Friday, 27 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Bia Abramo

CARNAVAL COMEDIDO

“Corpos ardentes”, copyright Folha de S. Paulo, 9/03/03

“O CARNAVAL do Rio de Janeiro deste ano foi excepcionalmente comedido na exibição de nus. Uma madrinha de bateria mais ousada aqui, outra acolá, alguns seios descobertos em destaques de carros alegóricos, e foi tudo. As ?famosas? -é curioso notar como o adjetivo se substantivou- foram para a Marquês de Sapucaí muito mais cobertas do que em anos anteriores. Passistas anônimas, da comunidade, como se diz, mostraram-se um pouco mais, mas o tom geral deste ano foi de menos exposição sexual.

Embora não se possa deste caso isolado afirmar uma tendência, talvez dê para arriscar aqui a hipótese de que os carnavalescos já tenham percebido, antes que todo mundo, que há tanto corpo na TV fora do reinado de Momo que a nudez do Carnaval se tornou supérflua.

E mais: com a banalização das cirurgias plásticas, a proliferação das intervenções cosméticas e da malhação pesada, qualquer um, em tese, pode ter um corpo moldado à perfeição televisiva.

Por exemplo, no ?Big Brother Brasil 3? quase todas as participantes têm implantes de silicone nos seios e/ou nas nádegas -coisa da qual as câmeras onipresentes não deixam de se aproveitar. É evidente que não se pode ter a ingenuidade de comprar a versão de que os participantes dos ?reality shows? sejam, de fato, totalmente anônimos, mas isso só mostra como, dispondo de algum dinheiro para investir no próprio corpo e estando ainda abaixo da faixa dos 40 anos, gente comum, de profissões idem, pode aspirar a se mostrar sem reservas para câmeras de TV.

Mas não vamos aqui fazer o jogo fácil do moralismo e começar uma diatribe contra o que se chama de ?baixaria?. Afinal, a falta de pudor é uma das características fundadoras da TV, e estamos cansados de vê-la em ação, desde o repórter que desconhece o direito à privacidade e não desgruda o microfone do rosto do desabrigado que lamenta seus mortos à sede de exposição que contamina qualquer grupo de pessoas diante de uma câmera. A noção de que se deve mostrar tudo, não importa o quê e muito menos como, perpassa todos os formatos televisivos, dos telejornais às telenovelas, onde passou a ser um imperativo mostrar, ainda que parcialmente, a nudez dos atores.

?Mulheres Apaixonadas?, por exemplo, exibe sem dó nem piedade uma profusão de tórax masculinos -do glabro Pedro Furtado ao hirsuto Tony Ramos, há peitos para todas. E vem aí uma nova novela de Carlos Lombardi, ?Agora É que São Elas?, em que Marcos Pasquim e Humberto Martins devem passar 80% do tempo de sunga ou toalha na cintura. Mas é nos ?reality shows? que o escancaramento do outro atinge seu paroxismo.

Lá, corpos, até então semi-anônimos ou quase desconhecidos, revestem-se de uma biografia sumária -fulano de tal, 25 anos, personal trainer, sonha em ser ator/ atriz- e passam a desfilar e a interagir diante de câmeras espalhadas por todos os lados.

Famosos ou anônimos, masculinos ou femininos, corpos com generosas porções de pele à mostra têm sido a regra na TV brasileira. Sempre se pode saudar tal fenômeno como mais um traço da liberdade de costumes, da ginga e da malemolência do caráter brasileiro, mas é preciso não esquecer de um detalhe: ao contrário do que a TV quer acreditar, não há exposição neutra. Ou será que não tem nada a ver com estereótipos raciais o fato de o penúltimo clipe que apresentou os candidatos a eliminação no ?Big Brother? ter tratado o negro Alan como um corpo perfeito e másculo encimado por um sorriso simpático e o branco Dhomini como um sujeito articulador, romântico e com manias estranhas? Um é corpo, o outro, de certa forma, pode-se dizer que se aproxima do espírito -quem está mais próximo da natureza, quem está mais próximo da humanidade? Quem, portanto, há de ?merecer? mais o meio milhão de reais?”

 

CARNAVAL NA TV

“Perdão, gente. É o carnaval na TV”, copyright Folha de S. Paulo, 10/03/03

“Pode ser uma contradição, em termos, mas se há um espaço sagrado do profano é o Sambódromo do Rio, onde se realiza, nas noites de domingo e segunda-feira de carnaval, o maior espetáculo da Terra. Este ano, a Beija-Flor quis levar para a avenida uma discussão que envolvia símbolos religiosos. O debate entrou pela madrugada da Globo, com a participação dos telespectadores. Hoje em dia, o público participa de tudo. Basta ligar para o 0300 e pagar pelo direito de opinar. A Beija-Flor ganhou o carnaval no Rio, a Estação Primeira chegou pertinho do bicampeonato.

Foi um belo desfile, o da Mangueira. Mas teve problemas. Há tempos Hollywood vem invadindo o carnaval. A estética dos efeitos começou, quem sabe, com Joãosinho Trinta, que colocou a Beija-Flor no imaginário planetário com suas audaciosas encenações na avenida. Steven Spielberg e George Lucas estão cada vez mais lá. A Mangueira perdeu pontos na bateria, o que, para uma escola com seu currículo, é imperdoável. Mas a Mangueira também perdeu por aquela comissão de frente pirotécnica, com aquele Moisés que levitava. Bom momento para que os organizadores do desfile parem para pensar. Os efeitos, em si, não são condenáveis. A própria Mangueira apresentou um efeito belíssimo, a abertura das águas do Mar Vermelho, encenada como um espetáculo de cor que encheu os olhos de quem estava na avenida e pela TV, visto do alto, foi magnífico.

Justamente o papel da TV no carnaval. Foi a partir da instantaneidade da televisão que o desfile das escolas de samba, no Rio, se transformou num espetáculo planetário. Para atender à especificidade da cobertura televisiva, os desfiles começaram a mudar. Desfila-se, hoje, para a câmera. A Globo dispõe como quer do desfile. Por causa de sua cobertura, os desfiles de São Paulo foram acomodados na sexta-feira e no sábado. No domingo e na segunda, são no Rio.

Perdão, telespectadores. A cobertura de carnaval é sempre uma comédia de erros e absurdos. Repete-se todo ano, monotonamente, por mais que os personagens de cada carnaval dêem sua contribuição. Beth Carvalho é uma rainha do samba, mas Deus(a)? Beth tentou nos fazer crer, na segunda, que possuía o dom da onipresença. Esparramou-se no sofá de Hebe, no SBT, e iniciaram a conversa de comadres. ?Beth, que ótimo, você aqui numa segunda de carnaval, que honra.? ?Hebe, querida, seu público merece.? O confete de sempre. E aí, o telespectador que, por ventura, resolveu zapear, trocou de canal e… Espera aí, aquela ali na Globo não é a Beth Carvalho desfilando no Sambódromo? Esse último era ao vivo, o outro tentava simular que era ao vivo, mas foi gravado com antecedência porque Hebe, afinal, também tem direito a ter seu carnaval. A questão é: por que enganar o telespectador? É simples: porque é isso que esses apresentadores, essas emissoras fazem o tempo todo.

Na Globo, a apresentadora Maria Beltrão fez um discurso contra a estética dos efeitos especiais invadindo a avenida. Foi veemente e aí, bem nessa hora, entrou um daqueles efeitos de computador da Globo, uma daquelas vinhetas de que a emissora se utiliza para repetir o que merece ser visto de novo. A moça teve de se virar e, incoerente, se saiu com essa: ?Olhaí que linda a nossa vinheta.? Dois exemplozinhos. As noites de sexta a segunda foram pródigas neles. Exigiriam o espaço inteiro desse suplemento para comentar tanta besteira.

E aí entrou em cena Monique Evans. A RedeTV! não tinha direito de transmissão do Gala Gay, que era da Band. Monique foi para a porta. Não houve travesti nem drag queen que passasse incólume por ela. O mínimo que Monique aprontou foi apertar seios para testar a dosagem de silicone, pedindo detalhes sobre… Bem, o que fazer para esconder aquelas partes, lá nos baixos ventres. Nada mais carnavalesco. O tempo todo, as emissoras dirigem o foco para seios e bumbuns. O machismo é total, mas merece complacência porque, afinal, o que se mostra é uma preferência nacional e o belo é para ser visto. Com Monique, cai a máscara. Ela reinventa o Bandido da Luz Vermelha, no clássico udigrudi de Rogério Sganzerla, obra-prima do cinema nacional. Quando a gente não é o melhor, a gente esculhamba. Monique é da estirpe de Dercy Gonçalves. Se não existisse, teria de ser inventada.”