CRÍTICA DIÁRIA
"Cartas Ácidas", copyright Agência Carta Maior (www.agenciacartamaior.com.br)
"16/11/2001 –A operação anti-Olívio A Folha de hoje mostra com clareza os dois caminhos distintos a serem percorridos pelas conclusões da CPI gaúcha. A proposta de impeachment de Olívio deverá ser julgada por critérios políticos no âmbito da Assembléia Legislativa, na qual a oposição tem maioria folgada tanto na Comissão de Comissão e Justiça como no plenário. Essa ação contra Olívio pode resultar no seu impeachment. Os outros indiciamentos serão propostos ao Ministério Público e serão julgados por critérios de justiça e da veracidade dos fatos. É essa a ação que interessa ao PT. Além de contribuir para o reestabelecimento da verdade e da despolitização das acusações, poderá revelar vínculos criminosos dos próprios deputados da oposição e delegados que acusaram o governo.
A estratégia de Olívio
O JB de hoje destaca que a estratégia de Olívio é dar o troco à oposição, forçando o envio mais rápido possível da ação ao Ministério Público e abrindo ações conta o relator da CPI. O Estadão diz que Olívio quer poupar o PT de um desgaste prolongado. Se conseguir que o MP entre logo no assunto, Olívio estará criando um foco alternativo ao da Assembléia e independente dela. É uma das condições para derrotar a oposição. Mas não basta. O PT deveria a esta altura agilizar todas as ações para fazer o contra-ataque, desde a intensificação das ações da polícia contra bicheiros, até a entrada de ações no Supremo. Essa batalha vai ser ganha ou perdida, no terreno concreto da ação, e não a partir de uma postura de superioridade. Perder essa batalha não vai mostrar que o PT é vítima, vai mostrar que o PT é incompetente.
E a batalha da comunicação
A outra batalha importante é a da comunicação. Tanto a Folha como o Estadão destacam hoje a coletiva de Olívio, mas o tratamento visa claramente desgastar o PT. Uma das reportagens do Estadão, lembra o jornalismo sórdido dos tempos da ditadura, ao tentar relacionar os apelidos que Diógenes usava em sua caderneta para os membros do governo petista, com o uso de codinomes dos tempos da guerrilha. Está claro que o episódio vai alimentar manchetes maldosas contra o PT durante meses. Também vai desarmar o discurso ético do PT. É, desde já, a principal munição anti-Lula da campanha presidencial. Um esforço especial vai ser necessário para definir diferentes táticas na esfera da comunicação.
Oposição confessa que o relatório é político Ao exagerar na dose, a CPI da Assembléia gaúcha deixou um importante flanco aberto à contra-ofensiva de Olívio. Um deputado do PPS e o presidente da Assembléia, já recuaram, segundo o Estadão, frente ao exagero do relator da CPI. Ambos admitem o caráter político do processo. O deputado Mário Berndt (PPS) disse que ?a oposição já ganhou o que tinha que ganhar.? E o presidente, Zambiasi (PPB), por sua vez, declarou que concorda com algumas queixas de Olívio sobre a politização da CPI. Se chegar ao impeachment de Olívio, a oposição estará criando um mártir e a opinião pública poderá se voltar contra eles. Especialmente se o governo Olívio Dutra impulsionar fortemente seu perfil administrativo em todas as frentes e trabalhar a estratégia de comunicação.
A operação anti-Itamar
Os jornais de ontem trouxeram em suas páginas a operação tucana para barrar Itamar. O JB diz que os tucanos montaram um QG especial. A Folha revelou que a operação prevê etapas e alternativas. Na etapa em curso, a direção do PMDB fechada com os tucanos vai mudar as regras das prévias, alijando as bases para convencer Itamar a desistir. Se ele não desistir, vão anular -pura e simplesmente- a prévia. Doze diretórios do PMDB já teriam concordado. É jogo pesado. Se tudo isso fracassar, lançarão uma terceira candidatura, a de Michel Temer.
Serra: um candidato das multinacionais de medicamentos?
Pode parecer absurdo. Mas na página dois da Folha de hoje o presidente da Abifarma revela candidamente a proposta que as multinacionais de medicamentos fizeram para apoiar a candidatura Serra. Trata-se de um programa chamado Pamsus, no qual o governo compraria os remédios da Relação Nacional de Medicamentos Básicos (Rename) das multinacionais para os 50 milhões de brasileiros que não podem pagar por essa necessidade básica. O custo do negócio: R$ 4,8 bilhões por ano. A proposta vem depois de o governo FHC ter acabado com a Ceme e, portanto, na prática, também com a Rename, e com o controle de preços de medicamentos. A ?cesta de remédios? poderá ser a grande bandeira eleitoral de Serra.
E o escândalo dos medicamentos fraudados
A mesma Folha publica importante reportagem no seu caderno Cotidiano, mostrando que quase metade dos medicamentos vendidos pelos grandes laboratórios no Brasil tem composição diferente da aprovada pela vigilância sanitária. Apesar de atribuir a descoberta ao próprio governo, a reportagem aponta para corrupção na vigilância sanitária, dirigida por Serra, como um dos fatores da fraude.
Não deixe de ler:
?Para não haver crise?, a análise de fundo de Washington Novaes sobre a crise energética, na página dois do Estadão de hoje, em que ele mostra o imediatismo das abordagens convencionais, em geral predatórias. Diz também que faltou informação e discussão, fato já apontado por estas Cartas Ácidas. ? Discursos, discursos, discursos?, a crítica de Paulo Nogueira Batista aos belos discursos em francês de FHC, que nada tem a ver com a sua prática. Na página 3 do caderno de economia da Folha de ontem.
O Brasil de FHC tem 50 milhões de miseráveis
Essa foi a manchete que nenhum jornal deu. Mas na TV, sucediam-se ontem à noite as cenas de brasileiros na miséria, não tendo nem mesmo o que comer. Gente catando restos de comida em lixões e fins de feira, crianças chorando de fome. A pauta foi deflagrada pela divulgação do ?Mapa do Fim da Fome?, elaborado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). Nesse mapa (www.fgv.br/cps), chega a 50 milhões, ou quase um terço da população, o numero de brasileiros classificados como indigentes, com renda mensal inferior a R$ 80 por mês. No Maranhão e no Piauí, mais de 67% da população é indigente. E no Brasil como um todo, 46% das crianças com até 16 anos, praticamente metade de todas as crianças, são indigentes. O governo, irritado, diverge dos critérios da FGV e diz que esses 50 milhões não são indigentes, são ?pobres?. Como se mudando uma palavrinha, a situação deles fosse diferente.
O duplo choque do visual da miséria
Quem disse que a TV não gosta de miséria? Gosta sim, porque um pouco de miséria quebra a monotonia da repetitiva estética da beleza dos seus comerciais, nos quais todas as mulheres são elegantes e bem nutridas, todos os bebês gorduchinhos. Miséria na TV pode dar Ibope pelo efeito do contraste e da valorização do telejornalismo.Mas o choque mais profundo do noticiário da TV de ontem à noite veio da percepção da extensão da miséria no Brasil, um país de natureza exuberante, rico em minérios e com vastidões de terras férteis, onde não tinha que ser assim. A TV dá os números gerais e ainda mostra a cara dos miseráveis. Quando o porta-voz da FGV aparece dizendo que bastariam R$ 20 bilhões por ano para erradicar a miséria, o choque se completou. São apenas cerca de US$ 8 bilhões. Menos que um Proer.
Os jornais não gostaram e esconderam na página par
Os grandes jornais de referência nacional preferiram esconder a vergonha. O Estadão deu a notícia de modo enxuto e organizado, mas na sua página A8. Na primeira página, nem mesmo uma chamadinha. Valor também jogou a notícia para uma página par, a A10, e em posição secundária. Nem uma chamadinha na primeira página. Gazeta Mercantil esmerou-se em camuflar a vergonha, dando um título obtuso, sobre um aspecto secundário da notícia: ?Para FGV, gasto social é alto e pouco eficaz?. Como se não bastasse, ainda encabeçou a página com uma notícia ?positiva?, extraída do relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), por coincidência também liberado ontem. ?Saúde e Educação melhoraram no país, segundo o PNUD?. Tudo numa página par, é claro…
A miséria da Folha de São Paulo
Enquanto a maioria dos jornais de referência nacional escondeu a miséria, a Folha fez o oposto, mas se atrapalhou toda. O problema da Folha foi ter preparado de antemão um caderno especial com base não nos dados da FGV, dos quais ela só ficou sabendo ontem, e sim nos dados do PNUD, que os jornais recebem antecipadamente, com ?data de embargo?. Por esse procedimento, os jornais têm mais tempo para preparar as matéria, mas só podem publicá-la a partir de determinada data.
O resultado da Folha foi esta manchete obscura ocupando toda a primeira página: ?Brasil é 69o em qualidade de vida?. E daí? Isso é bom? Isso é ruim? Uma manchete que em si não significa nada. Somente lá em baixo, em corpo pequeno, a notícia da FGV de que um em cada três brasileiros tem renda inferior a R$ 80 por mês e é, conforme os critérios da FGV, um indigente. No seu caderno de 4 páginas, quase todo dedicado aos dados da ONU, a confusão da Folha é ainda maior. A manchete interna, em vez de asseverar, como é da natureza da linguagem jornalística, faz uma pergunta: ?O Brasil melhorou??. E o pior é que a questão não é respondida conclusivamente. Texto da coluna da direita informa que SIM, e dá alguns dos dados do PNUD. E matéria na coluna da esquerda diz que NÃO, e dá outros dados do mesmo PNUD. O fato é que mesmo no PNUD o Brasil não melhorou. E essa deveria ser a manchete, porque na tabela do PNUD, o Brasil continua ocupando o mesmo 69o lugar que ocupava antes. O JB, juntando os dados da FGV e do PNUD , trouxe uma manchete que mais parece título de editorial: ?Miséria e atraso no país do futuro?.
Jornalistas não passam fome
Quem passou fome dela jamais se esquece. Não é o caso dos jornalistas, que se esqueceram do que eles mesmos noticiaram sobre a fome em tempos recentes. Nenhum jornal se lembrou da campanha contra a fome, baseada num Projeto do Instituto Cidadania, e depois lançada em todo o Brasil pelo Betinho. E somente o Estadão se referiu ao novo projeto ?Fome Zero?, que está sendo preparado pelo mesmo Instituto Cidadania, através de um grupo de trabalho coordenado pelo economista José Graziano da Silva, com base nos cupons de alimentação da época do New Deal norte-americano. Já no domingo, o Estadão havia divulgado com grande destaque as linhas gerais do projeto ?Fome Zero?. Hoje, o jornal abre grande espaço às reações de Eduardo Suplicy, que também faz parte do grupo de economistas do Instituto Cidadania, mas defende soluções para a fome mais vinculadas à garantia de uma renda mínima.
A desigualdade, madrasta da miséria
É estranho o recuo hoje dos jornais, porque já na segunda-feira o tema dominante havia sido a desigualdade, especialmente entre brancos e negros. No Rio havia se reunido a primeira conferência nacional contra o racismo, e isso serviu de gancho para muitas matérias sobre a desigualdade racial. O JB deu amplo espaço ao tema e trouxe uma tabela completa da desigualdade racial. Na Folha, Rubens Ricupero comentou, também na segunda-feira, que a face mais visível da desigualdade no Brasil é o contraste de cor entre qualquer auditório universitário e as gerais dos estádios de futebol. Talvez a dose de hoje tenha sido demais.
Mas os dados do IBGE já mostraram na segunda-feira que, enquanto um em cada cinco brancos é pobre, entre os negros essa proporção aumenta muito: um em dois negros ou mulatos são pobres. Pobre para o IBGE é quem tem renda mensal superior a R$ 60 e inferior a R$ 117. A conferência do Rio propôs políticas afirmativas para reduzir a desigualdade. Política afirmativa é quando se oferece uma vantagem ao que está por baixo, para compensar sua situação de inferioridade. Obrigar toda emissora de TV a ter pelo menos um terço de apresentadoras negras ou mulatas, por exemplo, é uma política afirmativa.
Um Proer para matar a fome
O que se pode deduzir é que essa miséria não é um sub-produto de um sistema frio ou cruel. É uma miséria produzida, parte integral do sistema, contrapartida da riqueza e principalmente das mordomias dos ricos e da alta classe média. É a continuação da escravatura, agora disfarçada. A FGV propôs um compromisso de governo para atingir metas sociais, assim como tem um compromisso para atingir metas monetárias. Não por coincidência, é o mesmo tipo de compromisso proposto no ?Programa Econômico? divulgado pelo Instituto Cidadania, que os jornais tanto comentam, sem no entanto mencionar esse item.
Não deixe de ler
Na página A6 da Folha de ontem, a entrevista do advogado Helio Silva Junior sobre a desigualdade racial no Brasil. Silva foi um dos 14 representantes da sociedade civil da comissão mista criada pelo governo para preparar nossa posição na Conferência das Nações Unidas contra o Racismo, a Discriminação, a Xenofobia e a Intolerância, a ser realizada na África do Sul, em setembro. Decepcionado com a falta de ação do governo FHC, ele abandonou a comissão. Helio Silva faz uma piada macabra na entrevista: diz que a única política de inclusão dos negros, praticada no Brasil, é a inclusão penal. ?O sistema penal tem uma sinistra predileção por negros?."