Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Bia Abramo

BBB 3

“O paredão do moralismo”, copyright Folha de S. Paulo, 6/04/03

“DIZ a Rede Globo que a versão quatro do ?Big Brother? é só para o ano, enquanto o SBT anuncia um pacote de ?reality shows?, do tipo mais esportivo, ainda em 2003. Qualquer que seja o formato de ?reality show? que venha a prevalecer na televisão brasileira, é fato que eles pegaram e, para o bem e para o mal, colocam em questão alguns procedimentos da TV.

No momento em que a coluna é escrita, o resultado do último ?Big Brother? ainda não está decidido, mas, seja ele qual for, tanto a vitória quanto a derrota serão justificadas e entendidas de forma moral. Quem quer que ganhe, é porque fez por merecer. Ao abocanhar os R$ 500 mil do prêmio, o ganhador terá as virtudes premiadas e os pecados relevados.

Submetidos a escrutínio constante durante dias e dias, os participantes exibem tudo o que podem e que imaginam ser o apropriado em termos de comportamento para fazê-los ?merecedores? do prêmio. O julgamento, na verdade, é duplo: junto com o público, os outros participantes também avaliam, rotulam e constroem suas alianças e estratégias baseados em aferições sobre valores tais como honestidade, lealdade, legitimidade.

Some-se a isso o imperativo de estabelecer uma tipologia -cada um, querendo ou não, acaba por representar uma espécie de papel, assumir uma persona e, novamente, a adequação ou não ao papel, a distância maior ou menor entre a personalidade assumida e a ?real? também se tornam motivo para o exame moral, do tipo ?verdadeiro? ou ?falso?, aqui como sinônimo de mentiroso. Aqui, o moralismo do telespectador, que julga tanto o caráter do ?personagem? quanto a performance do ?ator?, tangencia a moral de quem elabora as regras que cercam a realização do programa.

É exatamente nesse terreno que as mãos da direção, edição e roteirização do programa mais pesam. Ao contrário do que diz ao vivo o apresentador, ao público não é oferecida uma visão furtada, uma ?espiada?, mas sim um olhar que obedece a algum tipo de plano narrativo. Imaginem: trata-se de sustentar a atenção do público em um bando de zés-ninguém, absolutamente desinteressantes, em um cotidiano tornado ainda mais tedioso por conta do confinamento.

A única maneira, parece ser a resposta das experiências já acumuladas até agora, é construir o programa de forma a simular alguma espécie de narrativa, que, paradoxalmente, se aproxime o máximo possível de uma narrativa ficcional. O ?reality show? só ?acontece? na medida em que se afasta da realidade, em que a substitui pela ficção (torta, barata e simplória, mas, ainda assim, ficção).

Neste último ?Big Brother?, a discussão transcendeu o plano dos procedimentos técnicos e estendeu-se para os resultados de votação do público, o que deu munição para alegações indignadas sobre a idoneidade do programa -e obscureceu o que talvez fosse mais importante, que era desvendar em que medida a manipulação que ficcionaliza o ?reality show? dirige os julgamentos do público.

Menos moralista e mais realista, Silvio Santos, em sua admirável mistura de truculência e experiência televisiva, desfaçatez e carisma, tanto sabia disso que manipulou as regras à (sua) vontade e ao gosto do público em ?Casa dos Artistas 1?, para melhor formatar uma narrativa -e foi tão diabolicamente bem-sucedido que chegou até a criar o que já se pode chamar de convenções do ?gênero?, como a redenção da pobreza (?Boa Noite, Cinderela??), o casal contra tudo e todos, a ingênua perigosa, o brucutu simpático etc.”

“Pedro Bial foi o vencedor do ?Big Brother?”, copyright O Estado de S. Paulo, 6/04/03

“Enquanto o Brasil não sabe o que fazer com o Fernandinho Beira-Mar, com as investidas do narcotráfico contra o Bondinho do Corcovado, com o assassinato de juízes, com os reflexos da guerra contra o Iraque e com as reformas necessárias, o Jornal da Globo breca o noticiário para uma entrada ao vivo de Dhomini. E noticia, com exclusividade, qual o primeiro investimento que fará o vencedor do Big Brother Brasil 3 com os R$ 500 mil que ganhou depois de dois meses de pura vagabundagem.

O telespectador soube em primeira mão, na noite de terça-feira, que o rapaz vai realizar o sonho de ter um jet-ski. Relevante, não?

Está certo que a bolada ganha pelo recém-famoso mexe com as fantasias dos brasileiros anônimos, especialmente nesses tempos difíceis. É justo que a emissora tire o melhor proveito de um programa que rendeu boa audiência, mas realocar equipamentos e profissionais para inserir uma bobagem dessas no noticiário sério é extrapolar. Ao que consta, entradas ao vivo são para fatos importantes, uma fala do presidente da República, por exemplo. O que justifica então esse desatino? Só pode ser uma inversão de valores.

O programa rendeu o resultado esperado pela emissora. A jornada do BBB3 registrou índices importantes. Manteve a média de 40 pontos no Ibope (na Grande São Paulo) e estourou na edição final com 50. Mas a reverência foi, no mínimo, exagerada.

É engraçado procurar as razões da adesão ao Big Brother. Claro que a disputa pelo meio milhão é estimulante em qualquer cenário. Acrescente-se aí a dose de voyeurismo inerente ao ser humano. Observar colegas da espécie exercitando suas funções mais básicas em uma jaula dourada tem lá o seu apelo, especialmente se elas são entremeadas por cenas sensuais, intrigas e perfídias. Coisa que a Globo já havia testado nas edições anteriores.

Os moradores da Casa cumpriram medianamente o seu papel. Mas o vencedor desse BBB3 foi Pedro Bial e seu entusiasmo juvenil. Bial – como os BBBs acostumaram-se a chamá-lo – merece ser premiado pelo hercúleo esforço que empreendeu para espantar o tédio provocado pelo cotidiano maçante daquele grupo de siliconadas e malhados cujas preocupações eram mais banais do que o normal. É óbvio que reality show não é programa para quem procura profundidade, para esse existem as reuniões da Academia Brasileira de Letras. Mas o que se viu no Big Brother foi abaixo do mínimo.

No afã de levantar o astral, o mestre-de-cerimônias criou adjetivos, apelidos e expressões para enfeitar os feiosos pavões. Assim nasceram ?estrategistas?, ?big mother?, etc. Como um Chacrinha contemporâneo, Bial fez de tudo para comandar a massa e deu as ordens no terreiro. Na final, durante o enfadonho show de Paulo Ricardo, foi ele quem mais se divertiu.

Também merece o reconhecimento o pessoal da edição que movimentou a pasmaceira. Quem viu a rotina dos BBBs em tempo real – por um dos canais pagos – sabe do que estamos falando.

Na verdade, quem merece um troféu mesmo é o público, que valentemente acompanhou durante 78 noites o doce farniente daqueles que desfrutam agora dos seus 15 minutos de fama.”