Friday, 08 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1313

Bernardo Kucinski

CRÍTICA DIÁRIA

"Cartas Ácidas", copyright Agência Carta Maior (www.agenciacartamaior.com.br)

"10/6/2002

A perigosa tática do terror financeiro

O Estadão de hoje informa com riqueza de detalhes na página A4 que o comando da campanha tucana adotou o terror financeiro como tática principal: ?PSDB manterá a tática de associar Lula ao caos?, é a manchete interna de página inteira . Diz a reportagem: ?a estratégia é encampar o discurso do mercado financeiro de temor diante de uma possível vitória de Lula para polarizar cada vez mais com o PT.? O Jornal da Tarde, versão light dos Mesquitas, saiu com uma manchete ainda mais expressiva; ?Medo: a aposta tucana.? E O Globo, do Rio, confirma: ?crise beneficia Serra?.

A decisão foi referendada em uma reunião da cúpula tucana neste domingo (09) à noite, no próprio apartamento de FHC, em São Paulo. Nessa operação irresponsável, FHC faz o papel do policial bonzinho que dá um cigarro ao preso antes dele ser torturado por outro policial. Diz para a mídia, cinicamente, que a hora é de acalmar o marcado.

Jogo é cada vez mais pesado

O jogo pesado da mídia contra a candidatura Lula neste fim de semana, especialmente dos dois jornais paulistas, Folha e Estadão, deve ser visto como mais um assalto de uma ofensiva que está se revelando cada vez mais feroz e inescrupulosa. O primeiro teve a forma de uma onda das revelações de corrupção em prefeituras do PT e visava desviar o foco das denúncias de propina nas privatizações. Não sensibilizou o eleitor pela fragilidade das acusações.

O ataque deste fim de semana deve ter algum efeito porque foi corroborado com o fato concreto das perdas nos fundos de investimento. Teve como primeiro objetivo desviar atenção de uma semana repleta de notícias ruins para os tucanos. Mas com o indiscutível sucesso dessa tática que efetivamente está disseminando o medo e colocou o PT na defensiva, a cúpula tucana adotou-a como eixo do discurso de Serra, com o objetivo novo de assegurar a polarização Lula-Serra. Por isso Pimenta da Veiga, um dos mais agressivos tucanos, insiste na palavra ?competência?, como fez neste domingo, de novo, para evitar crises.

O paradoxo da agenda

Trata-se de um exemplo típico de fixação de uma agenda de debates artificial e, mais que isso, paradoxal. Porque enquanto se debate se um governo Lula imporia uma reestruturação ou calote da dívida, isso acaba de ser feito por esse governo. O calote já soma cerca de R$ 5 bilhões, segundo as estimativas de até a última sexta-feira (08).

O JB dedicou duas páginas no domingo ao calote, aos vazamentos de informação e aos instrumentos legais que os investidores tem para exigir a devolução do que perderam. Alguns desses investidores são prefeituras. Essa seria a agenda de debates que interessaria também às oposições, não com o objetivo de botar mais lenha na fogueira da crise, mas de colocar o foco no lugar certo.

Fala de Soros produz indignação

A seção de cartas da Folha, tratada pelos seus dirigentes como espaço estratégico, traz hoje três manifestações indignadas contra a fala de Soros e nenhuma a favor. Indício de que a entrevista não pegou bem. ?Ou Serra ou o caos, disse Soros, e isso se tornou o mote de todo o novo ataque do terror financeiro conta candidatura Lula. Soros disse também que ?o Brasil esta condenado (pelo mercado) a eleger Serra e que no capitalismo global só votam os americanos, os brasileiros não votam.? Foi isso o que mais ofendeu os leitores da Folha.

O raciocínio de Soros é interessante porque ao levar o argumento ao limite, ele nos convence do contrário por absurdo: nesse caso, não adianta ter eleição, democracia, nada disso. E mais: ao contrário dos que dizem que se Lula for mais claro isso não aconteceria, Soros diz que não adianta ser mais claro ou menos claro.

E a responsabilidade do jornalista

Intencionalmente ou não, Clóvis Rossi e o editor da Folha usaram a fala de Soros com eficiência a serviço da agenda do terror financeiro. Teria Clóvis Rossi agido de acordo com a ética jornalística? Ou se colocou a serviço de Serra? A função principal do jornalista é informar os fatos de interesse público sejam quais forem as suas conseqüências. Não cabe ao jornalista dosar as verdades que vai revelar porque isso faria dele um censor, um juiz do que o público deve ou não deve saber. A responsabilidade do jornalista se esgota no momento em que ele revela fatos de interesse público.

Acontece que Clóvis Rossi não informou um fato de interesse público, ele criou um fato de interesse público, o que é muito diferente. Se Soros tivesse dito o que disse num discurso ao público presente no tal jantar do Council of Foreign Relations, teria sido um fato. Mas não. Clóvis Rossi escolheu Soros, entre tantas outras pessoas para entrevistar e nem explicou se Soros disse o que disse informalmente numa mesa de jantar, em tom de boutade, uma ironia, uma frase de efeito entre duas garfadas, ou se foi em tom sério e formal. Clóvis Rossi nem explicou o que foi esse jantar, se houve ou não algum discurso o que ele estava fazendo lá. Como jornalista independente que é. Ele nos deve ao menos a explicação das circunstâncias e do tom em que Soros disse o que disse.

A velha teoria do caos

Carlos Heitor Cony diz na sua crônica de domingo que ?durante os 21 anos de ditadura militar, era comum ouvirmos que a advertência de que eleição atrapalhava a vida do país?. O melhor era não ter eleição. E Ruy Fausto, na sua importante entrevista no caderno Mais! da Folha, revela que essa tese é ainda mais antiga, sempre foi levantada o espectro do caos quando uma frente popular ameaçava chegar ao poder. Certamente antes de saber da frase de Soros, Rui Fausto diz que quanto à ?ameaça de caos na hipótese de uma vitória de Lula, esse tipo de conversa já existia no tempo do ?front populaire? francês?.

Não deixe de ler

A entrevista concedida pelo sociólogo Ruy Fausto a Maurício Santana Dias ?Marx contra Marx?, publicado no caderno Mais! da Folha deste domingo. Apesar de muito longa, é leitura que vale tempo gasto. Ruy Fausto classifica a trajetória de PT até agora como muito honrosa e não acha que ao defender propriedade privada, condenando invasões do MST, Lula esteja caminhando para a direita. O sociólogo diferencia propriedade privada de capital e diz que o MST é prisioneiro de um guevarismo ultrapassado. Mas Ruy Fausto também adverte contra alianças a qualquer preço para chegar ao poder. Argumenta que as alianças devem ser avaliadas tanto pelo critério político como pelo moral. E que o PT não deveria fazer alianças com gente notoriamente de direita. Diz que é melhor perder sem fazer essas alianças, e que o pior é fazer e mesmo assim perder. Seria o fim do PT, na sua opinião.

7/6/02

Crise fabricada escapa ao controle

Tornou-se delicada a situação do mercado financeiro porque a crise fabricada por Armínio Fraga acabou escapando do seu controle. As perdas já devem somar R$ 5 bilhões. E a onda se espalhou. Respingando em outros mercados financeiros domésticos e externos. Com isso, assumiu um caráter mais geral e de maior visibilidade, ainda que de intensidade moderada.

Houve até manifestação do FMI, para acalmar os mercados, como noticiam os jornais. A Folha deu destaque, na página B3: ?FMI e EUA tentam abafar crise no Brasil?.O caderno de economia do Estadão é todo dedicado à crise. Não há clareza ainda se está em curso um ataque especulativo mais pesado contra o real, ou se o movimento dominante é a realocação localizada de aplicações, que também está ocorrendo, por causa do calote dos fundos de investimento.

Golpe foi dado nos pequenos

E a situação do governo se complicou com as revelações de ontem de que os grandes bancos receberam informação privilegiada e salvaram sua grana. O JB deu manchete: ?Grandes investidores se salvaram?. Diz que na véspera esses grandes sacaram R$ 1,8 bilhão. O Estadão desta quinta-feira (05/06) disse que esses saques totalizaram R$ 2,6 bilhões líquidos. E revela, ?Segundo fontes do mercado, grandes investidores já teriam sido avisados sobre as possíveis perdas e, portanto, efetuaram os saques antes da marcação dos títulos a preço de mercado?.

Hoje, o Estadão recua. Comprova que os grandes investidores já estavam saindo antes das últimas medidas do BC, mas muda o tom tentando com isso provar que as medidas não tiveram nada a ver. O JB, no entanto, que teve a primazia dessa revelação, mantém a acusação e dá manchete de primeira página à iniciativa da oposição de pedir uma investigação: ?Câmara vai investigar vazamentos?. Trata-se de uma acusação da maior gravidade. Indica tráfico de informação privilegiada dentro do Banco Central.

Contra-ofensiva dos tucanos

Até esta quinta-feira (06/06) predominava na mídia a percepção de que o BC atuou de forma desastrada. Nassif e outros jornalistas de prestígio se juntaram ao coro dos economistas que culpam o BC. Incomodados, os tucanos partiram para uma contra-ofensiva pesada, com a ajuda da mídia que hoje abriu a eles todos os seus espaços. A idéia principal é tentar reverter a percepção do calote e da culpa de Fraga. Ao mesmo tempo seguem o conselho dado nesta quinta por César Maia na Folha de explorar politicamente a crise para salvar a candidatura Serra. O mais cínico foi o próprio Serra que fica falando o tempo todo do ?alongamento da dívida?, e ontem acusou o a oposição de explorar a crise.

O perigoso jogo dos neoliberais

César Maia na página dois da Folha de ontem pregou abertamente que se jogue mais lenha na fogueira para salvar a candidatura Serra.?Ou, como diz Morató em seu imperdível el juego de los políticos: usar o discurso da catástrofe iminente?. A tese de Maia é de que o eleitor não quer continuidade e por isso Serra não convence. Mas pode querer a continuidade se a alternativa for a catástrofe. Não por coincidência, Serra insiste em falar irresponsavelmente no tema do alongamento de dívida. O fato é que a crise materializou o discurso genérico de que o Brasil poderia virar uma Argentina.

A culpa é da oposição, como sempre

Os neoliberais repetem hoje o mote de que a culpa é duplamente de Lula: por estar na frente, coisa a que ele não tinha o direito, e por não se comprometer a seguir a mesma política de Malan, outra coisa a que ele também não tinha direito. E exploram o medo subjacente, que já existe no investidor, de o Brasil pode virar uma Argentina, como revela a manchete da página B3 de Estadão: ?Crise argentina deixou investidor temeroso?.

Do grande número de artigos acusando o PT pela crise destacamos os de Armínio Fraga na Folha e a entrevista com Celso Pastore no Estadão. Armínio está se defendendo, mas no final repete o refrão de que a falta de sinalização das oposições tem culpa na crise. Celso Pastore, agressivo, põe toda a culpa no PT.

O título da entrevista de Pastore é um absurdo lógico ou um ato falho: ?O desequilíbrio vem do risco político?. Então há um desequilíbrio? Que desequilíbrio? Só pode o ser o das contas nacionais, especialmente o do tamanho desproporcional da dívida em relação ao PIB e o do balanço de pagamentos, que não fecha. Fatos objetivos, que não dependem da campanha eleitoral.

As metas não cumpridas na saúde

Um excelente artigo na página dois do JB de ontem revela que ?Governo não cumpriu metas em 2001?, na área da saúde. Exatamente a área de Serra.

O novo escândalo das contas externas

Impressionante a revelação feita discretamente pelos jornais de ontem de que foram remetidos para o exterior R$ 124 bilhões através da contas CC5, entre 1992 e 1996. O enfoque na mídia é na sonegação fiscal por sacoleiros e narcotraficantes, mas o verdadeiro enfoque deveria ser no uso dessas contas para remessas pelos grandes bancos, fugindo de seu papel original que era apenas de servir para pessoas físicas. Foi o neoliberalismo que abriu esse canal de remessas de dólares.

Nas entrelinhas: escondendo o desemprego

Numa pequena matéria da página B11 do Estadão desta quinta (06/06), escondida sob um título neutro ?IBGE testa outra metodologia para o índice de desemprego?, se descobre que a nova metodologia já está pronta desde setembro do ano passado, mas está sendo mantida em segredo e vai continuar escondida até depois das eleições. O motivo é claro: a nova metodologia vai falar em desemprego de 15% e não dos 7 % atualmente considerados pelo IBGE. O texto mais detalhado sobre essa história está na página A4 da Gazeta Mercantil também desta quinta-feira (06/06).

O próximo apagão: falta d?água

Importante revelação na página C3 do Estadão de ontem de que o TCU detectou iminente crise de abastecimento de água no país.

5/6/02

The market rides again

A especulação ataca de novo o real. Esse é o tom da cobertura dos jornais. ?Fundos já especulam contra o Brasil?, diz a reportagem, de Washington, na página de abertura do caderno de economia da Folha, revelando que os grandes fundos estão apostando numa maior desvalorização do real. Isso significa que já estão saindo do real. ?Especuladores desafiam BC?, foi a manchete do JB.

Cartas Ácidas já havia detectado, há duas semanas, um começo de fuga do real. As novidades desta semana são a extensão maior da fuga, o envolvimento do conjunto do mercado, inclusive pequenos investidores, e não apenas alguns grandes. A movimentação se torna cada dia mais um fato político, e não apenas financeiro.

A crise fabricada

Ibrahim Eris, em importante entrevista no Estadão de terça-feira, atribui a crise a uma sucessão de equívocos do BC. Mostra-se decepcionado com Armínio Fraga, antes o menino de ouro do mercado. José Júlio Senna, em entrevista na página B6 da Folha desta quarta-feira, também atribui a crise a erros do Banco Central. Os dois dirigiram o Banco Central e, portanto, devem saber o que estão falando. E nenhum deles é petista, portanto a crítica não pode se considerada eleitoreira. Mas quais foram esses erros? Os jornalistas em geral metem os pés pelas mãos quando tratam do mercado financeiro. Escondem a sua falta de entendimento num jargão complicado, e o leitor dança.

Por dentro da jogada

Foi preciso decifrar as matérias dos jornais. Trabalho de Sherlock Holmes. Fernando Dantas, com base em entrevistas com banqueiros, diz no Estadão desta quarta que tudo começou quando Armínio Fraga, apavorado com o agravamento da crise Argentina, no final do ano passado, ofereceu aos investidores grande volume de títulos do tesouro com correção cambial e prazos relativamente longos. Sonia Racy diz no Estadão que isso começou já no day after do 11 de setembro. De qualquer forma, Armínio ofereceu taxas de juros muito altas. Com isso, diz Pedro Tomazoni, do Loyds, o governo implicitamente desvalorizou parte do estoque anterior da sua dívida. Isso porque, aos poucos, os bancos vão se desfazendo dos papéis anteriores, que rendiam menos, para comprar os novos, que rendem mais. Ao se desfazerem, desvalorizam esses papéis. Em outras palavras, o BC criou uma dívida nova, a juros maiores, ?micando? o estoque da dívida antiga.

Júlio Senna diz que os deságios nos títulos do governo aumentaram em abril, mas sem que o grande público tomasse conhecimento. Acusa o BC também de falta de transparência, ao não divulgar os resultados dos leilões. Assim, só os grandes ficam sabendo e ganham um pouco mais de tempo para passar os títulos para os pequenos. O mercado, que deveria ser um fato público, foi tratado pelo BC como coisa privada, e dos grandes.

O desastre da taxa de juros

É unânime, entre os observadores, que um novo e grande erro foi cometido em abril, quando o BC teimou em não reduzir os juros, apesar das condições favoráveis de inflação e do ambiente recessivo. Se o BC, mesmo com aquele cenário, não baixou os juros, era porque estava com medo. Em vez de mostrar confiança na economia, revelou fraqueza e desconfiança, que tomaram conta do mercado. Essa foi a avaliação compartilhada, na Globonews ontem à noite, por Luiz Gonzaga Belluzo e pelo próprio âncora gravatinha do programa. Cartas Ácidas também já chamou a atenção para o erro capital que foi não baixar os juros em abril, comparando-o com erro de Gustavo Franco ao não desvalorizar o real em 1998.

Banco Central traumatiza o mercado

Mas o pior aconteceu no final da semana passada. A repentina mudança de regra na contabilidade de fundos de investimento provocou grandes perdas aos investidores. O BC traumatizou o mercado financeiro. Na pior das hipóteses, o BC queria mesmo tumultuar o mercado e, nesse caso, só pode ser por razões eleitorais. Nenhum jornal ou comentarista considera essa hipótese. Mas todos os jornais deram as perdas que o BC impôs aos aliciadores como uma das causas do amento do ?risco Brasil?, que atingiu novo recorde (acima de mil pontos) .

Perdas enormes

Foi um confisco camuflado. As perdas imediatas atingiram R$ 2 bilhões, segundo a estimativa do site Fortuna, especializado em fundos, e citado por vários jornais hoje, inclusive pela Gazeta Mercantil. Também sofreram perdas os brasileiros que acreditaram na propaganda dos bancos e do governo, e investiram seu dinheirinho em aposentadoria privada, através dos PGBLs. Isso porque os PGBLs aplicam esses recursos em fundos de investimentos. O site Fortuna avaliou as perdas de 226 fundos em R$ 53 milhões, até a sexta-feira. As perdas continuaram na segunda, na terça e podem ser registradas ainda por muitos dias.

A natureza das perdas

Não é fácil entender porque uma mera mudança na forma de contabilizar um valor implica na perda de parte desse valor. Em resumo, as cotas dos fundos eram vendidas aos aplicadores por um preço calculado, com base no valor que os títulos comprados por esses fundos teriam nas datas de seus vencimentos, mais os juros que renderiam até aquela data, e não pelo preço efetivo pelo qual trocavam de mão no dia-a-dia do mercado, em geral, com um deságio. Esse deságio, como nós vimos, foi alimentado ainda mais pelo Banco Central ao colocar títulos novos bem mais atraentes.

Quem perdeu e quem ganhou

A primeira perda, portanto, é de quem não sabia de nada e aplicou nos fundos na véspera da mudança. Esse investidor pagou pelas contas mais do que teria pago se comprasse hoje, após a adequação do valor das cotas ao valor de mercado dos títulos em que o fundo investe seu recursos. Se sair hoje do fundo, recebe de volta pelo mesmo número de cotas entre 2,5% a 4,5% a menos do que aplicou. Empresas ou pessoas que venderam propriedades e deixaram o dinheiro nos fundos por alguns dias, até lhe dar outro destino, podem ter sofrido prejuízos muito grandes. Em princípio, ganharam os grandes, que sabiam das coisas, e perderam os pequenos. Seria até bom a oposição checar se não houve vazamento da decisão do BC, tomada da quinta-feira passada.

E quem ainda vai perder

Mas há uma segunda perda. Assustados, muitos investidores estão sacando seu dinheiro dos fundos, mesmo com prejuízo, o que força os fundos a vender o valor correspondente em títulos. Na segunda, os saques dos fundos superaram as entradas, segundo a Gazeta Mercantil e o Estadão. Vendas em massa derrubam o valor de mercado dos títulos, reduzindo ainda mais o valor das cotas, e provocando mais fuga. É um círculo vicioso, que pode durar dias. A Folha usa a expressão ?pânico? para descrever essa fuga dos fundos.

O próprio BC provocou a fuga do real

Ao sair dos fundos, os investidores não têm muita opção. Uma das poucas é o dólar. Podem sair do real de vez e correr ao dólar. Isso alimenta a percepção de que haverá uma aceleração na desvalorização do real. E a profecia acaba se realizando, como em todos os ataques especulativos.

BC quebra um contrato

Depondo na Câmara, Armínio quis culpar a oposição. Disse que ?o mercado financeiro nacional e internacional adotou profundo pessimismo quanto á avaliação do futuro do Brasil? e mais uma vez cobrou compromissos antecipados dos candidatos à Presidência de não quebrar contratos.

Mas foi o próprio BC que quebrou contratos. O BC havia dado prazo até setembro para os bancos corrigirem o valor das cotas diariamente pelo valor de mercado dos títulos. Esse era o contrato. Algumas instituições já tinham corrigido todo o valor, outras estavam ajustando devagarzinho. Na quinta-feira, o BC, de sopetão, mandou corrigir tudo de uma só vez, alterando os prazos que ele mesmo havia estabelecido. A mídia conformista foi generosa, atribuindo ao BC o desejo de tornar os fundos mais transparentes e comparáveis, já que alguns haviam corrigido o valor e outros não. Mas por que não dar mais um mês ou dois? Por que de repente? Foi ?traumático?, diz Sonia Racy, na sua coluna de ontem no Estadão. Só ela, porque os colunistas chapa-branca ficaram quietos no seu susto.

?Não devia ter acontecido?

É o que diz Ibrahim Eris. Ele também acusa o BC de falhas na fiscalização dos fundos, já que eles ?sempre foram instruídos a trabalhar com preços de mercado? dos títulos. Não faziam isso para não ter que acusar perdas, nos momentos em que o valor de mercado dos títulos caía.

Propaganda enganosa

Há portanto um componente de propaganda enganosa, tolerada pelo BC, na forma como os fundos vendiam suas cotas. Inclusive os fundos de previdência privada, os PGBL, coqueluche do mercado financeiro dos últimos três anos. Veja chegou a dar uma capa, com reportagem de oito páginas, cheia de artistas de TV fazendo a apologia dos PGBL, na última semana de setembro do ano passado. O texto dizia que era como ?comprar um bilhete de loteria premiado com resgate garantido? dentro de algum tempo.

A Gazeta Mercantil mostrou na terça-feira que os bancos também vendiam cotas de fundos como se fossem uma poupança, omitindo o risco. Investidores lesados podem recorrer à justiça contra o Banco Central, segundo o próprio presidente do STJ, Nilson Naves, e advogados citados pelo jornal. Também a Folha cita essa possibilidade.

Não deixe de ler

A crítica de Delfim Netto à campanha governista em ?Os oito anos que mudaram o Brasil?, na página 2 da Folha desta quarta-feira. Delfim não deixa pedra sobre pedra. Diz que a campanha é uma modalidade de propaganda enganosa. Que mistura obras induzidas pelo governo com processos naturais da economia e da sociedade. E que seu efeito no brasileiro desempregado e deprimido é afundá-lo ainda mais.

3/6/02

O moralismo de uma imprensa imoral

Que moral tem os jornais para a condenação moral do PT? É isso que estão fazendo no caso das negociações entre o PT e Quércia. As alianças buscadas pelo PT são julgadas por critérios morais enquanto as alianças de FHC são avaliadas por critérios políticos. Na mesma semana em que FHC convida o senador Ney Suassuna para ministro, apesar de seu principal assessor estar preso acusado de tráfico de influência, a mídia cobra moralidade apenas do PT.

A mídia está tendo êxito incomum no seu objetivo de desgastar o PT. O caso Quércia está provocando um enorme estrago junto ao eleitorado esclarecido que não é familiarizado com a malícia da cobertura jornalística. Boris Fausto, na sua coluna de hoje na Folha, consolida, com o aval da sociologia, a condenação moral do PT. Ainda bem que ele confessa que sempre foi adversário do PT.

Governo comanda agenda nacional de debates

Desde o início da campanha, a agenda antipetista, comandada do Palácio, tem levado a melhor. A ênfase nos marqueteiros para nivelar todos os candidatos como produto de marketing foi um dos primeiros lances e abriu todo um leque de outras coberturas tentando mostrar um Lula maquiado e/ou contraditório. Depois veio o coro da estabilidade e da observância de contratos, que encurralou a oposição num discurso defensivo. E todos os movimentos do PT para ampliar sua base de apoio e de governabilidade, desde os primeiros contatos com o PL, são tratados a partir do particular e com viés moralista.

A falsa agenda de debates

O paradoxo é que o povo quer mudar o que está aí e por isso apóia os candidatos de oposição, mas a oposição não consegue fazer com que o debate nacional seja sobre as mudanças. Em vez de ajudar, a mídia sabota. Em vez de contribuir para o debate esclarecido, a mídia tem deliberadamente ofuscado as questões principais, nivelando propostas, desqualificando candidatos, retirando frases do contexto em que foram ditas, sofismando, falseando ou destacando aspectos menores das falas e dos eventos.

O que fazem sempre com Lula, fizeram na semana passada com as declarações de Ciro Gomes sobre o aborto. Ciro Gomes disse ser contra a criminalização do aborto. Isso não é o mesmo que ser a favor do aborto, como ele depois precisou esclarecer, devido a manchetes distorcidas dos jornais.

E a responsabilidade histórica da mídia

O papel central da boa mídia deve ser crítico-informativo, mais do que pedagógico. Mas a mídia brasileira está sendo extremamente antipedagógica. Quem chama a atenção para a irresponsabilidade da mídia é Gilberto Dupas, um tucano acima de qualquer suspeita. Em ?Caminhos perigosos?, publicado na página A2 do Estadão do domingo, ele aponta para o desvirtuamento do debate: ?O Brasil pode perder muito se a continuidade da campanha presidencial centralizar-se na escalada de difamações, somada á exploração da vulnerabilidade de nosso pobre país?.

Falas arriscadas e atos impensados

A mídia recuou quando o discurso da vulnerabilidade atingiu nível perigoso. José Aníbal, no entanto, insiste na exploração do medo com suas últimas frases de efeito. O discurso tucano que explora o medo de perdas financeiras foi lamentavelmente reforçado com a decisão do Banco Central da ultima quinta que, por um critério burocrático, provocou perdas contábeis da ordem de milhões nos fundos de investimento. A sensação de confisco já aparece na seção de cartas do leitor da Folha de hoje. Não convenceram as explicações dos jornais para a antecipação abrupta do prazo de adaptação dos fundos ao novo critério contábil, que termina em setembro. Mesmo antecipando para agora, o BC poderia ter dado algumas semanas para os fundos ajustarem sua contabilidade pelos novos critérios. Teria evitado essa perigosa sensação de confisco.Ou será que o objetivo era esse mesmo?

Heranças de FHC: impostos mais pesados

Nenhum dos jornais de referência nacional deu porque não ia ficar bem para a candidatura Serra: entre 1994 e o ano passado, a carga tributária total no Brasil aumentou de 27,9% do Produto Interno Bruto para 34,07%. Um aumento de 22%. Com esse aumento, a carga tributária tornou-se a maior em 54 anos da séria histórica do IBGE. Um primeiro aumento da carga deu-se por causa da Constituição de 1988. Mas o grande salto foi dado a partir de 1994, no governo FHC, com a criação da CPMF e o aumento das alíquotas de ICMS sobre a energia elétrica, os combustíveis e as telecomunicações.

Esses dados foram compilados pelo Departamento de Assuntos Fiscais do BNDES e foram publicados com grande destaque ocupando toda a página B3 da edição do domingo do Diário de São Paulo. O estudo mostra que a União leva a maior fatia do bolo dos impostos: 22,94%. Os Estados ficam com apenas 9,5%. Mas o que realmente choca é saber que os municípios nos quais concentra a miséria brasileira hoje, e que tem responsabilidades gigantescas no atendimento social e na educação básica, recebem apenas uma migalha do grande bolo dos impostos: 1,63%.

Nas entrelinhas

Até o antipetista roxo Maílson da Nóbrega foi abrigado a admitir, em artigo publicado este fim de semana sobre a dívida pública, que Lula é ?quem dispõe da a melhor equipe? entre os candidatos à presidência. Também Miriam Leitão, quase sempre alinhada com o Palácio, admitiu em sua coluna do domingo sobre o problema da moradia, que ?O PT apresentou o Projeto Moradia que parte de um ponto correto do qual todos os programas sérios para o financiamento imobiliário de baixa renda tem que começar: da constatação de que os pobres só conseguirão realizar seu sonho se tiverem subsídio público?. Ela fala bem do Projeto Moradia, mas o que ela discute detalhadamente é um estudo recente de Dionísio Carneiro para o Sindicato Nacional da Indústria de Cimento.

Não deixe de ler

?A morte dos pobres e a responsabilidade dos ricos?. Esse pequeno texto de Jeffrey Sachs, no cantinho inferior da página B2 de Folha de domingo é uma chocante denúncia da indiferença dos países ricos em relação à morte de pessoas com Aids na África por não poderem pagar os preços dos remédios. O economista americano compara a indiferença de seu governo à atitude do império britânico nos episódios em que as chuvas falhavam na Índia, sobrevindo a fome. Alimentos podiam ser levados facilmente pelas ferrovias, mas os britânicos achavam que as mortes pela fome eram um mecanismo natural de seleção. O artigo de Jeffrey Sachs é, sobretudo, uma cacetada mais do que oportuna no pensamento neoliberal.

?Exuberância irracional?, pequeno comentário de Sonia Racy na pagina B2 do Estadão do sábado, resume muito oportunamente a teoria de Mordecai Kurz sobre as ?crenças racionais?. De acordo com esta última, o investidor tem uma visão imperfeita das mudanças no mundo econômico e age por força de uma crença racional que se forma em determinado momento, a qual é muito mais uma crença do que uma racionalidade. Por ser crença, não muda a partir de argumentos e sobrevive a seus próprios erros de avaliação."