Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Bernardo Ajzenberg

FOLHA DE S. PAULO

"A fraude além dos fatos", copyright Folha de S. Paulo, 28/9/03

"Encerrado o inquérito policial, na quinta-feira, a farsa da ?entrevista? com ?membros? do PCC no ?Domingo Legal? de 7/9 consolidou-se como fruto podre de um ambiente selvagem onde a disputa por audiência (leia-se faturamento) parece tudo justificar em termos éticos, onde restos de jornalismo se misturam com entretenimento e, pior, submetem-se a ele, deixam-se sufocar por suas regras próprias, nas quais inexiste diferença entre realidade e ficção.

Qual é a função social da TV? Como foi possível chegar a tamanha desfaçatez? Até onde vai a reponsabilidade do apresentador (Gugu)? E a da emissora (SBT)? Qual é o limite entre notícia e diversão?

Cabe ou não cabe aplaudir a suspensão da edição do programa do dia 21, decidida como forma de punição em liminar judicial? O que tende a surgir agora?

As interrogações suscitadas pelo caso são várias, e a maioria só terá solução mais tarde, na continuidade do debate público, no desenrolar do imbróglio em corredores da polícia, do Judiciário, da Esplanada (Comunicações e Justiça) e do SBT.

Como ombudsman, porém, procuro responder, aqui, a uma outra pergunta: considerando o papel do jornal na cobertura de um evento tão grave, complexo e polêmico, o leitor da Folha tem sido bem servido, não só para saber o que se passa, mas para entendê-lo e, a partir daí, formar uma opinião?

Relendo o que foi publicado desde 10/9, a resposta, na minha avaliação, é sim… e não.

Na superfície

A Folha acompanhou de perto os fatos (denúncias da fraude por parte de concorrentes da TV, iniciativas do Ministério Público e da polícia, as movimentações públicas do apresentador e do SBT, de seus subordinados encarregados da ?matéria?, dos ?atores? Alfa e Beta, a decisão judicial de suspender o programa do dia 21, os prejuízos pecuniários do SBT e de Gugu, o dia-a-dia do inquérito policial).

Colunistas de diferentes cadernos ?entraram? no tema, a maior parte abordando o ?caldo de cultura? social e cultural da farsa e, num segundo momento, a decisão polêmica da Justiça (censura prévia ou sanção econômica exemplar?).

Não vi, também, desprezo pelo ?outro lado? (o fato é que o SBT e Gugu impuseram a si próprios e aos demais a lei do silêncio).

Ao menos até a edição de sexta-feira, porém, a Folha deixou a desejar em alguns pontos essenciais que ajudam a constituir a particularidade do jornalismo impresso: a faculdade de propiciar, estimular e ampliar a reflexão do leitor, para além das reações emocionais imediatas.

A Constituição tem artigos específicos sobre comunicação (liberdade de expressão, responsabilidade social). O Código Brasileiro de Telecomunicações prevê punições (multa, suspensão, cassação) às instituições e sujeitos que o desrespeitem. Existem a Lei de Imprensa, o Código Penal.

Você, leitor, consegue explicar, a partir do que se publicou, como tais textos se relacionam com o caso Gugu-PCC?

Do quê, afinal, são acusados, formalmente, os que promoveram a fraude? E a emissora? Quais as punições cabíveis? Como se estrutura a hierarquia no SBT e no ?Domingo Legal? para esse efeito?

Em quais artigos se baseou a Justiça para suspender, com liminar, o programa do dia 21 (é a primeira vez que uma decisão desse tipo é tomada desde 1988)? O que dizem esses preceitos?

Como é o esquema de vigilância do Ministério da Justiça sobre os programas de TV? Ele tem funcionado na prática?

Em que pé se encontra a discussão sobre a implementação de um código de ética ou de uma auto-regulamentação (hoje inexistentes) para as emissoras de TV? O que prevêem as leis de outros países sobre o assunto?

Viés e munição

Nesse terreno -o da contextualização, aprofundamento, fundamentação e solidez do noticiário-, a Folha não foi bem.

Não só pela falta de precisão, de informação ampliada e de didatismo, mas também por apresentar, nas declarações e opiniões publicadas no noticiário, certo viés contrário à decisão que suspendeu o programa -mesma posição assumida, aliás, pelo jornal em editorial de 23/9, defendendo punição, sim, mas após julgamento, conforme a lei, e caracterizando a suspensão como censura prévia, inconstitucional.

É a minha visão pessoal, até, mas há muita gente (indivíduos e instituições) competente, democrática e de boa-fé que pensa diferente (a suspensão teria sido uma sanção, não censura) e que não foi devidamente contemplada nas reportagens (com entrevistas, por exemplo).

O único artigo técnico (em termos jurídicos), o do colunista Walter Ceneviva, em 21/9, antecipava a linha do editorial. Na edição seguinte, ao reunir declarações de outros especialistas, a reportagem o fez de modo breve, superficial, amontoando frases pouco consistentes num pequeno texto chamado ?Especialistas divergem sobre decisão do TRF?.

Registre-se a seção ?Tendências/Debates? de ontem, com artigos contra e a favor da liminar.

O jornal acertará mais, creio, se rearranjar seu enfoque noticioso, municiando melhor os leitores -além dos fatos do dia-a-dia- para que eles, como cidadãos, possam atuar de modo consistente numa discussão difícil que apenas começou.

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"Três casos de Istambul", copyright Folha de S. Paulo, 28/9/03

"O encontro da Organization of News Ombudsmen, em Istambul (Turquia), semana retrasada, discutiu, entre outros pontos, três casos significativos sobre o papel do ?advogado dos leitores?. Vale a pena registrá-los.

1) ?Le Monde? (França) ? Ombudsman desde 1998, Robert Solé relatou o episódio em que sofreu censura do jornal. Foi na coluna de 2 de março deste ano, da qual a direção suprimiu 15 linhas. Estas traziam a opinião de que o jornal não devia reagir só de forma genérica às acusações contra sua cúpula contidas no best-seller ?A Face Oculta do ?Monde? (lançado no início do ano), mas sim esclarecendo pontos graves. Revelavam, ainda, que a Redação estava recenseando erros do livro e os divulgaria ?cedo ou tarde?.

Em vez de se demitir, Solé preferiu, na semana seguinte, republicar o trecho censurado, explicando o ocorrido. Ao lado, saiu um texto explicativo, com pedido de desculpas, assinado pelo diretor de Redação.

2) ?The New York Times? (EUA) ? Apesar de louvar a decisão do jornal de criar um ombudsman (?public editor?, ainda não indicado) após o caso Jayson Blair, o encontro levantou dúvidas sobre itens que podem limitar sua força: a) a falta de uma coluna com local e dia fixos no jornal (prevê-se que ele escreva, mas sem se estabelecer regularidade); b) o fato de estar hierarquicamente subordinado ao diretor de Redação em vez de ter posição formal independente da estrutura interna; e c) o prazo de um ano de mandato, em experiência, sem maiores garantias. A conferir.

3) BBC ? Admitidos os erros do jornalista Andrew Gilligan no caso que gerou embate histórico entre o governo e a rede pública britânica, além do suicídio do cientista David Kelly, e constatadas a partir daí falhas de controle interno na BBC, discute-se, ali, a criação de um ombudsman.

Em artigo no diário ?The Guardian? (20/9), Alan Rusbridger, diretor de Redação desse jornal e que fez palestra em Istambul, defendeu a idéia: ?Quanto estrago e quanta tragédia poderiam ter sido evitados se a organização tivesse publicado com rapidez um equilibrado e cauteloso esclarecimento sobre os pontos da reportagem de Gilligan que não tinham como ser defendidos?. Também a conferir."