Wednesday, 27 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Bia Abramo

ENTREVISTAS NA TV

“Entrevistas mostram hipocrisia do showbiz”, copyright Folha de S.Paulo, 30/11/03

“Marília Gabriela entrevista Sandy, no ?De Frente com Gabi?. Pergunta: ?O que é [ênfase no ?é?, seguida de pausa] ser famosa desde os seis anos de idade??. E Sandy solta lá o repertório ensaiado de ?sinceridade?: ?Na verdade, sempre sonhamos com isso… Já estávamos acostumados… Nunca soubemos como é uma vida normal, portanto não sentimos falta…?. Gabi aceita: não retruca, não pressiona, não contesta; o programa deve prosseguir. E prossegue.

Gabi entrevista Júnior. Pergunta: ?Você joga futebol? É perna-de-pau ou é bom??. E lá vai o Júnior contar sobre estrelas da seleção brasileira como Denílson, Roberto Carlos. Ele diz, sorrindo muito: ?Naquele dia, eu joguei bem e, no dia seguinte, encontrei o Denílson num programa de TV e ele disse que eu jogava um bolão etc.?. Gabi observa: ?Você é metido, hein??, ao que Júnior sorri mais ainda e, tentando se justificar, explica: ?É que naquele dia eu estava bem?. Gabi tenta a piada, a provocação, mas a isca fica no ar.

Eles têm um novo CD, ?Identidade?, e lançam um filme, ?Acquaria?, e é por isso que estão ali, diante das câmeras, diante de Gabi. Que usa sua proverbial simpatia intimidatória, suas habilidades (que não são poucas) de entrevistadora, mas não arranca nada de Sandy, nem de Júnior, além daquilo que já se sabia anteriormente. Que ela é uma moça boa, empenhada sinceramente em se tornar uma cantora, depois de ser por anos uma máquina de fazer dinheiro. Que ele se ressente um pouquinho de estar à sombra da irmã mais talentosa, mas resolveu isso virando uma espécie de músico. Que eles, apesar de tudo, são pessoas normais e sinceras.

Num ambiente profundamente midiatizado, ninguém mais é surpreendido por nada. A entrevistadora -na verdade, qualquer um que esteja em posição semelhante- sabe o que esperar, assim como os entrevistados. Por sua vez, eles já vão com uma espécie de script mental, preparados de antemão até mesmo para os assuntos considerados espinhosos. A audiência, então, engole tudo, as mesmas histórias de sempre, os mesmos falsos confrontos, o acordo tácito de hipocrisia que está implícito nessa relação. Sandy, pela enésima vez: ?Não sou uma santinha, não entendo por que só me perguntam sobre a virgindade?. (Não? E não foi essa uma peça promocional cuidadosamente burilada alguns anos atrás?)

O mais assustador parece ser o fato de que ninguém está, de fato, mentindo, só obedecendo à implacável lógica do showbiz. No novo mundo do entretenimento, rigidamente controlado por estratégias de marketing, os discursos, tanto do lado dos entrevistados quanto do lado daqueles que entrevistam, estão dominados pela eterna repetição de temas e de falas. E os programas de entrevistas acabam sendo a ante-sala do tédio absoluto.”

 

PERFIL / NETINHO

“Poder da periferia”, copyright Folha de S.Paulo, 30/11/03

“Pagodeiro romântico, apresentador de um programa dominical de televisão com alguns quadros bem bobinhos, Netinho de Paula, 33 anos, 100% Cohab como na camiseta (cresceu em um prédio desse projeto habitacional de São Paulo), de bobo não tem nada. Ambicioso, planeja ser ninguém menos que ?o representante do povo da periferia?. E não descarta entrar para a política.

Seu veículo por enquanto é a TV, ainda que afirme ser sua prioridade cantar. ?Foi cantando que as portas se abriram?, diz. O programa que apresenta há dois anos na Record, ?Domingo da Gente?, empatou em audiência no último domingo com o ?Show do Milhão?, de Silvio Santos, e chegou a ultrapassar o SBT no horário de pico com o quadro ?A Princesa e o Plebeu?.

Nele, o apresentador vai até a casa de uma fã e a transforma em estrela por um dia, coisa parecida ao que o homem-sorriso já fazia na década de 1970, com o lacrimoso ?Boa Noite, Cinderela?. O próprio programa não foge do formato tradicional das atrações domingueiras, com um toque ?social?. Mas o que distingue mesmo o show e lhe dá audiência, diz acreditar Netinho, é ser apresentado por um homem negro.

Se foi a música que deu o empurrãozinho para conseguir o programa, o show, por sua vez, alicerçou caminhos para outros projetos. Como o ?Turma do Gueto?, o primeiro seriado com protagonistas negros da TV brasileira, que ele idealizou.

Agora está promovendo um workshop de roteiristas no Rio, em parceria com a produtora Picante Pictures, de Los Angeles, que banca o projeto, para a criação de uma nova série. No cinema, quer estrear em abril do ano que vem ?A TV do Ano?, roteiro seu com direção de Jefferson De, o cabeça do ?Dogma Feijoada?, movimento que propõe, entre outras idéias, banir das telas a presença ostensiva de negros com armas na mão. Foi por achar que a série tinha ficado violenta demais que Netinho saiu da ?Turma do Gueto?. ?Faltava poesia?, diz.

Ele conta que deu trabalho para convencer a Record a exibir a série, produzida pela Casablanca e já em sua terceira temporada. ?Eles reagiram como se já tivessem cumprido sua cota de negros na TV com o Netinho no domingo?, ironiza, apesar de a emissora ter sua preferência para a exibição do novo sitcom. Aliás, ele aprova as cotas para negros em tudo, ?até nos telejornais?.

Com 14 pontos no Ibope conquistados em São Paulo (cada ponto equivale a 48,5 mil domicílios na Grande São Paulo), em seu último episódio, exibido às segundas-feiras, o ?Turma do Gueto? tem no personagem Jamanta, interpretado por Nil Marcondes, seu campeão de cartas, embora seja um traficante.

Para Netinho, nada de mais verdadeiro -mesmo com críticas ao rumo tomado pelo programa que deixou. ?Isso é a única coisa que é realidade no programa. O bandido é a referência de sucesso mais próxima que se tem na periferia?, diz. ?O professor chega de ônibus, enquanto o traficante chega num carrão, é popular entre as mulheres. Além disso, é bom ter um ator como Nil sendo chamado de gostoso. Isso aconteceu direto com branco bandido na novela das oito da Globo.?

Netinho afirma que quem vê ?Turma do Gueto?, ao contrário do que diz o Ibope, não são as classes C e D, mas adolescentes de classe média, brancos inclusive, que assistem ao programa porque se identificam com o jeito hip hop do negro, um fenômeno já observado nos EUA. ?Os caras querem falar na gíria do negro, se vestir igual. Todo mundo morre de vergonha de ser playboy.?”

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“Para Netinho, Ibope teme as classes C e D”, copyright Folha de S.Paulo, 30/11/03

“O cantor e apresentador Netinho, 33, recebe a reportagem no escritório da rede de cabeleireiros especializados em cabelos crespos que mantém -são cinco hoje, serão quase 50 no ano que vem, segundo ele planeja. Ao vivo, é mais magro e mais baixo do que na TV. Parece desconfiado, mas aos poucos vai revelando sua estratégia.

Quer atingir todos os públicos com seus programas de televisão, não apenas os negros, porque os telespectadores estariam clamando por mais miscigenação na tela. ?Turma do Gueto?, por exemplo, era um grande anseio da comunidade branca, por isso fez sucesso. Os brancos estão cheios de ver só brancos na televisão.?

Netinho não dá muitas pistas sobre o seriado que prepara com roteiristas americanos no Rio (leia texto abaixo). Fala apenas que é inspirado em sua própria vida e que admira como modelo ?A Grande Família?, a melhor série, em sua opinião, atualmente no ar -uma idéia de 30 anos atrás. Aplaude o fato de a Globo escalar uma protagonista negra, a bela Thaís Araújo, para a próxima novela das sete, ?Da Cor do Pecado?.

Mas afirma que ?Cidade dos Homens? não teria tido espaço na emissora carioca se ?Turma do Gueto? não tivesse surgido antes e mostrado que há público para um programa com negros da periferia. Uma audiência que especula ser maior do que se imagina: os índices do Ibope, embora venham se mostrando generosos, são vistos com desconfiança.

?Uma vez um diretor do Ibope me disse que não existe medição de audiência na periferia porque eles têm medo de colocar os aparelhos lá. Por isso acho que é no mínimo classe B a audiência do meu programa. As classes C e D não são pesquisadas?, acusa. Procurado pela Folha, o Ibope não se manifestou a respeito.

Falar em armas em excesso na ?Turma do Gueto?, razão de sua saída, parece contraditório para um fã, mesmo pagodeiro, do rap agressivo feito em São Paulo, personificado nos Racionais MCs e em seu líder Mano Brown, amigo de Netinho. O apresentador de quadros doces na televisão diz, porém, carregar a mesma revolta que move os rappers, com tática distinta. ?Quero encontrar adeptos pela minha ideologia. A violência não ajuda a comunidade.?

Também acha que os próprios rappers estão encontrando outro caminho, evitando os ?exageros? que atingiram as letras das canções. ?Ninguém pretende glamurizar a violência. O próprio Brown fala que não quer ?viver no país das calças bege? [a prisão]. Foi uma radicalização que o samba também cometeu, ao falar só de amor, mas isso está mudando.?

Atribui às circunstâncias sua opção pelo pagode romântico com o grupo Negritude Júnior, no início da carreira, como o que era ?permitido? no nível cultural que tinham. Mas não desdenha. Diz que foi o pagode, tão criticado, que tornou possível a expansão que vê da presença do negro na mídia atualmente. ?Foi o pagode que tornou possível o Netinho na TV, o Alexandre Pires (ex-Só Pra Contrariar) na Casa Branca.?

O que ele achou disso? Foi bajulação do império americano? ?O presidente dos EUA manda no mundo e, se um neguinho cantando pagode chegou até ele, deve ser respeitado. Chegar ali não é fácil, criticar é que é.?

A pregação de Netinho vai por caminhos que fazem lembrar os da política. E ele fala que pensa em se candidatar algum dia, depois que der sua ?contribuição? para a causa da periferia na TV. O partido seria o seu mesmo, o fictício Partido das Pessoas da Periferia.

O apresentador, incorporando a frase clássica de Martin Luther King Jr. (1929-68), diz: ?Eu tenho um sonho…?. É ?melhorar a auto-estima das crianças negras.?”