Saturday, 21 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Bernardo Ajzenberg

FOLHA DE S.PAULO

"Para poucos", copyright Folha de S.Paulo, 22/12/02

"A edição do caderno ?Anos FHC?, quinta-feira, propicia pensar mais amplamente nas expectativas que podem se depositar no jornalismo, e na Folha em especial, ante o fim de uma ?era? e a instalação de um novo governo num ambiente econômico de evidentes restrições e imprevisibilidades.

A inflação e o desemprego assombram, tal como a manutenção das desigualdades sociais.

Não há setor da economia que não esteja, no mínimo, inquieto com o câmbio, os juros elevados, a vulnerabilidade expressa pelas contas públicas.

Esse preocupante quadro atual e o fato de que fortes medidas econômicas estruturais -Plano Real, privatizações, políticas monetária, fiscal e cambial- foram a marca mais visível (e polêmica) dos mandatos de Fernando Henrique Cardoso tornam compreensível a opção daquele caderno especial por priorizar assuntos econômicos ou diretamente relacionados a eles.

Das suas 18 páginas, nada menos do que 11 são dedicadas a isso, enquanto cinco se ocupam de educação, saúde, política, violência e escândalos ligados ao governo (sobram uma para pesquisa Datafolha sobre avaliação do governo e a capa).

Somem-se, ainda, outras quatro páginas de uma entrevista com o presidente da República publicada no mesmo dia, com ênfase, também, na economia.

Hierarquização

É notável o esforço de pesquisa, análise e apuração refinada que todo esse material representa. Seu valor jornalístico não está em questão aqui.

Porém, o modo como a assumida relevância dos temas econômicos se traduziu editorialmente -seja na hierarquização dos itens a eles referentes, seja pela ausência de abordagem sobre outras áreas da vida do país- parece exibir uma opção consciente a respeito da qual é necessário refletir.

O desemprego -um dos temas, não por acaso, mais explorados na campanha eleitoral- só foi contemplado na 12? página do caderno e praticamente ?morreu? ali.

A evolução da situação da indústria nacional, do comércio, das pequenas e médias empresas -setores, em sua maioria, bastante afetados especialmente nos últimos anos- aparece de modo apenas resumido, numa pequena reportagem em pé de página e em breves referências dentro de outros dois textos.

O balanço sobre a situação da pobreza e da miséria no país -das quais, aliás, nenhuma imagem explícita foi publicada- enquadrou-se em apenas uma página, sem que o leitor tenha tido a oportunidade de compreender, por exemplo, por que e como se refletiu na população mais carente o esgotamento dos efeitos do Plano Real que, no início, fizeram cair percentualmente o contigente de pobres e indigentes.

Lacunas

Esses são exemplos de certo desequilíbrio na priorização de temas, mesmo dentro da questão econômica. As interrogações de ordem jornalística suscitadas pelo caderno ?Anos FHC?, porém, são maiores do que isso.

Como anotei em crítica interna, temas como habitação, cultura, ciência e tecnologia, ambiente e ecologia, minorias e comportamento foram simplesmente ignorados.

Eles, com certeza, não compõem o núcleo determinante da ação governamental. No entanto, além de refletir seus impactos, dizem respeito a interesses, à ?vida real? de milhares de leitores, para além da economia.

Essas lacunas ficam ainda mais patentes se se compara esse caderno com o publicado pelo jornal em outubro de 1998, intitulado ?Tempos tucanos?, balanço do primeiro mandato de FHC (veja no quadro acima).

Os momentos são diferentes. FHC, agora, está saindo. Não faria sentido simplesmente ?atualizar? aquela edição.

Mas, na prática -quer dizer, nas páginas do jornal-, não se viu na Folha, semana passada, nem a sombra de uma preocupação semelhante à daquele ano, de revelar, no caso, as reverberações culturais, de mentalidade e de comportamento geradas pelo próprio Plano Real e, de forma mais ampla, pela presença do PSDB no poder.

O tom sedutor e mais elaborado dos títulos daquele caderno, para dar um outro exemplo, exprime uma visão editorial que supera o sotaque relatorial e pouco atraente dos títulos do ?Anos FHC? (veja algumas comparações no quadro).

Acabou-se oferecendo, neste último, um material inclinado a dialogar com um número muito limitado de leitores -e isso, como é evidente, representa risco sério para um diário que, sendo de prestígio e já naturalmente voltado para uma parcela elitizada da população, é também, por vocação, de informação geral. O perigo é justamente afastar ainda mais leitores -a começar pelos jovens-, mesmo de dentro dessa faixa apertada.

Restrição

Instada a comentar o tema, a Secretaria de Redação enviou-me uma nota, da qual reproduzo o seguinte trecho:

?Infelizmente, não houve espaço disponível para tratar de tantos assuntos importantes e atraentes do ponto de vista editorial como cultura e comportamento, entre outros citados pelo ombudsman.?

?Devido à restrição de espaço e a vastidão de temas e do período abordado -oito anos-, era preciso dar prioridade a certos temas. De outro modo, havia o risco de tratar os assuntos de maneira muito superficial.?

?A escolha dos temas principais foi orientada por duas linhas de força: a relevância da relação do assunto com a atuação da Presidência e do governo FHC e a dimensão do seu impacto na vida do país e da população.?

?A quase onipresença do debate econômico nas discussões nacionais, as grandes controvérsias a respeito da política econômica e o número e a variedade de crises que o país enfrentou no período influenciou sobremodo as escolhas dos assuntos.?

?De resto, como tais problemas devem fazer parte da pauta mais urgente do novo governo, pareceu adequado oferecer mais informações sobre as discussões que devem prevalecer no início do próximo ano e de uma nova Presidência.?

Opções

Esse caso, a rigor, pode e deve mesmo ser visto de modo profundo e abrangente, para além do próprio caderno ?Anos FHC?. Ele diz respeito a como vai ser feita pelo jornal boa parte da cobertura do novo governo e das implicações de suas políticas.

Se já tem sido exacerbada na mídia a predominância dos temas econômicos e da ação do Estado e do governo nos últimos anos, a pressão para que isso se acentue tenderá a ser maior na ?era Lula?, de linha, ao menos em tese, mais intervencionista.

Além disso, nada indica que a mencionada ?restrição de espaço? no jornal será abrandada nos próximos meses. Muito pelo contrário. O momento é grave. A economia manda e desmanda.

Por isso mesmo, vale a pena fazer a reflexão: a opção editorial -a meu ver, restritiva- embutida num caderno tão importante e de caráter histórico tão óbvio como o ?Anos FHC? foi pontual ou ela simboliza, mesmo sem querer, uma sinalização de como a Folha pode se comportar na definição de pautas e prioridades de agora em diante?

Isso interessa diretamente ao leitor. Interfere na relação que ele mantém com seu jornal diário -a qual, não custa lembrar, é móvel e sujeita a instabilidades: pode se reforçar sempre, mas pode, também, se desgastar em alta velocidade até a ruptura.

Talvez ainda não haja uma resposta pronta para essa pergunta. Mas ela é incontornável."