CRÍTICA DIÁRIA
"Cartas Ácidas", copyright Agência Carta Maior (www.agenciacartamaior.com.br)
17/5/02
A opção Serra
Desde a última pesquisa Datafolha vem se reforçando a percepção de que o campo conservador terá mesmo de jogar todas as suas fichas em Serra. O tratamento mais discreto dos jornalões ao escândalo da propina reforça essa percepção. O jogo ainda está na preliminar, mas parece cada vez mais difícil a substituição de Serra.
Vamos conferir as próximas revistas semanais. É possível que de repente a competição jornalística virtuosa das semanais, em torno do que Época chegou a cunhar de ?privataria?, dê lugar a ataques a outros candidatos e ao esquecimento quase completo dessa pauta.
Dilemas da estratégia tucana
Colar ainda mais a imagem de Serra em FHC será uma das novas táticas dos tucanos, segundo o painel da Folha desta sexta-feira (17). Isso porque FHC tem um índice de aprovação de 34%, nada alto, mas substancial e constante e o dobro das intenções de voto em Serra. É claramente uma estratégia defensiva, porque se FHC estivesse com essa bola toda, o problema nem existiria. O próprio Serra não sabe se deve colar sua imagem a de FHC, segundo o Estadão.
O Painel mostra que os tucanos lutam em duas frentes, porque precisam cuidar para que Ciro Gomes não tome o lugar de Serra.Vão tentar de novo impedir que Ciro use os horários do PDT e PTB antes do início formal da campanha. Ou seja, querem derrotar Ciro no tapetão.
É por causa do ?risco Ciro Gomes? que o sociólogo Antonio Lavareda, especialista em comunicação do Palácio, se colocou contra a anunciada estratégia tucana de partir para o ataque frontal ao PT. Ele diz, no Estadão de hoje, que isso poderá levar votos de Lula para Ciro ou Garotinho, liquidando a candidatura Serra ainda no primeiro turno.
E a demonização do PT
Mas os tucanos insistem no ataque frontal a Lula. O Globo de hoje revela que durante a atual viagem à Espanha, FHC, Tebet e Aécio decidiram pelo ataque frontal. Aécio já começou ontem mesmo. O discurso da demonização do PT está sendo elaborado em vários planos. Malan e Armínio Fraga repetem com insistência a tese da necessidade de todos os candidatos assumirem um compromisso com a estabilidade e a Lei de Responsabilidade Fiscal. O ataque deles ao PT é quase subliminar, mas já começam a usar palavrinhas perigosas, como ?governabilidade?. O Estadão de hoje traz um notável resumo das idéias e do discurso de Malan, justamente com o título: ?Para Malan o fundamental é manter a governabilidade.?
Serra, mais nervoso com a falta de impulso de sua campanha, está apelando para o medo da classe média de uma crise à Argentina. ?País pode virar uma Argentina? é uma manchetinha interna na Folha desta sexta-feira , a partir de uma mini-entrevista com o candidato tucano.
Malan e o medo do crescimento econômico
Carlos Heitor Cony chamou a atenção em uma de suas últimas colunas na Folha para a mentalidade de contabilista de Malan. Essa visão que Malan tem da economia como um livro de contabilidade aparece com extraordinária clareza em uma matéria da página A5 do Estadão de sexta. Especialmente seu medo de que o Brasil entre numa período de crescimento econômico.
Deve ser a primeira vez na história das doutrinas econômicas em que a idéia do crescimento econômico aparece como coisa ruim, como fonte de dissabores e problemas. Depois de cobrar mais uma vez os tais compromissos com a estabilidade, Malan diz : ?Os candidatos devem resistir à tentação de se comprometer com um crescimento econômico imediato e em porcentuais elevados, porque fatalmente estarão criando uma bolha de crescimento.?
O novo ?conceito fetiche? de Malan
Notem bem a expressão ?bolha de crescimento?. Malan juntou duas palavras com cargas valorativas opostas. ?Bolha?, que tem sentido de algo pernicioso e fugaz, associado em economia à bolha especulativa. Crescimento tem sentido virtuoso, associado em economia a um ciclo positivo e orgânico de expansão das atividades produtivas. Ao juntar as duas palavras de valores opostos, Malan criou aquilo que Umberto Eco chamou de ?conceito fetiche?, que, por juntar categorias contrárias, desperta sentimentos antagônicos nas pessoas. Trabalha como sentimento, não com a razão. Por isso esse tipo de associação foi chamada por Umberto Eco de ?conceito fetiche?. É também um falso conceito, porque em vez de definir e explicar ele apenas confunde.
Não deixe de ler
Dionísio Dias Carneiro compara as políticas do Copom e do FED, em artigo hoje na página B2 do Estadão. Ns entrelinhas do artigo, que é muito detalhista, pode se perceber uma crítica a Malan e Armínio Fraga por não conseguirem ser respeitados pelos políticos. Armínio Fraga foi mais esperto, mas ultimamente tem repetido o discurso de Malan e, com isso, já começou a perder o respeito da oposição. Ter o respeito dos políticos, e saber com eles dialogar, é uma condição essencial, segundo Dionísio, para o sucesso de um dirigente de Banco Central.
15/5/02
IBGE ataca de novo
Na semana passada, todos os jornais noticiaram a queda de 0,8% na produção industrial do Brasil em março, medida pelo IBGE. Os jornais acataram passivamente o press-release do IBGE. Não se deram ao trabalho de estudar a base de dados primários porque se trata de uma agência oficial de coleta estatística do Estado brasileiro, e seus técnicos falam aquilo que a sociologia chama de o Discurso Competente, o discurso legitimado pela precisão e pelo o saber cientifico.
Mas, no final da semana, Celso Pinto, do Valor, foi às entrelinhas das estatísticas do IBGE na sua base de dados e descobriu que se for descontada a produção de petróleo, a queda na produção industrial em março foi mais do que o dobro da anunciada pelo IBGE, chegando a 1,9%. Essa sim uma queda assustadora.
A mentira estatística
Esse é mais um exemplo da mentira estatística, em que dados verdadeiros são computados de modo a falsear nossa percepção dos fatos, em vez de torná-los mais claros, como deve ser a função da estatística. A produção de petróleo é determinada por fatores intrínsecos, tais como a entrada em operação de um novo poço ou ao contrário, a parada para manutenção. Não reflete em nada o nível geral de demanda da economia e, portanto, não serve para medir o desempenho econômico.
A produção de petróleo é importante por outros motivos. É parte do PIB e, portanto, da renda. Em especial, vai indicar quanto de petróleo vamos ter que importar no futuro imediato o que é importante para uma projeção do balanço de pagamentos. Também indica em quanto vai aumentar ou diminuir no futuro próximo a receita dos municípios que recebem royalties do petróleo ou a renda das atividades ligas ao se transporte.
A inclusão do petróleo na aferição do desempenho passado ou corrente da indústria só serve para atrapalhar, para ofuscar. Se for uma produção pequena em relação ao produto industrial total, deve ser ignorada do ponto de vista jornalístico no noticiário nas medidas mensais e trimestrais de desempenho industrial. Se for grande, deve ser informada à parte.
Quando o otimismo é uma forma de enganar
A Folha chegou a trabalhar os dados do IBGE com uma postura crítica e analítica, mostrando que 12 dos 20 ramos da industria sofreram queda em março. Alguns caíram dramaticamente, como a indústria automobilística (-17,4%) e a de eletrodomésticos (-10,9%). Mas até mesmo o repórter da Folha no Rio, Chico Santos, acabou engabelado pelo otimismo forçado dos técnicos do IBGE. ?O que vai acontecer não sabemos…a análise aprofundada dos dados mostra que a situação é mais de estabilidade do que de reversão do crescimento positivo para negativo?, disse Mariana Rebouças, gerente do Departamento da Industria do IBGE. Mariana alegou que um outro indicador (o trimestral móvel) que afere tendências de prazo mais longo sugere crescimento de 0,27% em março. Mas ela omitiu a influência do petróleo tanto num indicador como no outro. Como o repórter não estava municiado dessa informação, apesar de seu espírito crítico acabou sendo enrolado pelo discurso competente da Mariana.
Competência para enganação
Alguns detalhes desse discurso competente de Mariana são interessantes. Primeiro diz que ?o que vai acontecer não sabemos?. Depois acha que sabe, mas expressa o que pensa saber de modo ambíguo: ?situação é mais de estabilidade do que de reversão?. Finalmente, usa já o famoso eufemismo, ?crescimento negativo?, em vez de queda na produção.
O processo do auto-engano
A queda de 1,9% na produção da indústria – exceto petróleo – é um dado grave, que deveria ser transmitido a toda a sociedade, público e empresários de forma clara e incisiva. Deveria ter sido ressaltado pelo IBGE e não escamoteado. Se o IBGE por motivos políticos ou ideológicos não ressaltou, cabia à imprensa destacar essa queda, contextualiza- lá e também fazer a crítica da política de comunicações do IBGE
Os processo de auto- engano começa com essa recusa em aceitar a carga dramática de dados negativos. Os dados positivos são sempre alardeados de modo sensacional. A partir da interpretação otimista do IBGE, outros economistas adotaram o mesmo tom, como reportou a própria Folha. Hamilton Kai, do IPEA disse ao repórter da Folha que ?a queda de 0,8% estava dentro da margem de estabilidade?. Ele também não sabia que expurgado o petróleo, a queda era mais do que o dobro.
A essência da crise
Celso Pinto mergulhou nos dados básicos do IBGE e descobriu que o panorama é bem mais pessimista, e que a principal causa da estagnação é a queda geral no poder de compra dos brasileiros. O maior componente da demanda no PIB (60%) é o consumo das famílias. Mas o poder de compra da massa salarial, medido pelo Banco Garantia caiu 7,6% de abril a dezembro do ano passado, recuperando uma fração apenas disso no começo deste ano. Celso Pinto mostra que também a demanda do governo não tem como subir e das indústrias está mal porque dois setores, a telefonia e a energia, que vinham puxando o investimento estão em crise.
?Tudo somado a perspectiva é de um crescimento medíocre?, conclui Celso Pinto. Foi essa quebra no prognóstico de crescimento do PIB que desencadeou a onda de rebaixamento dos títulos brasileiros. O governo ainda fala em crescimento de 2,5% do PIB, mas bancos e corretores acham difícil crescer mais do que 1,5%. Menos do que o crescimento populacional.
A culpa de Armínio Fraga
Os dados mostram que o Banco Central errou feio ao não diminuir as taxa de juros na última reunião do Copom. Foi esse erro mais do que qualquer fator político que precipitou a crise de confiança no comércio e na indústria num momento em que era preciso ao contrário, uma forte injeção de confiança, para compensar a queda na renda. Em seguida veio a crise de confiança dos investidores estrangeiros.
Valor fez uma entrevista de página inteira com Armínio Fraga no final da semana (pg C3), em que ele admite que pode reduzir os juros para aliviar a crise. Põe a culpa das turbulências do mercado na oposição, que acusa de ?criar um clima negativo?, por supostas ambigüidades na apresentação de suas propostas. Mas em nenhum momento admite o seu erro e o seu papel na criação do clima negativo. E nem foi perguntado.
13/5/02
Crise atinge novo e perigoso patamar
As últimas revelações das propinas nas privatizações não só da Vale, como também das teles tornam imperativa a cobrança de uma investigação pela sociedade, partidos políticos e promotoria pública. Isso significa que a crise tende a se agravar, antes de eventualmente arrefecer.
É cada vez mais plausível a hipótese de que se está armando uma crise institucional generalizada como forma de zerar o jogo eleitoral que Lula está ganhando de goleada. Se a crise está sendo fomentada, seus articuladores são grupos econômicos muito poderosos que não hesitam em sacrificar Serra e até arranhar o prestígio de FHC. O objetivo seria tirar Serra e, com isso, recompor o bloco de poder oferecendo um candidato novo ao eleitorado. Em resumo: a análise é a mesma da semana passada quando Veja surpreendeu a opinião pública.
As revistas na competição virtuosa
A diferença está em que outras revistas – inclusive Época – de grandes grupos de comunicação, entraram na operação, reforçando a tese de que a fritura de Serra não desagrada os poderosos. As edições deste fim de semana das revistas semanais mostram que elas investiram na investigação. Tanto Veja como Época buscaram outros protagonistas da história e jogam seu prestígio e sua credibilidade na informação de que parte da propina foi paga, ao contrário do que os tucanos inicialmente disseram.
Época abriu nova frente, com a história das propinas na privatização das teles. Istoé toca no tabu do financiamento das campanhas dos tucanos, trazendo acusações de que Ricardo Sérgio lavou dinheiro para as campanhas dos tucanos. Veja mergulha do dinheiro que Jereissati diz que deu e Serra diz que não recebeu.
Jornais a reboque
Como já havia ocorrido no caso Collor, os jornais estão a reboque da cobertura na crise da propina. Uma exceção relativa é a Folha. O relato de Kennedy Alencar na Folha de domingo sobre o clima soturno no Palácio, em torno de FHC, é muito expressiva.
Dilema do PT
O PT não tem interesse nessa crise institucional, mas não pode se furtar à cobrança enérgica dos fatos. Outros complicadores são as ações espetaculares dos movimentos sociais, como os sem teto em São Paulo, e o dos professores no Rio. O de São Paulo é surpreendente pela sua amplitude e organização. Ambos podem potencialmente alimentar um clima de crise e especificamente desgastar as administrações do PT. Seria essa a origem do seu recrudescimento?
Corrupção
O JB do último domingo revela que os franqueadores dos Correios fizeram uma caixinha com tesoureiro e tudo para ajudar políticos que votarem a favor do projeto de Lei 5682/2001, que renova suas concessões por cinco anos. Nenhuma novidade, em termos culturais, mas um furo jornalístico.
Não deixe de ler
As entrevistas com o Secretário de Educação do Rio de Janeiro, Adeílson Telles, sobre a greve dos professores da qual ele era um dos líderes. Na página 10 do JB de domingo. Retrato do Brasil
Acidentes de Trabalho matam nove por dia no Brasil. Entre 1997 e 2000, os acidentes de trabalho feriram ou mutilaram mais de 391 mil trabalhadores e mataram 3.563. Os dados estão no Anuário Estatístico de Acidentes de Trabalho, do Ministério do Trabalho e só a Folha deu com destaque. Os acidentes custam também R$ 2 bilhões por ano ao INSS em pagamentos de benefícios.
Só 15 % do esgoto do Rio de Janeiro é tratado. Das oito estações de tratamento construídas, só três operam normalmente. Deu na primeira página do O Globo de domingo.