Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Bernardo Kucinski

PRIMEIRA LEITURA

“Kucinski responde Primeira Leitura”, 5/09/03

“Ao Diretor de Redação de Primeira Leitura

Reinaldo Azevedo

c. cópia p/ Luiz Carlos Mendonça de Barros;

Sindicato dos Jornalistas do Estado de S. Paulo

Observatório da imprensa

Brasília, 01/09/2003

Prezados Senhores,

Lamento a má qualidade jornalística da matéria
?Comissário do Povo?, que critica meu trabalho na Secom e
editorializa a partir de informações erradas. Esperava
mais seriedade dessa publicação, no seu início,
tão promissora.

Vamos aos fatos. Já no começo deste ano, Luiz Carlos
Mendonça de Barros criticou um texto sobre o tratamento dado
pela mídia ao Fome Zero a mim atribuído pela Folha
de São Paulo, e elaborou longamente sobre o meu comportamento.
Ocorre que o texto não era meu e sim do Cláudio Cerri.
Um texto, aliás, admirável, e que apenas continha
uma única frase de tom talvez inadequado para uma publicação
veiculada pelo governo. Mendonça de Barros poderia ter verificado
tudo isso, se tivesse checado as informações. Atribuí
o deslize à sua relativa inexperiência em jornalismo
e na ocasião nem respondi. Foi um erro.

Desta vez, a revista dedica três páginas a um exercício
de ?character destruction?. Mais uma vez baseado em matéria
publicada em outro veículo ?O Correio Braziliense? do dia
06 de julho passado, repleta de incorreções que Primeira
Leitura não se deu ao trabalho de checar. Não é
verdade que a repórter Vera Magalhães pediu-me uma
entrevista e eu recusei. Minha agenda não registra nenhum
telefonema seu. Pode ter havido uma ligação deliberadamente
casual a meu celular, dessas atendidas no meio do trânsito,
nada que possa ser entendido como um pedido formal de entrevistas.
Mesmo porque nunca recusei entrevistas.

Os equívocos e distorções da matéria
chupada pela Vera Magalhães, estão esclarecidos na
carta anexa,que enviei ao Correio Braziliense no dia 9 de julho,
e que o jornal nunca publicou. Os principais referem-se aos verbetes
que descrevem formas de manipulação da informação,
re-escritos pelo Correio de forma a me incriminar, quando não
passam de definições encontradas em qualquer bom dicionário
de comunicação.

Além de reproduzir os erros da matéria original,
Primeira Leitura comete os seguintes erros adicionais de informação.

Não foi criada nenhuma estrutura semi-secreta na Secretaria
de Comunicação de Governo. Nossos monitoramentos da
mídia são distribuídos para mais de 300 assessorias
do governo e um deles, o principal é disponibilizado no site
do governo. É uma ferramenta normal de trabalho, que todas
as grandes organizações possuem. O veiculo chamado
? Leitura da Mídia?, de fato fazia um acompanhamento crítico
do processo de comunicação. Mas não tinha viés
autoritário, tanto que muitas vezes criticava o próprio
governo por tentar camuflar a informação ( em geral
as de natureza econômica).O Leitura de Mídia era um
momento diário de reflexão sobre o nosso fazer , muito
apreciado, e que eu decidi interromper porque de fato não
foi bem aceito pela nossa comunidade jornalística, pouco
habituada á critica.

Não é verdade que o trabalho de monitoramento e análise
já era comandando por mim na campanha eleitoral. No comitê
de campanha funcionou um grupo independente de acompanhamento de
mídia, formado por nove voluntários, pensado como
o embrião da seção brasileira do Mídia
Watch Global. Foi organizado pelo jornalista Carlos Tibúrcio.
Os resultados foram apresentados no III Fórum Social Mundial
numa sessão do Mídia Watch, com a presença
do Roberto Sávio e Ignácio Ramonet. Vocês confundiram
esse trabalho com minhas Cartas Ácidas, publicadas no site
Agência Carta Maior, sem nenhuma ligação com
a campanha, exceto é claro minhas ligações
ideológicas e afetivas com Lula e o PT.

É particularmente falsa a assertiva de que eu descarto ?a
existência do erro não intencional? em jornalismo.
Estou anexado meu texto sobre um serviço de pronta resposta
que tem como ponto forte justamente chamar a atenção
das assessorias para fato de que o erro não intencional faz
parte do jornalismo. O importante é corrigir o erro não
intencional. Os verbetes, que vocês tanto criticam como exemplos
do meu estalinismo, foram reunidos para ajudar as assessorias a
responder erros de informação, como apoio ao serviço
de pronta reposta. A idéia é capacitar assessores
a qualificar erros em vez adjetivá-los, com o objetivo de
elevar o nível do jornalismo e de nossas relações
com a imprensa. O guia de pronta resposta teve tanto sucesso que
recebi pedidos de copais de todos o país, inclusive de empresas
privadas.

Senhores, a acusação de que eu sou estalinista é
tão verdadeira quanto a feita em 1981, de que eu era um agente
do Mossad. Sobrevivi àquela, vou sobreviver a mais esta.
Tenho orgulho de ser, dentro do aparelho de informações
do governo, um dos mais batalha pela transparência.

Atenciosamente,

Bernardo Kucinski

PS especial para o Mendonça de Barros: eu também
cometo erros não intencionais. Um deles, foi usar como exemplo
para um determinado verbete, uma acusação feita pelo
Correio contra um funcionário público. Não
foi uma escolha muito feliz. È que eu tenho profunda ojeriza
ao denuncismo como gênero jornalístico que se distingue
de denuncia jornalística legitima, por ser um processo de
julgamento sumário que se dá no espaço midiático,
sem a presunção da inocência e sem o contraditório.
Foi um pouco o que vocês fizeram comigo nessa matéria
infamante. Foi o que muitos jornalistas fizeram com você,
Luiz Carlos, e seus amigos no tratamento das privatizações
durante o governo FHC. Sobre isso, escrevi um mini-ensaio publicado
em Observatório da Imprensa. Sugiro que você leia.”

 

Caro leitores de Observatório da Imprensa,

A carta do professor Bernardo Kucinski, a que o senhores têm
acesso, chegou-me no dia 1? de setembro, quando a edição
do mês estava impressa, razão por que só será
publicada na edição de outubro. No mesmo dia, enviei
ao professor uma resposta, que segue abaixo reproduzida. Kucinski
– me vejo tentado a cravar aqui um "como de costume" –
não quis saber de qualquer forma de diálogo. Não
apenas disse que eu perdia meu tempo ("gastava o meu latim")
como pediu que o sr. Luiz Carlos Mendonça de Barros, publisher
da revista e do site Primeira Leitura, o
procurasse em Brasília. Para tanto, forneceu em seu e-mail,
pressuroso, endereço e telefone. É um homem de método.

Entendi, é certo, o recado! O sr. Kucinski avalia que um
debate qualificado sobre questões jornalísticas e
sobre o que ele considera um procedimento incorreto desta revista
só pode ser feito com o "dono", que é, afinal,
segundo os seus valores, quem manda. Coube-me responder-lhe que,
por delegação, é claro! – e até que
ela exista -, ele terá de tratar comigo, se quiser, de quaisquer
assuntos que digam respeito a Primeira Leitura.
Lamento que antigos porta-vozes da liberdade de imprensa se comportem,
sim, hoje em dia, como stalinistas comissários do povo, advogando
um tipo de censura que, se não pode ser legal, busca ser
exercida por meio de mecanismos de pressão e do clamor de
setores organizados da sociedade. Esse era o verdadeiro tema da
matéria que ele repudia..

Do que não é mera peroração no texto
de Kucinski, que fique a resposta claríssima: a editora Vera
Magalhães procurou, sim, o professor para ouvi-lo sobre a
matéria que se fazia. A resposta, que veio de seu gabinete,
é um primor da singeleza autoritária: "O professor
Bernardo Kucinski considera o tema já respondido e superado".
Ou seja, o professor Bernardo Kucinski optou por não responder
na suposição de que, em não respondendo, não
haveria matéria. Mais ainda: temos em mãos os "mandamentos"
do que ele considera bom jornalismo. E eles servem de elementos
a instruir o texto de Vera Magalhães, que considero impecável.

De resto, esta não é a primeira nem será a
última vez em que certa patrulha vai tentar jogar Primeira
Leitura
na vala dos "inimigos do povo"
porque revista e site não se assustam em afrontar supostos
consensos. Mas que fique bem claro: nós temos inteira consciência
de que nossa receita editorial e o caminho que escolhemos no jornalismo
suscitam tal "vigilância". Espero que os leitores
de Observatório da Impresa tenham
claro que não estou reclamando de absolutamente nada!!! Eu
seria o último, no debate ideológico, a sair, feito
um Bambi assustado, a gritar: "Fogo, fogo na floresta!".
Reitero: debates como este, eu quero é mais. Segue a carta
que enviei ao professor por ocasião de seu texto:

*

"Infelizmente, a carta do Professor Kucinski chegou à
redaçãatilde;o neste 1? de setembro. A edição
de Primeira Leitura já está
na gráfica, rodando. A carta – acompanhada, certamente, de
minha resposta (que não esta) – será publicada, na
íntegra, na edição de outubro da revista.

De imediato, cumpre destacar que esta direção de
redação tem integral confiança no trabalho
da editora Vera Magalhães e que não assistiu o referido
texto, em nenhum momento, o propósito de desqualificar o
professor Kucinski ou qualquer outra autoridade ou personalidade
ligadas ao governo Lula.

Primeira Leitura, gostem ou não
(e muitos, de fato, não gostam…), no que respeita ao exercício
da opinião e da análise, faz crítica política,
lida com idéias. Nem o professor Kucincki nem qualquer outra
pessoa, no governo ou fora dele, seriam capazes de apontar uma única
vez em que a revista ou o site enveredaram pela desqualificação
pessoal de quem quer que seja. Vidas, atuações e reputações
privadas não nos interessam. O norte, insistimos, das duas
publicações é o paradigma republicano – da
"res publica".

Estamos, caro professor Kucinski, todos nós, num debate
que é de idéias, de práticas de governança,
não num campeonato de reputações. A revista,
que o sr. diz ter sido, alguma vez, "promissora", não
mudou a sua atuação nem seu conjunto de convicções.
Tampouco mudou sua prática jornalística.

Talvez tendamos a chamar de "promissor", emprestando
ao termo um caráter virtuoso, aquilo com o que concordamos.
E talvez passemos a ver "desvio", "erro" e até
"má-consciência" naquilo que, de saída,
repudiamos. Se a imprensa não está livre dessa fragilidade,
tampouco estão os professores, os homens de Estado, os analistas
da mídia. Daí que o razoável, o seguro, para
todos nós, dentro e fora do governo, dentro e fora da mídia,
seja o embate justo de idéias. Sua leitura da reportagem
sugere algo como má-fé ou incompetência, ou
ambas as coisas. Não é um bom caminho. Até
porque, sobre a sua atuação, jamais diríamos
algo semelhante. Ao contrário até. O sr. é
muito competente e tem método. E ousamos discordar desse
método.

O sr. evoca, ademais, acusações passadas, em que
teria sido chamado de agente da Mossad ou coisa parecida. Não
sei quem disse tal bobagem, mas quem o fez certamente se deixa seduzir
por teorias conspiratórias, abusando do oportunismo sempre
à mão ou de usar o anti-sionismo como biombo do anti-semitismo
ou a acusação de prática de anti-semitismo
quando o crítico está pouco interessado em debater
questões culturais, raciais ou congêneres. Oportunismos
opostos e combinados, convenhamos.

Não! Primeira Leitura está,
creio eu, muito longe desse lamaçal regressivo, reacionário,
que pouco concorre para tornar mais transparente o debate republicano.
Acusar uma prática de "stalinista" nada tem de
preconceituoso em sua origem. Pode, sim, haver erro. Isso nós
podemos, devemos e vamos debater. O sr., ao que entendo, repudia
a prática stalinista que a revista lhe imputou. Mas tal qualificação
está muito longe de se confundir com preconceito de origem.
E qualquer associação nesse sentido, por mais remota
ou lateral que seja, deve, sim, ser repudiada com energia.

Esta revista e seu site não lidam com conspirações.
A propósito: todas as vezes em que vemos, lemos e ouvimos
autoridades da República a reconhecer aspectos virtuosos
na ação dos golpistas do passado, os conspiradores
vitoriosos, nossa reação tem sido de repúdio
e de espanto. Todos nós cremos, caro professor, que o sr.
obedeça apenas aos imperativos de sua consciência e
aos do governo ao qual o sr. serve. E o faz no exercício
pleno de suas prerrogativas, cabendo a nós relatar e concordar
ou discordar.

Por ocasião da publicação de sua carta, na
edição de outubro da revista, teremos a chance de
voltar a esse tema, quando, então, pretendo entrar no mérito
de sua contestação. Por ora, expresso o claro reconhecimento
de que, com efeito, o que há de divergência entre Primeira
Leitura
e a sua prática política se assenta
num contencioso de natureza absolutamente racional, objetiva, técnica
até. Eu ousaria mesmo dizer que parte dos instrumentos e
dos conceitos com os quais trabalha esta Primeira Leitura
foram solidamente desenvolvidos no curso de Jornalismo da Universidade
de São Paulo, onde, há muito, brilham as lentes do
professor Bernardo Kucinski.

Finalmente, quase como um "PS", ocorre-me agora lembrar
a última vez em que estivemos juntos, num debate para o qual
fomos ambos convidados — em companhia ainda do professor André
Singer, hoje porta-voz da Presidência, e do sr. Plínio
de Arruda Sampaio. O encontro se deu em Santo André, ainda
durante a campanha eleitoral. O sr. fez uma severa análise
da grande mídia. Via nela preconceito antipetista. Apontei,
para uma platéia que era constituída apenas de petistas,
o contrário. Afirmei que a mídia nunca fora tão
simpática ao partido como então. Referindo-se a mim
ao retomar a palavra, o sr. não hesitou: "Queria contestar
aqui o que disse o companheiro da direita, o Reinaldo Azevedo…"
E seguiu com a sua fala.

Ora, acusar-me "de direita" porque divirjo da análise
triunfante numa mesa composta de petistas e diante de uma platéia
de petistas foi uma facilidade, certamente, que não contribuiu
para dourar a sua tradição de bom argumentador, de
bom e educado polemista. A platéia já era sua. Mas
nem por isso considerei que o sr. estava querendo me expulsar do
mundo dos vivos.

Conheço, desde sempre, a sua militância política
e não ignorava a mesa em que decidira me meter. Não
me ocorreu "denunciar" a sua prática a ninguém;
tampouco sugerir que estava a ser vítima de um complô
contra mim de uma maioria, ainda que circunstancial. Em verdade,
cá (ou lá…) com os meus botões, até
lhe fui grato: estou entre os que consideram que tal vocabulário
deva ser recuperado num país que parece sentir especial prazer
em matar o debate ideológico, que parece considerar que tal
confronto se confunde com falta de delicadeza ou coisa de mau gosto.
Ainda que o sr. possa recusar a companhia, diria que somos homens
de mesma natureza, para os quais esse debate faz, sim, todo o sentido.
Lembro-me, e certamente os demais presentes também se lembram,
que até brinquei: "Quando vocês chegarem ao poder,
espero que sejam tolerantes comigo".

Em suma, caro professor, creio que o país precisa recuperar
parte da tolerância perdida. Inclusive tolerância para
a crítica, na convicção, que me parece a virtuosa,
de que atacar uma idéia, uma prática, uma opção,
não corresponde a atacar uma pessoa. Um abraço especial
ao professor Kucinki e outro a todos que recebem uma cópia
deste e-mail, que, insisto, escrevo em atenção ao
missivista. Não é a resposta, que pretendo dar por
ocasião da publicação do e-mail na revista.

Reinaldo Azevedo é Diretor de Redação do site
e da revista Primeira Leitura