Saturday, 21 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Bernardo Ajzenberg

FOLHA DE S.PAULO

"O peso do erro", copyright Folha de S.Paulo, 10/11/02

"Caminhamos em gelo fino. Qualquer notícia, ou falta dela, acaba sacudindo o mercado, que está muito receoso. Especialmente os investidores estrangeiros, que ainda não dão o benefício da dúvida ao PT.

O parágrafo acima foi formado com frases de ?gente do mercado? publicadas na imprensa na quinta-feira. No dia anterior, uma reportagem do Washington Post registrava: ?Os mercados financeiros internacionais ainda estão efetivamente apostando que o Brasil seguirá o caminho da Argentina, que deu um calote na sua dívida no início do ano e mergulhou numa profunda crise econômica. Tais previsões, quando feitas pelos mercados, têm a tendência sórdida de se transformar em profecias que se auto-realizam?.

Pois foi esse clima de tensão e dúvidas que a Folha agitou ainda mais ao divulgar, na quarta-feira, uma informação com um erro crasso.

Numa nota de redação confusa e em muitos pontos obscura, a Prefeitura de São Paulo anunciara, em resumo, que em vez de amortizar uma parcela que vencia de sua dívida com a União, preferira adiá-la e assumir um aumento dos juros, conforme opção prevista no contrato de refinanciamento assinado com a União em 2000.

Na edição nacional, porém, um título na capa dizia: ?Prefeitura de SP vai dar calote de R$ 3 bi na União?. Na reportagem, o calote também aparecia.

Percebendo seu erro, o jornal trocou o título da capa ainda em parte da edição nacional. Mas a palavra ?calote? -que implica ruptura de contrato- ficou no texto, para só sumir totalmente na edição SP/DF (veja o quadro acima). Um ?Erramos? na edição nacional de quinta admitiu a falha.

Fosse a situação econômica e política do país menos tensa, talvez as consequências do erro não tivessem sido tão graves.

Uma entrevista à Folha na qual a prefeita paulistana falava no assunto, em 8 de abril de 2001, por exemplo, tinha como título ?Marta dará calote de R$ 2,1 bi em 2002?, sem que o uso da expressão, na época, tenha causado grande transtorno (não significa, claro, que um erro justifica outro erro).

O fato é que, na quarta, diante de um noticiário enviesado, o dólar, que caíra por cinco dias seguidos, subiu 3,83%; azedou-se o humor do mercado; e especulações negativas ressurgiram sobre a postura do futuro governo quanto a contratos em geral.

Esclarecido aquilo que se anunciou depois como um ?mal-entendido?, um ?desencontro de informações?, cabem pelo menos duas conclusões.

Primeiro: a Folha não soube interpretar tecnicamente a decisão. Tivesse consultado algum especialista em contas públicas, checado a informação a fundo com a Secretaria das Finanças, consultado seus próprios arquivos -ou seja, tivesse feito o básico de uma reportagem preocupada com a exatidão-, é lícito supor que teria dado um outro tratamento à notícia.

Não só evitaria o perigoso, delicado e sensacionalista uso da palavra calote, como deixaria claro que a medida adotada era opção prevista em contrato -o que não aconteceu em nenhum momento no jornal de quarta (inclusive na edição SP/DF).

Segundo: falharam os filtros internos de que o jornal dispõe para evitar que erros cometidos na origem da apuração jornalística perdurem até a impressão, ainda mais em matéria com presença na sua primeira página.

Não estamos falando de jornalismo ao vivo (rádio, TV) ou em tempo real (internet).

O ?Manual da Redação? da Folha, é bom lembrar, recomenda ?redobrada vigilância quanto à verificação prévia das informações, à precisão e inteireza dos relatos, à sustentação técnica das análises e à isenção necessária para assegurar o acesso do leitor aos diferentes pontos de vista suscitados pelos fatos?.

É quando se caminha sobre gelo fino que a aplicação de uma referência como essa se torna ainda mais obrigatória.

Crime no Brooklin

A morte do casal Richthofen, em sua casa no Brooklin, bairro nobre paulistano, dia 31 passado, expressou que, apesar de experiências anteriores discutidas fartamente em redações e escolas de jornalismo, a imprensa continua com dificuldade para lidar com a cobertura de crimes complexos e inusitados.

Conforme observei na crítica interna segunda-feira, o noticiário da Folha sobre o caso centrava-se excessivamente, inclusive nos títulos das reportagens, numa das hipóteses para a autoria do assassinato: a de uma ex-empregada doméstica que estaria fazendo ameaças ao casal, a fim de recuperar seu posto.

Enquanto isso, outros jornais expunham em excesso o filho, a filha e seu namorado, apostando nessa ?saída? para o caso.

?Qualquer que venha a ser o resultado da investigação, creio que o procedimento jornalístico mais adequado, em casos como esse, é não ?fechar? em torno de uma única hipótese?, dizia a crítica.

O assassinato ainda vai a julgamento e modificações podem, em tese, ocorrer.

De todo modo, a solução apresentada pela investigação -isenção do filho caçula e envolvimento da filha, seu namorado e do irmão deste-, se por um lado mostra que a Folha de início privilegiou uma linha errada enquanto concorrentes ficaram mais perto do alvo, por outro aponta para um só diagnóstico: quando o assunto é crime, na corrida pelo furo a mídia ainda dança na mão da polícia."