Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Bernardo Kucinski

CRÍTICA DIÁRIA

"Cartas Ácidas", copyright Agência Carta Maior (www.agenciacartamaior.com.br)


"15/04/02

O morro desceu e derrotou o golpe

Nada como uma vitória popular para recuperar a boa reportagem. A do jornalista Marcos Aith, na página 9 da Folha de hoje, merecia uma abertura na primeira página. Começa assim:

?Eles desceram dos morros ao redor de Caracas a pé, de bicicleta, em motos e caminhões. Alguns usavam chinelos, outros cruzaram descalços os bairros de classe média que separam seus bairros pobres do palácio presidencial Miraflores. A maioria era mestiça, tinha pele e cabelo de índio. Traziam cartazes e faixas com inscrições como ?devolvam nosso presidente?, ?quero ver meu presidente?, ?viva a Revolução bolivariana?, ?Chávez não renunciou? (…) foram se juntando ao redor do Palácio na manhã de sábado (…) no início havia 100 ou 200 deles (…) no fim da tarde , quando as tropas leais a Chávez tomaram o palácio, havia 10 mil a 15 mil.?

Outra boa reportagem, essa descrevendo o clima dentro do Palácio Miraflores, é a de Lourival Santana, na página A10 do Estadão. Depois de falar do crescimento da multidão em torno do Palácio e da chegada das tropas do exército, ele diz: ?Com o passar do tempo ocorreu aos novos ministros e funcionários de alto escalão do governo interino uma dúvida (…) estamos sendo protegidos ou detidos?

Em uma coisa Chávez acertou

Chávez acertou em cheio ao recusar a renúncia. Como ele nunca deixou de aparecer em público e de se comunicar com a população, essa foi a senha que levou o povo a reagir, forçando os militares ao recuo. Uma grande diferença em relação a Jango, para desgosto de Eliane Cantanhêde, que na Folha de domingo equiparou os dois.

Tensão aumenta, mas Chávez está mais forte

Emílio Figueiredo, venezuelano que a Folha apresenta como analista político importante, diz o país continua muito dividido, mas Chaves está mais forte. O noticiário de hoje confirma que as elites mantém sua disposição golpista e insistem na renúncia de Chávez.

Estados Unidos pisam na bola e ameaçam

Foi sem dúvida uma vitória da democracia e uma derrota para o governo dos Estados Unidos, que apoiou o golpe. Curiosamente surgiram matérias tentando nos convencer que os Estados Unidos desestimularam o golpe contra Chávez. É ridícula a manchete da Folha do domingo: ?EUA desestimularam golpe contra Chavez?. Roberto Godoy, no Estadão de hoje, tenta nos convencer da mesma tese, argumentando que o exército que ao final apoiou Chávez, ao contrário de parte da Guarda Nacional, foi treinado pelos americanos. Mas Condoleezza Rice, a conselheira da Casa Branca para assuntos ao Sul do Rio Grande, está aí para não deixar dúvidas sobre a posição americana hostil a Chávez. Disse, em tom ameaçador, que esperava que Chávez tivesse ?aprendido a lição?.

Lições da reviravolta na Venezuela

Mas qual foi a principal lição? Seu desfecho confirmou um padrão das atuais crises latino-americanas, em que tem sido determinante a intervenção das camadas populares empobrecidas. Assim foi na derrubada da junta equatoriana pelo movimento indígena, de Fujimori no Peru e de De la Rua na Argentina, onde o povo continua nas ruas. Posteriormente, pode se dar uma repactuação das elites, mas a decisiva intervenção popular deixa suas marcas e limita o espaço dessa repactuação. È a dialética do alastramento da pobreza entre os povos latino-americanos e do encolhimento da classe média. Já não há classes médias como antigamente e, portanto, não pode haver golpes como antigamente.

E as lições para o PT

A virada dos pobres na Venezuela deve trazer ainda mais desassossego às elites brasileiras que temem uma vitória de Lula, e, portanto, vai fazer com que aumentem as pressões para impedir essa vitória. Também os americanos vão ficar mais nervosos, porque era óbvio que eles trabalhavam para impedir que coexistissem na América latina os governos Chávez e Lula. Se não conseguiram derrubar Chávez, que tem mandato até 2006, mais razão tem agora para não querer uma vitória de Lula.

Derrota dos falsos democratas

Foi a derrota também de todos os falsos liberais que saudaram o golpe. No Brasil ficou mal para a mídia, toda ela pega na contramão. Toda as revistas semanais deitaram e rolam em cima da destituição do Chávez, e chegaram às bancas quando ele já está de volta, triunfante. Os falsos liberais tiraram sarro e agora estão ridicularizados, entre eles Jeffrey Sachs, o economista que comandou as privatizações mundo afora e que se confessou ?maravilhado? com a queda de Chávez.. Vinicius Torres Freire, na Folha de hoje, contextualiza a fala de Sachs como parte de uma atitude mais geral de economistas que acham que podem ignorar a democracia.

Retrato do Brasil

Apenas 14 % das mais de cinco mil prefeituras brasileiras tratam adequadamente o lixo hospitalar, conforme levantamento do IBGE, resumido no caderno Cotidiano da Folha de domingo. É um dos aspectos da crise sanitária do Brasil, deixada por oito anos de governo FHC.

Não deixe de ler

A entrevista de página inteira de Wanderley Guilherme dos Santos, na página A6 da Folha de hoje, em que, contrariando o ?conventional wisdom?, afirma que a candidatura Serra ainda não esta consolidada.

12/04/02

O golpe na Venezuela: e nós com isso?

O golpe na Venezuela é um precedente grave e deve ser repudiado por todas as pessoas de bem. Se fizeram lá, podem fazer depois aqui. Se não engoliram Chavez, podem não querer engolir Lula. Se a tecnologia do golpe deu certo lá, pode dar certo aqui.

Remember Parasar

Apenas o Estadão reproduziu o despacho da agência EFE sobre os franco-atiradores postados nos telhados em torno do Palácio, e que atiraram na multidão. Os mesmos franco atiradores atiraram contra a guarda do Palácio, conforme testemunho de um jornalista e, portanto, não podiam ser gente do Chávez.Também dispararam contra ambulâncias. Lembram do caso Parasar?

Grandes manobras, pequenos candidatos

Com a saída de Roseana, abre-se uma temporada de grandes manobras das cúpulas partidárias dos candidatos menores pelo seu espólio eleitoral. Os jornais de hoje dão amplos espaços às mais diversas movimentações e especulações. Ao mesmo tempo em que se reabrem possibilidades dos candidatos mais fracos, aumentam as tensões intra-partidos e intra-coalizões. O jogo não zera totalmente porque a candidatura Lula e em menor grau a de Serra, tem características de solidez e autonomia. Mas há um risco de se criar uma grande aliança de centro em torno de Ciro Gomes, que era muito bem colocado antes de Roseana entrar em cena. Garotinho é risco menor, e já cometeu dois atos falhos de fala, anteontem e ontem ao admitir a derrota (ontem disse que ? anula seu voto se não for ao segundo turno?).

Furo da Folha: a saída de Roseana

A Folha revela detalhes das conversas de Roseana com a cúpula do PFL, em que ela pede apenas algum prazo para organizar a retirada. Nos outros jornais a saída é dada como altamente provável, mas dependendo ainda do que o STF vai decidir sobre a verticalização. A coluna política de O Globo de hoje (Isabela Abdala e Catia Seabra), diz que o PFL dá como certa a saída de Roseana e analisa as várias possibilidades de recomposição do partido.

A implacável ofensiva do governo

Algumas manchetes de hoje mostram que o que acontece é a rendição de Roseana frente a uma ofensiva do governo e da mídia que se mantém implacável desde o primeiro dia da invasão da Lunus até hoje:

?Documentos reforçam suspeitas contra Murad? – Estadão

?Roseana ganha pensão vitalícia e não abre mão? – Estadão

?Juíza manda prender cunhado de Roseana? Estadão

?Papeis indicam ligação entre Lunus e Usimar? Folha

?Doador de Roseana tem prisão decretada? Folha

E FHC já tenta tirar o corpo fora

Página inteira do Estadão de hoje e espaços menores em outros jornais dedicam-se ao esforço de FHC de se eximir da acusação de que Roseana foi vítima de perseguição política. Deve ser reação à pesquisa DataFolha na qual 47% dos entrevistas disseram acreditar que a operação contra Roseana foi realizada por ordem do governo para prejudicar sua candidatura.

Nas entrelinhas: imunidade para o tucanato

Reportagem de Fausto Macedo no Estadão de hoje nos revela que uma proposta de foro privilegiado a ex-governantes, feita pelo do tucano Romero Jucá, já foi aprovada na comissão de Justiça do Senado no dia 6 de março. Anteontem, o mesmo jornal ignorava essa proposta e falava de uma outra semelhante do José Bonifácio, que ainda iria para a comissão de justiça da Câmara. À primeira vista, esse é apenas um exemplo da deficiência na cobertura dos trabalhos das comissões pelos repórteres em Brasília. Constrangido, o Estadão, pôs a culpa nos políticos: ?…a sessão de 6 de março transcorreu discretamente…as atenções estavam voltadas para os R$ 1,34 milhões recolhidos na Lunus em São Luís…?

O poder e o segredo

Podemos fazer outra leitura do episódio. Eram as atenções da imprensa que estavam totalmente voltadas para o outro episódio porque o poder assim o queria, como também queria que a proposta do foro privilegiado tramitasse discretamente, se possível em segredo de mídia. Assim como ampliou o segredo de justiça com a Lei da Mordaça, o tucanato agora quer o segredo de mídia. O papel principal da mídia é combater o segredo como instrumento do poder. Mas a mesma mídia que centrou baterias na operação do poder contra Roseana, deixava de revelar ao público uma manobra silenciosa do tucanato de emplacar a auto-imunidade para depois que forem apeados do poder.

O Estadão na oposição?

Nada disso. Mas está ficando cada vez mais difícil, mesmo para a mídia neoliberal, justificar as trapalhadas desse governo, algumas delas de efeitos gravíssimos na economia. Várias matérias do caderno de economia do Estadão de hoje são um prato feito para a candidatura Lula. Praticamente corroboram toda a critica de Lula ao governo. Uma delas, na página B7, com manchete de página inteira: ?Brasil não sabe exportar?, diz que falta uma estratégia clara a unificada do governo para a exportação. Não é o que Lula vem dizendo?

Não deixe de ler

?Seguro apagão, a confissão do fracasso?, de Roberto Pereira D`Araujo, na página B2 do Estadão de hoje, que também corrobora as críticas da oposição.

10/04/02

Disparada de Lula no DataFolha

Dos cinco diários de expressão nacional, só a própria Folha deu a notícia na primeira página. Já se notava o desconforto da mídia no noticiário da TV na noite de ontem: os âncoras chamavam para a notícia dizendo apenas: ?No próximo bloco: nova pesquisa de voto?. Se Serra tivesse disparado a chamada seria: ?Veja ano próximo bloco: Serra dispara nas pesquisas?.

A reação

A estagnação de Serra levará a mídia a continuar apoiando a operação desgaste de Roseana e a iniciar agora o desgaste de Garotinho. O de Roseana conta com a ajuda da própria, que apareceu ontem na TV da cara amassada e chorosa. Na Folha de hoje, Raymundo Costa se refere à ?agonia de Roseana?. E o painel da Folha diz que sua candidatura entrou em ?contagem regressiva?. Avaliação correta ou mero ?wishfull thinking?, o fato é que a mídia governista dá apoio editorial à operação desgaste de Roseana. O desgaste de Garotinho começou hoje mesmo com longa manchete no topo da primeira pagina de O Globo, que mais parece a abertura de um editorial: ?Aos 41 anos, Garotinho se dá pensão vitalícia de R$ 9.600,00; diante da repercussão, ex-governador promete voltar atrás?.

Numa segunda etapa, as baterias da mídia vão se dirigir contra Lula, mas no momento o sucesso de sua candidatura leva a um acirramento da luta entre os candidatos ao segundo lugar e a uma tentativa desses mesmos candidatos, exceto Serra, de mimetizar a fala de Lula. Foi o que fez Ciro Gomes na entrevista a Miriam Leitão, na Globonews, em que atacou Serra agressivamente e tentou vestir a camiseta de uma oposição de esquerda.

Perguntas provocadas pela pesquisa DataFolha

Primeira pergunta: como fica a pesquisa Toledo-IstoÉ, publicada dias antes, que deu Serra muito à frente de Lula em São Paulo? As duas pesquisas são incompatíveis. Uma delas contém vício metodológico grave ou foi feita com má-fé. Seria bom ter isso esclarecido no início da campanha para que as pesquisas exerçam seu papel legítimo de informar as tendências do eleitorado e não o papel ilegítimo de tentar mudar essas tendências de modo enganoso.

Segunda pergunta: como ficam os colunistas chapa-branca que já davam como morta a candidatura Lula? No JB de hoje, em ? O novo modelo de Lula?, Villas Boas se corrige, atribuindo a mudança não a ele e sim a Lula. Vamos esperar pelos outros. O discurso de que Lula está destinado a morrer na praia afetou a fala do grande marketeiro Americano Joseph Napolitano, num seminário de marketing político ontem em São Paulo, obviamente destacada pelo Estadão: ?Lula é muito popular, mas parece que nunca é popular o suficiente?. O Datafolha mostra que hoje a popularidade de Lula é suficiente para derrotar todos os demais candidatos no segundo turno.

Nas entrelinhas

Será que FHC tem medo da justiça? Graças a uma pequena reportagem de Gilse Guedes, no Estadão de hoje, ficamos sabendo que muito antes de Roseana ou Murad, o presidente Fernando Henrique está tentando garantir foro especial para si e seus auxiliares. Segundo Gilse Guedes, foi o presidente que pediu ao deputado José Bonifácio que apresentasse o projeto de lei que re- estabelece foro especial para ex-presidentes e ex-ministros, prestes a entrar na pauta da comissão de Justiça da Câmara. O foro especial para ex-governantes foi abolido pelo Supremo em 1999. A proposta do Bonifácio prevê que e defesa dessas ex-autoridades seja também custeada pelo Estado. Com a fala de Reale Jr., ficou difícil agora discutir o projeto.

Quem não gosta de Benedita?

Alguns jornais e revistas semanais de informação destacaram corretamente a dimensão nacional e histórica da posse de Bené, como primeira governadora negra do Brasil. Outros, como a Folha, foram mais discretos. Mas o JB radicalizou na redução da presença de Bené em sua edição nacional, que ontem chegou a centrar a reportagem sobre a visita de César Maia a Bené no prefeito, e não na governadora. Bené entrou na história do JB como mera coadjuvante. Na edição de hoje é preciso procurar com lupa alguma palavra sobre Bené. Só vamos encontrar no comentário de Villas Boas Corrêa. A importância enorme que ele atribui à figura de Bené na campanha de Lula no Rio pode ser a explicação para o ostracismo editorial decretado pelo JB.

Manchete enganosas

Enganos grosseiros do JB e do Estadão. O Estadão confundiu importação com exportação em manchete de página inteira no seu caderno de economia. O JB deu na primeira página que o BC vai investigar o lucro dos bancos e remete para a página 13. Mas a notícia é que o BC vai investigar o lucro das empresas não financeiras e das indústrias, e não dos bancos.

O lucro obsceno dos bancos

O objetivo do BC é exatamente o de livrar os bancos da acusação de lucros extraordinários. Foi essa fala de Armínio Fraga ontem em Brasília, tão revoltante que os jornais preferiram ignorar ou confinar em a espaços discretos. Ele disse que é lucro dos bancos tem sido normal. Podia ter ficado quieto.

Não deixe de ler

O artigo de Delfim Netto na página pagina A2 de Folha de hoje, sobre o lucro anormal dos bancos. Em ?Da indignação à aventura?, Delfim mostra que os juro real no Brasil é três vezes maior do que em nossos vizinhos e cinco vezes maior do que nos países desenvolvidos. Diz que a culpa não é dos bancos, que estão para isso mesmo, e sim do governo. Está certo."