FOLHA DE S. PAULO
"Tão perto, tão longe", copyright Folha de S. Paulo, 7/12/03
"O presidente Lula faz uma viagem delicada a países árabes. Os jornais retomam a ?disputa? por novas revelações da Operação Anaconda. Com a acusação formal contra um empresário, o caso Santo André (sequestro e morte do prefeito Celso Daniel) entra numa nova fase.
Apesar desses assuntos da semana, de indubitável interesse geral, o que mais me chamou a atenção, na Folha, foram duas cartas publicadas na quinta-feira no Painel do Leitor.
A primeira reclamava que ?a questão da falta de chuvas e do nível dos reservatórios de água na Grande São Paulo não esteja recebendo da mídia o tratamento que merece?. O leitor relacionava várias interrogações sobre o tema, cujas respostas a mídia, inclusive a Folha, não dá.
A segunda carta protestava contra o fato de o jornal, apesar de destacar na Primeira Página de terça (2) uma foto de pessoas ?abraçando? o Theatro São Pedro, não ter publicado nada, em páginas internas, com detalhes sobre a demolição de parte daquela tradicional instituição.
Os dois pontos -abastecimento de água e demolição de um teatro- têm algo em comum: não são capazes de abalar as estruturas do país, mas dizem respeito, muito diretamente, à vida de milhares de pessoas de um bairro ou de milhões delas em toda uma região. Referem-se a notícias de utilidade pública.
Por coincidência, no dia anterior, eu tinha trabalhado num questionário de pesquisadores da Universidade de Piura (Peru) sobre o ofício de ombudsman. À sexta questão (?Qual considera o maior defeito do meio de comunicação no qual trabalha??), eu respondera: ?Ignorar, frequentemente, assuntos do dia-a-dia?.
Parece consensual, hoje, em estudos sobre comportamento, a existência de uma tendência explícita à individualização, à supremacia dos interesses pessoais ou locais, em detrimento dos interesses, digamos, populacionais mais amplos.
A Folha não tem de se curvar perante a ?ideologia? predominante de plantão, mas tampouco seria sábio ignorar aquilo que ela indica. Goste-se ou não, o jornal deve se obrigar a levar em conta essa situação no momento de definir as suas prioridades.
Não está em questão a importância de a Folha priorizar e investir pesadamente, como costuma fazer, em casos de grande relevância institucional, política e econômica para o país.
Cada vez mais, no entanto, um dos traços de um jornalismo capaz de estar à frente, de modo pró-ativo, e, ao mesmo tempo, muito próximo do seu público, é a consistência em priorizar na sua pauta, de maneira sistemática -e não à base de soluços ou de cobranças pontuais-, ao lado dos grandes eventos, aqueles outros com aparência de menores porém potencialmente cheios de implicações imediatas para a ?carne? do leitor.
As duas cartas citadas no início desse texto trazem exemplos de que nem sempre o jornal tem estado à altura desse desafio."
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"Descalibrado", copyright Folha de S. Paulo, 7/12/03
"Dado o bombardeio de informações sobre quem lê jornal, ouve rádio, vê TV e/ou navega na internet, uma das vantagens específicas que a mídia impressa oferece é a hierarquização explícita das notícias, na qual o leitor, por menos que se dê conta disso, confia quase cegamente.
Exemplos da semana indicam, porém, que a Folha derrapou nesse quesito.
A seleção brasileira ganhou domingo passado a Copa do Mundo de vôlei masculino. A notícia, na segunda-feira, recebeu uma foto na capa do jornal, sob material bem maior da conquista antecipada do Campeonato Brasileiro pelo Cruzeiro.
Em Esporte, havia apenas um texto noticioso, sem imagem, além da coluna semanal sobre a modalidade. Menos do que o merecido, acredito, para o feito (uma ?campanha histórica?, como dizia o próprio texto, com o Brasil saindo vitorioso das 11 partidas que disputou).
Na terça, outro desequilíbrio, em sentido inverso: o jornal dedicou o alto de uma página, em Brasil, para declarações de Lula no programa ?Café com o Presidente? que não traziam, a rigor, nenhuma novidade.
Já na quinta, ao contrário, a notícia de que a Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovara o polêmico Estatuto do Desarmamento (manchete, por exemplo, no jornal ?O Globo?, o que me pareceu um exagero, como observei em crítica interna) foi tratada apenas numa nota ?Panorâmica?, ao pé de uma página em Cotidiano.
Embora, em tais casos, as soluções não possam ser achadas como na aritmética, houve, creio, flagrante incoerência – a qual não passou despercebida por leitores que reclamaram dessa questionável hierarquização."
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"Jornalistas vendedores (2)", copyright Folha de S. Paulo, 7/12/03
"Uma informação grave se espalhou pelas Redações e sites especializados no meio da semana: a suspensão, pelos jornais ?O Globo? e ?O Estado de S.Paulo?, da coluna diária do jornalista Joelmir Beting.
O jornal do Rio deu o aviso a seus leitores na quarta-feira (3). O diário paulista, no dia seguinte. Motivo: Beting, um dos pioneiros e mais conhecidos jornalistas da área econômica do país, resolveu ser garoto-propaganda de um banco. Veja reproduções no quadro ao lado.
Em comunicado interno, reproduzido no site ?Comunique-se?, o diretor de Redação do ?Globo?, Rodolfo Fernandes, argumenta: ?Sua decisão de passar a aceitar convites para fazer propaganda comercial não é compatível com a publicação da coluna e contraria as Normas de Conduta do jornal (…) são funções inconciliáveis uma coluna -especialmente, no caso, de economia- e a propaganda de serviços de um banco?.
No mesmo site, Beting escreveu que nada no seu contrato o impede de ?fazer publicidade comercial, propaganda política ou passeata de protesto?. Para ele, desde que haja transparência, e não ?merchandising jornalístico?, não há erro na decisão.
Já comentei a questão aqui (25/5), a partir de um caso relativo a colunista da própria Folha.
O que está em jogo não são a ética individual ou as opções do jornalista Beting, mas sim o estado de suspeição, a exposição e a fragilização a que ele submete, mesmo sem querer, sua coluna e os veículos em que é publicada.
Todo leitor teria o direito de se perguntar, a partir do seu duplo casamento (publicidade e jornalismo), qual a real capacidade de isenção do colunista em relação a eventuais assuntos que venham a ?cruzar? de alguma forma com os interesses da instituição cujos serviços ele ajuda a vender. O conflito está, por princípio, estabelecido.
Aqui, seja qual for a índole do protagonista, a credibilidade jornalística, mesmo sendo um valor subjetivo, fica automática e objetivamente comprometida.
Ainda mais num momento de crise das empresas de comunicação, em que são crescentes as pressões no sentido de se derrubar a tradicional e indispensável barreira entre publicidade e noticiário, a atitude do ?Globo? e do ?Estado? merece elogio."