Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Bernardo Kucinski

ELEIÇÕES 2002

“Cartas Ácidas”, copyright Agência Carta Maior, 14/10/02

“O fascínio dos jornais pelo acessório dos fatos

Os jornais despertaram devagar demais e com má vontade para a revolução política que aconteceu no Brasil no primeiro turno. Foram se aproximando desse novo Brasil pelas beiradas, pelos aspectos secundários ou acessórios. A ?Folha? de sexta-feira (11) mencionava a ?renovação etária? nas eleições de governadores, em que se elegeram muitos jovens na faixa dos 40 anos. Quase todos os jornais contrastaram o avanço do MST no Congresso com a dramática diminuição da bancada ruralista. Alguns jornais dedicaram pequenas matérias ao avanço das mulheres no Congresso. Outros trataram o crescimento da bancada evangélica. Predominou na cobertura, e refletiu-se na ?Veja? deste fim-de-semana, a idéia da ?morte dos dinossauros da política?, os velhos caciques derrotados nesta eleição.

E a fuga do fato principal

Todas essas reportagens são verazes e interessantes. Abordam aspectos importantes e emblemáticos do primeiro turno. Mas todas tem como denominador comum ?desideologizar? os resultados e fugir do fato principal: o PT tornou-se o maior partido político brasileiro. Você viu algum jornal dar isso em manchete? Nenhum. Nem na segunda, nem na terça. Na quarta começaram a falar na ?onda vermelha? ou ?ventania vermelha.? Mas apenas no sábado veio a manchete de ?O Globo?: ?PT foi o campeão de votos?.

Demorou para a imprensa dar essa notícia não porque o TSE custou a divulgar a totalização dos votos, mas porque a imprensa brasileira demorou a digerir o fato principal.

O números da vitória do PT

O PT obteve mais votos do que qualquer outro partido político no primeiro turno da eleição. Somou 126 milhões de votos no seis cargos submetidos ao eleitor, 50% mais do que os votos obtidos pelo segundo partido mais votado, o PSDB. Foi também o partido que elegeu mais deputados federais e mais deputados estaduais. Além de seu candidato à Presidência ter obtido o dobro de votos do segundo colocado, o PT conquistou o direito à Presidência da Câmara dos Deputados e de um grande número de Assembléias estaduais. A ?Folha? de hoje mostra que o PT elegeu mais deputados estaduais do que qualquer outro partido, foi o único a ter representações em todas as assembléias e se tornou hegemônico em sete delas, incluindo as mais importantes.

E a dimensão da mudança

O voto majoritário no PT, somado ao crescimento geral das oposições, deu novo significado à vitória de Lula no primeiro turno e, por isso, era de importância fundamental no enquadramento da cobertura jornalística e na explicação da própria vitória de Lula. Deu caráter plebiscitário à eleição já no primeiro turno, tornando inútil o segundo turno presidencial. Os 75% de votos dados à oposição como um todo sepultaram o governo FHC e fecharam a possibilidade de Serra reverter a situação colando na imagem do presidente. Um voto assim tem a qualidade de um conceito, capaz de explicar o caráter geral da eleição e seus detalhes. É esse voto que explica os detalhes que tanto fascinaram a pauta jornalística e, não o contrário.

Coube a um analista estrangeiro dar a dimensão maior da mudança. Na sexta, a seção de notas da ?Gazeta Mercantil? registrava uma avaliação de Alain Touraine de que essa mudança pode colocar o Brasil na vanguarda de um movimento mundial de descarte do neoliberalismo e mudança de padrão da globalização. Ou seja, confirmada a vitória de Lula num segundo turno, o Brasil e a América Latina estarão equipados politicamente para uma substancial mudança de rumo e para um novo experimento democrático conduzido pelas esquerdas, de caráter histórico e de alcance mundial.

Falácias sobre maiorias e minorias

Todos os jornais enfatizam que nem PT nem PSDB podem governar um sem o outro, o que também não é correto. Predominou a tese falaciosa, trabalhada na edição da ?Folha? de quinta-feira (10), de que a ?nova Câmara mostra poder fragmentado?. De novo, tentaram esconder o fato principal com aspectos acessórios.O fato principal é que se tornou muito fácil formar um bloco de sustentação de um governo Lula com partidos de esquerda, mais uma fração do PMDB.

O bloco de esquerda pura (PT, PDT, PPS, PSB, PCdoB, PV e PMN) soma 167 cadeiras e fica com a presidência da casa, com forte influência nas comissões. Praticamente controlaria o fluxo legislativo, mesmo não tendo poder de veto sobre emendas constitucionais, nem maioria absoluta. Ampliado com a bancada do PL, que participa da coligação Lula Presidente, e do PTB, que se juntou à coligação no segundo turno, esse bloco soma 219 cadeiras, superando com folga o número mínimo de cadeiras (204) necessário para vetar emendas constitucionais.

Para chegar à maioria absoluta de metade dos votos mais um (257 cadeiras), a base de sustentação natural de um governo Lula precisaria atrair apenas mais 38 parlamentares, ou metade da bancada do PMDB ou da bancada do PSDB; e, para chegar à maioria de 2/3 que permite aprovar emendas constitucionais e aplicar sobre a direita um rolo compressor, basta o bloco de esquerda ampliado atrair 89 deputados, o que também é relativamente fácil, pois corresponde a um pouco mais da metade das bancadas somadas dos dois grandes partidos do centro, o PSDB e o PMDB.

O nocaute do malanismo pelas urnas

Nenhum colunista associou o nervosismo de Armínio Fraga na quarta-feira (9) passada e o sumiço de Malan à votação de Mercadante. O novo senador do PT sempre esteve na linha de frente da crítica a Malan. E por isso se notabilizou. A equipe de Malan certamente sentiu no fígado a expressiva votação de Mercadante, de mais de 10 milhões de votos. Esses votos dão a medida do repúdio da população às políticas do BC, principal objeto do discurso crítico de novo senador. Esse recado específico das urnas foi ignorado pelos colunistas chapa-branca. Mesmo no capítulo dos fatos acessórios, a mídia escolheu os que lhe convinha e ignorou outros.”

“A volta (e o voto) dos que não foram”, copyright O Globo, 15/10/02

“Numa provável noite de insônia meses atrás, Lula deve ter feito um pacto com forças poderosas, divinas ou internas: em troca da tão adiada vitória, ele se prestaria a vários papéis e a situações insólitas, em consonância com transformação existencial já em curso. O sinal foi pago com novos ternos, dentista, a criação da persona ?Lulinha paz e amor? e uma série de mudanças que, da água para o vinho, da cachaça para o Romanée, deram à luz o Neolula.

Na propaganda gratuita de ontem, Lula, de olho no trono, pagou mais uma parcela desta dívida ao encarnar a figura de um anti-Gugu, no grande espetáculo midiático que inaugurou a Gratuilândia II. Numa mistura de marketing de rede Amway, ?Sai de baixo?, noite do Oscar e final de ?Big Brother?, a grande nação petista e agregados, reunida em imperial auditório, assistiu, com aplausos homologatórios, à estranha volta dos que não foram. Ciro – que a julgar pelo debate da Rede Globo rumava resoluto para uma incondicional oposição, e que há dez dias dizia, na TV, ser Lula o aventureiro do ?sabe-lá-como-vai-ficar? – voltou, restaurado. E quando Lula mandou, o auditório, formado por petistas ilustres, artistas etc, respondeu, qual numa claque: ?Ciro?!!

Garotinho (segundo Gugula, ?meu companheiro e amigo?), aquele que semana passada prometera impor severíssimas condições em troca de um suspiro de apoio, também voltou, para dizer que a palavra agora é mudança (peraí, esse não era o slogan do Serra?).

Repetindo o gesto de ?agora vem? – que Lula, Alencar e Ciro (juntos, em bonitinha coreografia) e Garotinho (no telão) já haviam feito – Roseana chamou na moral o eleitorado, diretamente de seu leito hospitalar. Um convite não muito animador, admitamos.

Se no show de Lula (que foi reprisado à noite) tudo era criatividade, Serra, na parte da tarde, rumou pelo pântano da monotonia, batendo na tecla da incitação aos debates e gastando seus dez minutos numa entrevista. A não-dicção do entrevistador e as respostas dejà-vu de Serra foram tão assustadoramente chatas que ficou difícil guardar na memória uma parte sequer do que foi dito. Teve algo sobre o Lula não querer debater, uma conversa sobre emprego e segurança, e uma ?grande alegria? de estar disputando o segundo turno. À noite, a cada vez mais jovem Regina Duarte informou, num discurso atualíssimo, que está morrendo de medo de Lula, o homem de duas caras. Só faltava chamá-lo de sapo barbudo, se bem que ontem ele estava mais para ?Caco, o sapo? (quem lembra?), o inesquecível apresentador do Muppet Show. De acordo com o gentil discurso de Regina, votar em Lula é ?jogar no lixo? tudo que há de bom. Poxa, namoradinha! Que agressividade.

De resto, Serra repisou suas propostas e instilou o veneno requentado da insegurança no eleitor de Lula, com base nas teses da falta de experiência, clareza e verdade. Enfim, tranqüilizou a todos: ?Tenho uma cara séria, mas é só uma?. Que isso, Serra! Cadê aquele sorriso que o Nizan te ensinou?”

“Desconstrução”, copyright Folha de S. Paulo, 10/10/02

“Um dos termos em voga, na crônica destas eleições, é ?desconstrução?. Tomada da recente filosofia francesa, a palavra vem sendo usada para designar a desmontagem, pela contrapropaganda, de candidaturas ?construídas? pelo marketing de televisão. Convém ?desconstruir? também, ao menos em parte, certas conclusões sobre o ?recado das urnas?.

O caciquismo foi varrido – Verdade em termos. Não existe dúvida de que uma leva de políticos tradicionais foi derrotada. Podemos divisar elementos em comum no perfil dos náufragos. Não custa lembrar, no entanto, que isso acontece de tempos em tempos. Nova camada de políticos emerge a cada onda dessas, instala-se no poder, desgasta-se e um dia é varrida por sua vez.

Existe uma evolução. Métodos mais brutos de intimidação e de controle são substituídos por outros, mais sutis. Certos padrões de conduta verbal desaparecem. A cada renovação, o político médio torna-se mais informal e anódino, embora a qualidade de sua atuação seja quase sempre superior à de seus precursores.

Em termos de ?circulação de elites?, a onda petista talvez só tenha paralelo histórico na substituição da camada governante em 1930. O tempo dirá se a aproximação é tão exagerada como parece. Diferentemente de 30, no entanto, o processo atual não passa por um golpe armado, mas por um processo lento, gradual e seguro de osmose sócio-política.

Em caso de vitória de Serra, o cenário vai se desanuviar – Ambas as coisas parecem improváveis. De tão pouco plausível, uma vitória do candidato tucano irá gerar amplo movimento de frustração em metade do eleitorado, e não faltará quem a acuse de fraudulenta. O êxito tornaria ainda mais auto-suficiente uma personalidade que já o é bastante.

Os chamados mercados no fundo não preferem A ou B, preferem evidentemente lucros. Com razão, acreditam que um ambiente previsível e relativamente estável é mais propício para os negócios. Eleito, Serra enfrentaria uma conjuntura igualmente adversa do ângulo da economia, sem o respaldo organizado que funcionaria como contrapeso no caso de Lula.

O establishment vai se aglutinar contra Lula no segundo turno – Meia verdade. É certo que a continuidade tucana seria a predileção da maioria do empresariado. Lula e o cerne de seu partido já se comprometeram o suficiente com o centro, no entanto, para suscitarem repulsa. A condição de favorito atrai apoios dessa camada quase sempre governista.

A base do PT na classe média é ampla e crescente. Os meios de comunicação refletem, em parte, a inclinação do estrato onde se encontra a sua clientela. O lobby petista é intenso nos meios intelectuais, que incluem o ambiente jornalístico. O poder em via de se tornar dominante é o PT. Depois de ser estilingue, está na hora de aprender a ser vidraça.”