COPA DE VACAS MAGRAS
Alberto Dines
Para quem não sabe ou esqueceu: antes de ser nome de reality show, Big Brother é a alcunha da entidade inventada por George Orwell em 1984, sua fábula sobre o futuro. Inspirado na máquina de propaganda nazista, posteriormente aperfeiçoada pelo stalinismo, o rebelde Orwell concebeu na sua trágica utopia um Grande Irmão, protetor e castrador capaz de controlar acontecimentos, informações e aniquilar vontades.
Para quem ainda não registrou: a Farra da Copa de 1998 está sendo sucedida em 2002 pela Copa das Vacas Magras. No Mundial anterior, convencidos que o pentacampeonato estava no papo, os donos da mídia meteram-se numa enorme bolha e despacharam para a França a maior comitiva já reunida para cobrir este evento esportivo.
Loucura, malbarato, desperdício, por um lado. Pelo outro, saturação do leitor com palpites, irrelevâncias e doses cavalares de desbunde. A grande festa do futebol foi avacalhada ? literalmente ? pela manada de celebridades convertidas em comunicadores. Com efeito direto sobre o moral dos jogadores.
Agora, a depressão econômica mundial e alguma autocrítica reverteram a situação. Com o cinto apertado e a língua de fora, sem ter negociado (como queriam) as quotas de publicidade para bancar o investimento, as empresas de comunicação cortaram ou enxugaram drasticamente as equipes que irão à Coréia-Japão.
O resultado certamente favorecerá o leitor, ouvinte ou telespectador ? que receberá uma informação mais abalizada e menos desvirtuada. Em outras palavras, mais futebol e menos lero-lero.
Em compensação, o cidadão brasileiro será punido por uma série de drásticas restrições ao seu direito à informação:
** Pela diferença no horário entre antípodas. A FIFA e os países anfitriões preocuparam-se apenas com a hora dos jogos no local da disputa, esquecidos da formidável platéia mundial na Europa e Américas, principais baluartes do Esporte-Rei. No Velho e Novo Mundo os jogos ocorrerão de madrugada ? lá, três horas a menos do que aqui. A corrupta FIFA e a sua afiliada brasileira estão se lixando para os 180 milhões de cidadãos-torcedores deste país.
** Pela diminuição das opções, sobretudo na mídia eletrônica. Até o presente momento, apenas uma rede aberta anuncia a cobertura dos jogos: a TV Globo, a única com cacife para pagar o preço do direito de retransmissão e com credibilidade junto ao mercado para vender os patrocínios.
** Pela drástica decisão da Globo de restringir as possibilidades de “sociabilização” nos dias de jogo, controlando a exibição da retransmissão em locais de freqüência coletiva (bares, botecos, shoppings) em que possa ser vislumbrado qualquer tipo de vantagem econômica, inclusive como promoção do próprio estabelecimento. A Globo pagou uma nota preta pelos direitos, vendeu por menos do que esperava e agora resolveu descarregar sua frustração [veja, abaixo, a íntegra do comunicado do emissora].
** Pela ainda mais drástica, perversa e aberrante decisão da mesma Rede Globo de impedir a retransmissão dos jogos através das parabólicas sem decodificador. Isso significa que nos grotões do Brasil Profundo, gente pobre que não pode pagar uma assinatura da Sky (também da Globo) ficarão privados da Copa. Acrescente-se que o canal pago, Sportv, pertence ao mesmo grupo.
O Jornal do Brasil (edição de 12/5, pág. 28) calculou em 22 milhões o número de brasileiros que serão prejudicados. Chute, devem ser muito mais [veja íntegra na rubrica Entre Aspas].
O mais grave é que, até agora, ninguém teve a coragem de contestar este atentado à liberdade de informação. Um jogo ? da Copa ou não ? é um acontecimento, fato. Notícia não pode ter dono, caso contrário deixa de ser notícia, aprisionada a interesses. A difusão jornalística não pode ser embargada, suprimida ou controlada. Caso contrário, caracteriza censura.
Um aparelho privado exposto em lugar público presta um serviço público, sobretudo quando se trata de veiculação de informações de interesse social.
A Rede Globo errou:
** Ao impor condições para a exibição de uma retransmissão na rede aberta. A exigência para a transmissão integral em locais públicos, incluindo comerciais, é compreensível mas descabida. Configura uma ameaça ao livre arbítrio, à propriedade privada e ao direito individual. Além disso é ridícula ? a Globo ou seus agentes jamais terão condições de levá-las às últimas conseqüências. E se o tentarem poderão atentar contra ordem e a segurança. Este constrangimento fere os mais comezinhos princípios democráticos.
** Ao ignorar que a TV é concessão pública. Compromisso de servir à sociedade. Os detentores deste privilégio têm obrigações com os beneficiários legais das concessões.
** Ao discriminar, controlar ou suprimir informações. Sob o ponto de vista político é ilegal. Sob o ponto de vista humano, imoral. A veiculação de informações é obrigatoriamente universal ? há mais de 200 anos.
** Ao anunciar a punição de uma parte da sociedade porque as concessionárias de TV e de telecomunicações foram incompetentes para levar sua rede a todos os recantos do país. Tiveram tempo e gozaram de inúmeros privilégios. Fracassaram.
Se nenhuma emissora aberta tivesse obtido os recursos para a viabilizar a retransmissão dos jogos, a saída seria a resignação. Se nos confins dos cafundós as parabólicas não conseguem captar as emissões dos satélites, é deprimente considerando os avanços tecnológicos. Não configura arbítrio ou violência, apenas penúria.
Mas uma empresa reconhecidamente competente (em todos os sentidos), com recursos para comprar os direitos de retransmitir uma informação esportiva, não pode capitular às exigências e impertinências de uma entidade desmoralizada como a FIFA. Nem racionar ou fragmentar um bem comum em proveito próprio.
Essas decisões são fruto da zanga ou da frustração. É visível mas não justificado. Podem ser revertidas, há tempo e espaço para isso. Caso contrário, ficará o flagrante de um constrangimento anti-social, antidemocrático e, no caso de uma Copa, antinacional.
COMUNICADO DA GLOBO
[ Transcrito de O Globo, 6/5/02, pág. 11; grifos do OI ]
A Rede Globo e a Globosat, detentoras dos direitos de transmissão da Copa do Mundo FIFA de 2002 em televisão aberta e por assinatura, comunicam que é proibida a exibição da transmissão dos jogos de sua programação em locais de freqüência coletiva (bares e restaurantes, shopping centers, eventos públicos etc.), ao vivo ou por “videotape”, em que seja auferida qualquer tipo de vantagem econômica, seja através de cobrança de ingresso ao público, realização de sorteios, distribuição de brindes, comercialização de patrocínio, associação com qualquer marca comercial, inclusive a do próprio estabelecimento, ou promoção de qualquer produto ou serviço.
Respeitadas essas restrições, a exibição dos jogos em locais de freqüência coletiva, através de aparelhos de televisão ou telões será permitida desde que:
a) o sinal dos jogos seja exibido na íntegra, começando no mínimo 5 (cinco) minutos antes do início da transmissão e encerramento no mínimo 5 (cinco) minutos após o término da mesma, incluindo intervalos comerciais e anúncios de patrocínio;
b) não seja feita qualquer alteração, inserção ou corte no sinal dos jogos;
c) não haja qualquer vinculação da exibição dos jogos com partidos políticos ou candidatos a cargos eletivos.
Rede Globo, Globosat