Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Bernardo Ajzenberg

FOLHA DE S.PAULO

"Razão e emoção", copyright Folha de S.Paulo, 3/11/01

"Durante o governo Fernando Henrique Cardoso, em especial no segundo mandato, a Folha foi por vezes impiedosa.

Na economia, destacou-se por enfatizar notícias negativas -o que lhe valeu por parte de muita gente a pecha de pessimista, enquanto outros a consideravam apenas realista.

Sucederam-se no noticiário casos polêmicos, espinhosos para o governo: compra de votos pela reeleição, suspeitas de irregularidades nas privatizações, Dossiê Caribe, Caso EJ, entre outros.

Nada mais natural, agora, que esse posicionamento cético e distanciado -derivado de seu projeto editorial- se explicite diante do novo governo.

Daí a oportunidade do editorial ?Mais democracia?, publicado na capa de segunda-feira, que terminava assim:

?Ao saudar a legitimidade do presidente Lula, a Folha se compromete a manter sua linha editorial de independência e crítica, na convicção de que o melhor serviço que um jornal presta ao país é iluminar, questionar e discutir a atuação de seus governantes?.

Pode ter soado antipático por sair no ?day after? da vitória do PT. Porém, ante o clima de festa e euforia que tomou conta de grande parte das ruas e da imprensa -no primeiro caso, genuíno, esperado e compreensível, no segundo, nem tanto-, trata-se de uma postura legítima, transparente, saudável.

O quadro ao lado mostra, apenas para dar um exemplo, como os jornais editaram nas capas de quarta-feira o encontro entre FHC e Lula. Além de não ter dado ao histórico evento um título laudatório ou emocional, a Folha foi o único jornal cuja foto não tinha como centro os políticos; o abraço entre eles dividia espaço com a mesa presidencial simbolicamente vazia.

Mais uma vez, pode parecer birra do jornal. Penso, no entanto, que se trata de uma abordagem ?fria?, para um leitor que busca análise e informação e que deve ter outros fóruns mais apropriados para festejar ou lamentar o resultado eleitoral.

Desafio

Chega, porém, de elogios; o ombudsman não é pago para isso. As dificuldades, para a Folha, já começaram, e seu maior desafio é justamente aplicar aquela linha, definida no editorial, de forma criteriosa, equilibrada, com qualidade.

Para isso, caberia mergulhar profundamente na análise política e sociológica dos resultados das eleições estaduais e nacional -o que se fez até agora de modo superficial ou só quantitativo.

Promover em suas páginas o debate sobre os diferentes projetos e planos apresentados -algo que se esboçou, creio, no caso do Fome Zero.

?Descobrir? e revelar aos leitores personagens que começam a ocupar a cena política, nomes até há pouco ignorados, como Palocci, Gushiken, Dulci, Graziano e outros que virão. Até agora, seus perfis apresentados ao longo da semana pelo jornal foram minguados, esqueléticos.

Na situação que se abre, o noticiário deveria obrigar-se a sondar continuamente, com entrevistas ou pesquisas, a receptividade de diferentes setores -empresários, trabalhadores, servidores, sem-terra, mercado financeiro- aos passos do governo.

Simbologia

Ao contrário do que se fez nos primeiros dias da semana, quando foram subestimados elementos típicos de discursos ou de atitudes de Lula, uma dedicação específica caberia aos aspectos simbólicos próprios desse personagem, sua trajetória, estilo, as particularidades na relação com seu partido e adversários.

Fazer tudo isso -e obviamente transmiti-lo ao leitor- requer da Folha um reajustamento no olhar, uma reeducação, a busca de novas fontes de notícia, um esforço concreto no sentido de se reaparelhar tecnicamente.

Tudo isso, não custa enfatizar, sem se deixar levar pela emoção, por ímpetos adesistas ou oposicionistas -próprios de militantes e de partidos, não de uma imprensa verdadeiramente livre.

Lula e a Globo

Um tema ?quente? da semana foi a exclusividade dada pelo presidente eleito à maior rede de TV do país na noite de domingo (entrevista ao ?Fantástico?) e na segunda-feira (mais de uma hora no ?Jornal Nacional?).

A parceria só se ampliou na quinta-feira, com a participação de Lula em dois programas da TV Record.

Pode-se criticar o tom excessivamente emotivo e laudatório do material apresentado pela Globo e até especular sobre suas eventuais motivações extra-jornalísticas. Mas sua busca pela exclusividade -dever de todo órgão de imprensa- não está em questão.

A rigor, quem deve explicações é o presidente eleito.

Por que, rompendo toda lógica pública, não convocou antes de mais nada uma entrevista coletiva, para depois dar exclusivas?

Pensar nessa atitude como revide contra veículos que Lula possa julgar terem sido prejudiciais à sua campanha me parece primário, lógica juvenil à qual ele próprio, creio, não se submeteria.

Se o acordo com a Globo aconteceu antes ou depois da votação, é secundário. O problema é o acordo em si.

As dificuldades financeiras das empresas de mídia -com destaque para as Organizações Globo, com uma dívida bilionária- têm sido reveladas, ainda que bem menos do que o desejável, pela própria imprensa.

Fala-se na possibilidade de uma ?ajuda? direta do governo ao setor, ajuda que deu passos concretos, indiretamente, com a regulamentação da entrada do capital estrangeiro por meio de medida provisória editada por FHC a poucos dias do primeiro turno.

Num quadro como esse, ante a condescendência de Lula com um interesse privado (a exclusividade das entrevistas) e o beneplácito com que foi presenteado pela Globo (acresça-se um ?Globo Repórter? na sexta), o público tem o direito de se perguntar, como fizeram ao ombudsman alguns leitores, inclusive eleitores do líder petista: por que ele fez isso? Eis uma bela pauta.

Conto do vigário

Reportagem do Folhateen de 7 de outubro contava o caso de um modelo brasileiro, Pedro Andrade, 23, que, após batalhar dois anos em Nova York, acabara de gravar, como protagonista, um novo filme do célebre diretor americano David Lynch.

O texto dava detalhes sobre o filme, a filmagem, suas bizarrices. Andrade era pintado como futuro astro.

Ao final, a reportagem dizia que, se pudesse escolher outro diretor para trabalhar, o jovem gostaria de Walter Salles, Almodóvar ou Woody Allen, e encerrava-se com uma pergunta: ?alguém duvida??.

Pois era o caso de duvidar, e muito.

A história contada pelo modelo, amparado por uma assessoria de imprensa no Brasil, não passava de uma farsa.

Como relatou o mesmo caderno no último dia 21, não havia filme algum, Andrade nunca estivera com Lynch etc.

Por que o jornal -e não foi o único veículo da imprensa brasileira a fazê-lo, cabe registrar- caiu nesse engodo?

Porque descumpriu um princípio básico: checar informações, cruzar dados de suas fontes.

O editor do Folhateen, Cássio Starling Carlos, admite o ?erro primário? e diz, taxativo:

?A situação gerada, apesar de constrangedora, ajuda a servir de lição. Ela demonstra a indisfarçável servidão voluntária do jornalismo às assessorias de imprensa que servem ao círculo do marketing pessoal. Em vez de informar e, sobretudo, auxiliar na formação do gosto, o jornalismo cultural foi convertido (graças a nós, jornalistas) em peça-chave da cultura do fuxico?."