FOLHA DE S.PAULO
"Instante único", copyright Folha de S.Paulo, 12/1/03
"Repare nas imagens. São as capas da Folha e das revistas ?Veja? e ?Isto É Dinheiro? sobre a posse de Luiz Inácio Lula da Silva no Planalto.
É fácil notar que a foto do jornal -Lula e sua mulher, Marisa, sob chuva de papel picado no Rolls-Royce presidencial- foi reproduzida nas revistas com retoques em relação ao original.
Na ?Veja?, o rosto da primeira-dama ?ganhou? alguns picotes de papel, enquanto sumiram os que cobriam partes do rosto do presidente da República.
Na ?Isto É Dinheiro?, a correção foi menor: apenas desapareceu o papelzinho amarelo que havia na mão erguida de Lula.
Conversei com Carlos Neri, editor executivo de Arte da ?Veja?. A colagem de picotes em Marisa foi feita, segundo ele, para cobrir descontinuidades de imagem surgidas no rosto dela quando se ampliou a foto original para adaptá-la às condições específicas de impressão da revista. No caso de Lula, a idéia foi ?limpar? o rosto, a fim de realçar a sua figura e trazê-la para mais perto do primeiro plano.
Luiz Fernando Sá, redator-chefe da ?Isto É Dinheiro?, afirma que, ao sobrepor a mão de Lula ao título da capa, o papel que nela havia virou uma ?sujeira gráfica?, podendo dar ao leitor a idéia de que existia algum erro e não de que aquilo fazia parte da imagem verdadeira -daí a decisão de extirpá-lo.
Esses casos colocam uma questão crucial para o jornalismo, num momento em que a tecnologia permite fazer gato e sapato da imagem digitalizada: qual é o limite aceitável para qualquer mudança numa foto cuja função é retratar um momento real e, como aqui, histórico?
Para Eder Chiodetto, editor de Fotografia da Folha, ?nada justifica alterar os elementos que compõem uma imagem fotojornalística por manipulação eletrônica ou por qualquer outro meio. Ao capturar uma imagem noticiosa, o repórter-fotográfico realiza um pacto de franqueza com o leitor. É o que distingue o fotojornalismo da imagem publicitária, por exemplo?.
Na sua visão, ?a veracidade da informação é nosso maior patrimônio. A alteração do conteúdo da imagem, por menor que seja, afeta diretamente a credibilidade do profissional e do veículo?.
?Não houve manipulação?, diz Neri, da ?Veja?. ?Não foi alterado o conceito da foto ou a notícia. Não se inventou uma situação inexistente. Só retocamos a imagem, para melhorá-la?.
?Evitamos isso ao máximo?, diz Luiz Fernando Sá, ?mas às vezes é preciso, para o leitor entender. Não houve adulteração. Foi uma opção estética?.
Certamente não estamos diante de falsificações grotescas ou interferências criminosas.
Uma definição de um estudioso italiano de comunicação, Furio Colombo, porém, ajuda a refletir sobre o risco desse tipo de precedente: ?O fotojornalista é alguém que, dotado de um conjunto de instintos que pertence tanto à técnica quanto à arte, identifica aquele instante único que contém em si toda a força expressiva, emotiva ou trágica da sequência que não vemos?.
Temos o direito de interferir no registro desse ?instante único??
Entendo que não -apesar de eventuais sujeiras, buracos ou até imperfeições de um original. O jornalismo existe para flagrar o real, não para embelezá-lo.
Entro em férias amanhã, retomando o atendimento aos leitores em 17/2. Nesse período, a secretária do departamento do Ombudsman, Rosângela Pimentel, receberá e encaminhará as suas manifestações. A coluna volta em 23/2. Até lá.
Ainda o clone
O editor de Ciência, Marcelo Leite, envia réplica ao texto ?Clone no palco?, publicado no domingo passado, sobre como a Folha noticiou o anúncio, pela empresa Clonaid, do nascimento do suposto primeiro bebê clonado. A seguir, seus argumentos:
?1) O primeiro erro (do ombudsman) foi tentar apoiar-se num editorial para criticar o noticiário publicado uma semana antes, como se o primeiro constituísse uma admoestação aos autores do segundo.
Existe na Folha, como deve existir, uma separação entre opinião do veículo e as reportagens que publica, não devendo estas serem pautadas nem influenciadas por aquela.
Além disso, como o editorial não apresenta argumento algum que já não estivesse no noticiário, não seria despropositado supor que as reportagens e comentários publicados no calor da hora possam ter contribuído para a ponderação do texto de opinião do jornal.
2) O ombudsman acusa a Editoria de Ciência de ?resvalar para o sensacionalismo? e de sucumbir ?à lógica da notícia como espetáculo?, apesar de ?ciente das insuficiências resumidas dias depois no editorial?. Diz que o jornal não abriu mão ?de seu saudável ceticismo?, mas ainda assim deu destaque ?desproporcional? ao anúncio da Clonaid.
Como não se perguntou pela razão dessa aparente discrepância, deve ter concluído de antemão que os editores são néscios ou esquizofrênicos.
Como não me incluo em nenhuma das categorias, vejo-me constrangido a esclarecer-lhe por que não sucumbi(mos) à lógica da notícia como espetáculo: pela simples razão de que essa lógica é a de não fazer pensar, e todo nosso noticiário seguiu na direção oposta.
Não com juízos de valor peremptórios, como é lícito fazer num editorial, mas com informação, contextualização e análise.
3) O ombudsman poderia ter destacado esse diferencial do noticiário publicado pela Folha (repercussão ampla com cientistas, bioeticistas e religiosos, análise por um dos mais conhecidos filósofos brasileiros, frases e argumentos de pensadores do porte de um Jürgen Habermas e de um Francis Fukuyama), editado justamente para demonstrar o alcance cultural e extracientífico de um eventual clone humano, mas preferiu entregar-se a uma contabilidade menor de espaços e destaques.
Como os editores dos concorrentes brasileiros da Folha, seguiu o caminho mais fácil e óbvio, o de estribar-se apenas na autoridade alheia (a de editorialistas, no seu caso) e decidir-se pelo que parece mais prudente: noticiar envergonhadamente, como quem pede desculpas, aquele que pode vir a revelar-se como o fato mais importante de 2003 -se confirmado, repita-se mais uma vez, para que fique bem entendido-, o nascimento do primeiro clone humano.
4) Quem fez sensacionalismo foram os raelianos da Clonaid. A Folha noticiou -e criticou-, com o devido destaque, essa manifestação inaudita da ?hybris? biotecnológica.?
A definição do espaço a ser reservado a determinado assunto num jornal é um dos componentes essenciais de uma opção editorial. Reflete o valor atribuído à notícia em questão. Não é objeto de uma ?contabilidade menor?.
Continuo a acreditar, apesar das ponderações do editor, que houve excesso por parte da Folha no espaço dedicado ao fato e que, dessa forma, o jornal acabou por alimentar o jogo publicitário embutido no anúncio da Clonaid."