sem isso é impossível romper a letargia, o tom oficioso de muitos textos, o posicionamento acrítico em relação aos acontecimentos e às tentativas, mais ou menos sutis, de ?plantação? de matérias.
Está em jogo, além do ofício do jornalista, a sobrevivência do próprio jornalismo como instrumento da sociedade para exercer o seu direito à informação.
Sob a pressão dos leitores (essa, sim, indispensável), o ombudsman existe para auxiliar no desenlace dessa crise. É o que procurarei fazer -de preferência abordando assuntos e problemas de forma menos abstrata do que nesta coluna de estréia."
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"A casa do leitor", Ombudsman. copyright Folha de S. Paulo, 18/3/01
"Recebi ao longo desta primeira semana inúmeros e-mails, fax e cartas com desejos de boa sorte, coragem e sobretudo pedindo que eu jamais deixe de zelar pelos interesses dos leitores.
Estes, ficou claro para mim nos últimos dias, sabem muito bem para o que serve a figura do ombudsman, instituída no jornal desde 1989: para representá-los fielmente no jornal. Um deles, o senhor Fédias Ramos Bjornberg, de Sabará (MG), em carta redigida à mão, começou dizendo: ?Boas-vindas à casa do leitor?.
Muitos escreveram também para elogiar o trabalho de minha antecessora, a jornalista Renata Lo Prete. Vale acentuar: ninguém de modo protocolar.
Um e-mail que recebi com esse conteúdo, aliás, veio da minha própria casa, traz no pé a minha própria assinatura -acredite o leitor- e foi aberto por mim no computador da sala em que escrevo agora, aqui na Folha. Ele diz: ?É, meu caro, não vai ser nada fácil sucedê-la?."
A Voz dos Ouvidores ? próximo texto