Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Bernardo Ajzenberg

FOLHA DE S.PAULO

"É dose!", copyright Folha de S.Paulo, 15/9/02

"O primeiro aniversário dos ataques terroristas de 11 de setembro recebeu algumas edições especiais- a Folha e o ?Globo? no domingo passado, o ?Estado de S.Paulo? na quarta.

O caderno da Folha (12 páginas), sem novidades em relação à investigação jornalística sobre os atentados, priorizou análises e balanços setoriais (geopolítica, cultura, economia).
Destacam-se, nessa edição, certa timidez na abordagem crítica em relação aos EUA (falhas na segurança, infrações contra liberdades individuais ou direitos humanos em nome da ?guerra contra o terrorismo?, por exemplo) e uma escassez em matéria de reportagens sobre a visão da efeméride fora do eixo EUA/Europa, em especial nos países árabes.

Chama a atenção esse desequilíbrio agora, principalmente diante das edições históricas da Folha sobre os mesmos eventos, no ano passado, caracterizadas, no seu conjunto e na sua sequência, por um tratamento mais equânime em relação às forças em conflito.

O caderno especial do ?Globo? (16 páginas), embora com tratamento mais superficial, mesclou tendências e reportagens ilustrativas. O do ?Estado? (12 páginas) reproduziu material do ?New York Times? (cujo caderno especial, dia 11, saiu com 48 páginas), numa linha que conseguiu unir textos de tom nitidamente patriótico (elegias a Nova York e aos milhares de mortos) a outros de natureza crítica em relação ao governo americano.

Em nenhum desses casos, porém, surgiram revelações inéditas de peso sobre os acontecimentos propriamente ditos. É como se, um ano depois, no momento em que o presidente George W. Bush tenta trocar Osama bin Laden por Saddam Hussein como inimigo número 1, a investigação jornalística sobre a queda das torres gêmeas e sobre a Al Qaeda se pusesse, mesmo nos EUA, em compasso de espera.

Realidade e ficção

A novidade na efeméride foram as imagens na TV, em especial os documentários com cenas inéditas do terror. Um destaque cabe aqui para a impactante filmagem dos irmãos franceses Geodon e Jules Naudet, sob o título ?9/11?.

E foi nesse terreno que a Folha cometeu um deslize no mínimo curioso, reflexo de como a falta de checagem sistemática de dados pode comprometer serviços oferecidos pelo jornal.
No domingo, o TV Folha anunciava que a Bandeirantes exibiria às 22h15 de quarta (11) o filme ?O Dia em que a Terra Parou?, uma ficção científica de 1951, dirigida por Robert Wise.

Pois, na mesma edição, uma reportagem em outra página sobre as celebrações do dia 11 apresentava, entre outros, como seria o documentário ?O Dia em que a Terra Parou?, preparado pela mesma emissora para as mesmas 22h15 da quarta, sob comando de Roberto Cabrini.

Instalava-se a confusão: afinal, o que seria exibido pela Band, o filme ou o documentário? Pura desinformação.

Segundo relato que recebi da Redação, na lista de filmes a serem mostrados entre os dias 9 e 15 enviada pela Bandeirantes, constava o item ?Especial 11 de Setembro – O Dia em que a Terra Parou?, sem ficha técnica.

A Redação, então, ?supôs? que se tratasse do filme clássico de Wise, pertencente ao acervo da Band, e incluiu sua sinopse no TV Folha -sem se dar conta, ao mesmo tempo, de que no quadro em que se apresentavam os programas especiais sobre os atentados também havia um documentário chamado ?O Dia em que a Terra Parou?.

Repetição

Não bastasse o desencontro numa única edição -o qual não mereceu nenhuma correção, diga-se, nos dias seguintes-, houve algo ainda pior: simplesmente a repetição do problema, na Ilustrada, três dias depois.

As mesmas duas informações contraditórias, agora lado a lado, com o filme de Wise recebendo inclusive ficha completa: sinopse do enredo, nomes do elenco e até mesmo avaliação (três estrelas).

Tudo isso depois de pelo menos um jornal concorrente (?O Estado de S.Paulo?) ter publicado desde o início, domingo e quarta, a informação correta.

Quem, após ler a Folha naquele dia 11, acompanhou a programação da Band à noite e viu, na tela, o documentário apresentado por Cabrini -não a ficção científica de Wise- teve motivos para se sentir ludibriado.

Qualquer que seja a explicação para a ?trapalhada?, dificilmente ela aplacaria a indignação de um leitor de Presidente Prudente (SP), assim resumida em e-mail: ?Prometi que a anterior seria a última mensagem, mas não resisti a mais um furo homérico da seção ?Filmes na TV? da Ilustrada… E a besta aqui, confiando na Folha, ficou esperando pela exibição do filme com a intenção de gravá-lo. É dose!.?"

"Privilégios", copyright Folha de S.Paulo, 15/9/02

"Na última quinta-feira, o correio eletrônico de dezenas de jornalistas em todo o país recebeu a seguinte mensagem:

?Caro jornalista, a Suzuki do Brasil está com uma promoção especial para você. Até o dia 30 de setembro os colegas da imprensa de todo o Brasil que quiserem comprar um carro zero-quilômetro, ano 2002, terão descontos especiais. Confira na tabela abaixo os modelos disponíveis e o valor da economia. Se houver interesse, entre em contato. Enviaremos mais informações para que você também leve a vida num Suzuki?. Na tabela, cinco modelos, com descontos de 13,5% a 16,4%.

Não é de hoje que jornalistas recebem ofertas especiais. Em meados do século passado, isso era até mesmo previsto institucionalmente (isenções em impostos, por exemplo).

A possibilidade de compra de automóveis com descontos atraentes espalhou-se nos corredores das Redações nos anos 80, e atrações semelhantes, na verdade, nunca deixaram de existir.

Conversei com a assessora de comunicação da Suzuki, Rosa Arrais. Ela disse que seu objetivo, com a promoção, foi apenas ?aproximar a empresa da imprensa de forma simpática e transparente, sem segundas intenções?.

Importa aqui não tanto a meta ou o método da empresa, mas o fato de considerar ?natural? a absurda existência de privilégios, no mercado, para jornalistas. Dada a força econômica crescente da informação, qual pode ser o sentido disso?

Não seria a mesma lógica que considera ?normal? tentar evitar uma punição na estrada com o uso de algumas notas?

Assim como quanto ao policial rodoviário na aplicação da multa, não se pode afirmar que todo jornalista vai necessariamente deturpar conteúdos de seus textos em favor de alguma empresa que em algum momento lhe tenha outorgado um favorecimento pessoal.

Mas não se trata, aqui, de uma questão apenas de moral individual. O jornalista Eugênio Bucci, no livro ?Sobre Ética e Imprensa?, argumenta:

?O problema não é o que ele (jornalista) pensa de si mesmo e o fato de ele jurar que continua sendo isento mesmo desfrutando de tanta generosidade alheia -o problema é que, assim, a sua independência deixa de ser explícita. E surgem as aparências de que, não sendo explícita, ela talvez não seja tão autêntica?.

A questão dos privilégios aos jornalistas, para quem visa um jornalismo crítico, independente, ultrapassa os limites da individualidade. Deve ser vista como algo formal, da estrutura da profissão -expressão de Bucci.

Não por acaso, manuais de Redação, como o da Folha, trazem verbetes e princípios bastante restritivos em relação à prática.

O que não se entende é como, até hoje, embora com mudanças na forma, ofertas espetaculares continuem a ser apresentadas -e, ao que se sabe, em boa parte aceitas-, até mesmo por e-mail."