VIDA DE JORNALISTA
André Deak (*)
Ultimamente tenho me perguntado mais e mais a respeito do jornalismo, da ética e das questões técnicas que envolvem a produção de uma simples e qualquer reportagem ? e olhe que eu nem trabalho na Folha de S.Paulo.
Resolvi escrever algumas dessas besteirinhas que me afligem, tanto para recordar daqui a algum tempo que tipo de coisas ocupavam minha mente vaga ("a oficina do Diabo", de acordo com minha avó) e também para, quem sabe, compartilhar algumas dúvidas sobre a nossa profissão ? verdadeiramente a mais antiga do mundo.
"Qualquer jornalista que não seja demasiado obtuso ou cheio de si para perceber o que está acontecendo sabe que o que ele faz é moralmente indefensável", diz a jornalista Janet Malcom na abertura do seu livro O jornalista e o assassino. No caso, ela trata exclusivamente do seguinte: tecnicamente e teoricamente, uma reportagem precisa ter "o outro lado", ou seja, tem que escutar o assassino e escutar a polícia, a mãe da vítima ("como a senhora se sente?") e o pipoqueiro que viu tudo. Só que o assassino, quando está conversando com o jornalista, não sabe que ele vai ser o imbecil mentiroso da história, aliás, pensa que o jornalista é um cara legal que está querendo ajudar. E conta tudo. Depois, como diz a própria Janet, o entrevistado sente-se como "uma mulher que acorda e vê que seus pertences sumiram junto com o amante que conhecera na noite anterior". Uns podem dizer "bem feito, o cara é um assassino, tem mais é que se dar mal". Mas, e quando o entrevistado é um professor defendendo certa linha de ensino e a matéria quer fazer crer que aquela linha é uma idiotice?
Nunca escutei falar de ninguém que abra o jogo para o entrevistado e chegue falando "olha, estou fazendo uma reportagem sobre como o seu método não funciona, o senhor pode me explicar umas coisas?" Mas veja o caso da Janet: ela faz um livro sobre um jornalista que se aproveitou da confiança de alguém para fazer um livro. E se aproveita da confiança do jornalista e publica um livro. O livro está esgotado, mas vale procurá-lo nos sebos.
A pauta
Para quem não é do ramo, pauta "é um roteiro mínimo fornecido ao repórter" para o cara fazer a reportagem. São dicas de pessoas que o cara deve entrevistar, a abordagem que o editor quer, lugares que seria bom ele visitar e coisas assim.
Como fazer quando o editor tem na cabeça uma pauta que não existe? Expliquemos: o repórter descobre, durante sua apuração, que não era bem aquilo, que a idéia inicial da reportagem estava meio equivocada, que não dá para sair por aí dizendo o que o editor queria. Mas o editor é irredutível: cumpra-se a pauta.
E se, num mundo perfeito, a pauta fosse discutida antes e, logo após uma apuração mínima, discutida novamente, profundamente, em grupo (ou pelo menos com o editor)? Assim o editor não corre o risco de ter depois a matéria que não queria, o repórter não fica com cara de tacho porque se esforçou e deu o enfoque errado ? e o leitor sai ganhando, porque foram várias as cabeças que pensaram sobre aquele assunto antes de ele ser escrito. É muita loucura isso?
A construção do texto
Qual é a separação entre um texto de jornalismo literário e aquilo que alguns chamam de "literatice", ou seja, um cara que não conseguiu (quem define?) fazer literatura no seu texto jornalístico? Por que um texto jornalístico tem que seguir as regras dos manuais de redação e estilo (e estilo!)? O texto não continua sendo jornalístico se é fiel à realidade que o repórter encontrou, se não tem invenções, mentiras e fantasias, se foi baseado em entrevistas, conversas e pesquisas? A defesa da literatura e do livre-pensar-criar. Acho terríveis as expressões "brega" e "cafona".
1) Diz-se da pessoa que, com aparência ou pretensão de elegância, foge ao que convencionalmente é de bom gosto; fajuto, farjuto, jeca, miquelino.
2) Diz-se de tudo aquilo que é reputado como de mau gosto.
3) Caipira.
Mas o que diabos é "convencionalmente de bom gosto"? O cantor mais vendido do mundo (mais que os Beatles!) é o Roberto Carlos. É brega? As descrições do García Márquez e do Almodóvar sobre as mulheres são bonitas ou cafonas? E será que eles já saíram escrevendo assim ou foram chamados de bregas e continuaram mesmo assim, até o refino e o estilo que têm? Bah.
Enfim.
Andei pensando outras besteirinhas também: em alguns casos, importa realmente saber o nome da Maria da Conceição Tavares ou importa mais o que ela disse? E se no meu texto eu colocar o que ela disse entre aspas e não identificar quem falou? Seria errado? Por quê?
Essas foram coisinhas que me atormentaram essa semana. Daqui uns 15 dias terei novos tormentos, talvez os apresente a vocês também.
(*) Co-fundador do Em Crise <www.emcrise.com.br>, trabalha como free-lancer para muitos lugares, foi editor-assistente da revista Diálogos&Debates e tem sérias crises com a profissão a cada 15 minutos, mais ou menos