Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Bernardo Ajzenberg

FOLHA DE S.PAULO

"Cem dias", copyright Folha de S.Paulo, 13/4/03

"A ocupação do Iraque jogou para segundo plano, na mídia, inúmeros assuntos, dentre eles o balanço dos primeiros cem dias da ?era Lula?.

O tema, apesar disso, não passou em branco, e o tom praticamente unânime, nas reportagens e editoriais, foi de que a nova administração federal surpreendeu na condução da política econômica, superando positivamente expectativas do ?mercado? (dentro e fora do país), reduzindo com habilidade a desconfiança de setores empresariais, gerando, ao mesmo tempo, desconforto entre sindicatos, políticos aliados e até mesmo alas do próprio PT.

Outra avaliação comum na mídia: o governo foi regular na articulação política, bem nas relações exteriores (diplomacia) e bastante inoperante no social.

Mas, se houve consenso nas suas primeiras avaliações genéricas, o mesmo não se pode dizer do comportamento da imprensa em relação ao Planalto desde a posse de Luiz Inácio Lula da Silva, em 1? de janeiro.

Aliança tácita

Em meio à ansiedade generalizada para captar quais seriam o novo estilo do Planalto, a nova rotina na Esplanada dos Ministérios e em especial a ?agenda petista? -o que levou os jornais a divulgarem inúmeros ?balões de ensaio? de possíveis medidas governamentais, numa disputa para ver qual conseguiria antecipá-las com mais acerto-, a Folha se diferenciou com nitidez ao adotar, já nas primeiras semanas, um viés aberta e constantemente crítico.

Algo positivo, coerente com seu posicionamento editorial adotado logo após a vitória do PT ano passado -e facilitado pelos desencontros e desarmonias iniciais do próprio governo.

Essa postura, cabe registrar, teve um componente curioso. No embalo das medidas econômicas ortodoxas e dos discursos oficiais voltados para acalmar inquietações do ?mercado?, o jornal acabou compondo uma espécie de aliança tácita com os chamados ?radicais? do PT.

Sua cobertura, ao destacar as contradições entre a pregação eleitoral, a história petista e as primeiras medidas do partido no comando do país, ganhou cores de ?esquerda?.

Essa aliança pontual explica, por exemplo, a desproporcional exposição dada pelo jornal a deputados ?radicais? e às cobranças feitas por sindicalistas e sem-terras às novas autoridades.

Somem-se a isso os (necessários) questionamentos ao prioritário programa Fome Zero, suas incongruências e oscilações.

Muitos leitores, até alguns que não votaram em Lula, chegaram a questionar ao ombudsman, às vezes com razão, se a Folha não estava ?apressada? demais.

No conjunto, penso que, apesar de alguns excessos e cutucões gratuitos, o jornal acertou bem mais do que errou ao não adotar o roteiro da ?lua-de-mel?.

Fim da exclusividade

Essa diferenciação, no entanto, diminuiu bastante a partir de março -quando cresceram casos como o Bahiagate, os deslocamentos de Fernandinho Beira-Mar, a atuação do crime organizado (assassinatos de juízes), além da guerra no Iraque.

A crítica ao passo lento do Fome Zero, por exemplo, tornou-se generalizada (a exceção reside na TV, em especial na Globo), com outros jornais inclusive tomando da Folha, em alguns momentos, a dianteira nesse ponto.

Para mencionar outros episódios, nada cruciais mas muito simbólicos, não foi ela o primeiro veículo a revelar o fato de o ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, ter ganho de presente de um parlamentar um relógio Rolex nem, em outra ocasião, a iniciativa do mesmo ministro de acelerar seu pedido de aposentadoria antes da provável reforma da Previdência.

A Folha igualmente titubeou e deu com menos ênfase do que os concorrentes o questionável uso de um veículo oficial para conduzir a cadela Michele, de Lula, do Alvorada à Granja do Torto, em 19 de março.

Também foi com timidez que o jornal noticiou, no início daquele mês, as desconcertantes declarações dos ministros Antônio Palocci (Fazenda) e Guido Mantega (Planejamento) no Senado admitindo de uma penada, ao lado do senador Aloizio Mercadante (PT-SP), ter o PT se equivocado no passado ao não apoiar no Congresso as reformas propostas por FHC.

Em que pesem as nuanças de contundência, parece claro que a Folha já não detém a exclusividade na cobertura crítica regular do governo -o que é, diga-se, bom sinal para o jornalismo.

Dificuldades

Hoje, os principais desafios da mídia em relação ao novo governo estão em outro patamar, e é aqui, creio, que a diferenciação pode e deve se manifestar:

1) captar as eventuais divergências, as disputas, o nível real de homogeneidade dentro do governo quanto às questões em pauta (autonomia do Banco Central, política de alianças partidárias, aplicação dos programas sociais, por exemplo), de modo a propiciar o debate sobre a sua real viabilidade. Não me refiro às divergências entre ministros e os ?radicais? do PT ou a oposição -isso é fácil fazer e já virou folclore-, mas no interior do próprio núcleo do Executivo;

2) esmiuçar com clareza, didatismo, profundidade e pluralismo o conteúdo das complexas reformas tidas até aqui como prioritárias (a tributária e a previdenciária) e as suas prováveis consequências concretas. O que implica o próprio jornal aprofundar seu conhecimento a respeito dos temas sobre os quais elas se estruturam.

Ante um governo que não tem primado pela facilitação de acesso a informações, essas tarefas se complicam para a imprensa.

Um exemplo das dificuldades apareceu sexta-feira, quando alguns jornais divulgaram o conteúdo de um documento de quase cem páginas do Ministério da Fazenda contendo balanço e diretrizes para a economia neste e nos próximos anos.

Na edição nacional, a reportagem da Folha era aberta com a afirmação de que esse material representava ?a primeira versão do programa de governo do PT depois da campanha eleitoral?.

Não é pouco, ainda mais considerando que as premissas do estudo, segundo o noticiário, são as mesmas da polêmica ortodoxia em vigor, sem, aparentemente, nenhuma sinalização de reais mudanças no futuro.

Tal avaliação implicava uma edição à altura da relevância do texto, que traduzisse em detalhes os seus pontos principais, consequências, contradições etc.

Foi o que fizeram, por exemplo, embora de modos diferentes, o ?Estado de S.Paulo? e o ?Valor? -mas a Folha não fez.

Pior: na edição mais tardia, voltada para SP e DF, aquela afirmação foi deslocada quase para o final do texto da reportagem e atenuada (?podendo ser considerada uma primeira versão…?), evidenciando-se ainda mais a subestimação, por parte do jornal, do impacto político e econômico desse documento -dentro e fora do governo, dentro e fora do país e, especialmente, em sua base de apoio.

Pode haver mudanças entre uma edição e a outra -não seria a primeira vez. Mas, nesse caso, a Folha falhou em ambas.

Reflexão

Talvez o ?Estado? e o ?Valor? tenham obtido o documento antes, dispondo, com isso, de mais tempo para refletir e editá-lo.

Ou a falha pode ter sido apenas sintoma da dimensão dos obstáculos que a Folha por vezes encontra, em situações concretas imprevistas, no dia-a-dia, para dirimir internamente dúvidas e discordâncias de avaliação sobre a situação atual e os possíveis rumos do governo.

Nas duas hipóteses, o fato positivo de ter retomado o assunto com mais profundidade na edição de ontem revela atenção do jornal para com o leitor, mas não anula a necessidade de reflexão sobre os motivos do desarranjo do dia anterior.

Pois não foi esse, seguramente, o evento mais feliz dentre os que a Folha deve guardar na memória sobre os primeiros momentos da cobertura da ?era Lula?."