Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Birra de jornalista

JORNAL NACIONAL

Gilson Caroni Filho (*)

Quem assistiu ao Jornal Nacional na semana passada presenciou uma nova investida da emissora sobre o processo eleitoral. Subitamente, foi descoberta uma ainda inexplorada função para o jornalismo televisivo: ensinar o eleitor a votar. Diariamente, um bloco do telejornal foi destinado ao "voto esclarecido" para as eleições de outubro. William Bonner, solene e com ar professoral, explicava ao telespectador que indagar ao candidato de onde sairão os recursos para a execução de suas propostas não é "birra de jornalista", mas preocupação em dar transparência aos discursos.

Estaríamos no melhor dos mundos não fosse essa "atitude asséptica", malgrado as boas-intenções originais, um dispositivo ideológico manjado: o bom candidato é aquele que opera dentro da lógica econômica atual, apresentada pela emissora como única expressão racional de alocação de recursos.

Propostas alternativas são vistas como prenúncios de populismo desastroso, com nefastas conseqüências para a economia do país e para a vida de cada um dos seus habitantes. Qualquer mudança de rumo é apresentada como espantalho de investidores e embrião de colapso econômico-financeiro. Se alguém queria uma demonstração empírica do que se convencionou chamar de pensamento único, a cobertura do processo político brasileiro é de uma riqueza ímpar. Antes de ser uma estratégia governamental para desqualificar seus opositores, o terrorismo eleitoral é parte constitutiva do discurso jornalístico contemporâneo. A unidimensionalidade tem por princípio considerar alternativas que se lhes opõem como manifestações de barbárie. Ou, como já destacou Caetano Veloso, "Narciso acha feio o que não é espelho".

Interessante notar que, mesmo levando-se em conta o apoio de ampla parcela da imprensa à candidatura Serra, não estamos aqui tratando de uma conspirata engendrada a seu favor. Falamos de um campo discursivo anterior ao processo eleitoral, e que nele se manifesta de forma mais nítida. Cuidamos de um conjunto de práticas e idéias que se articulam na órbita do capital sem amarras, imune a qualquer regulamentação estatal. Em suma, focamos, para fins de análise, na hegemonia neoliberal perpassando a práxis jornalística que a apresenta como fenômeno natural.

Quando o atual governo engessa o que lhe sucederá com um acordo que prevê redução de gastos sociais visando à obtenção de superávit primário, o que presenciamos não são tecnicalidades insofismáveis. Há uma clara opção política em favor do capital, que é oculta no noticiário. Para que obteremos superávit primário (receitas menos despesas, não considerando os gastos com juros) nos percentuais estipulados pelo FMI? Para pagarmos os juros da dívida externa. Quais os principais beneficiários? Os bancos europeus e americanos fortemente expostos às oscilações da economia brasileira. Devemos protegê-los dos efeitos do receituário adotado pelo governo FHC para otimizar seus ganhos. Seria realismo mágico não fossem 50 milhões de pobres e 11 milhões de desempregados. E ao encurtar o vencimento de dívidas, segundo noticia a Folha de S.Paulo, como fica o quesito governabilidade do futuro presidente?


"O Banco Central tenta hoje trocar R$ 13 bilhões de sua dívida de prazo mais longo, que vence entre 2004 e 2006, por títulos (LFTs, certificados de dívida pública) que vencem até junho do ano que vem. Se a troca tiver sucesso, o próximo presidente terá de administrar o vencimento de uma dívida de R$ 112,283 bilhões no primeiro semestre do ano que vem, em vez dos R$ 99,283 bilhões previstos até agora" (FSP, 16/8)


Parece-nos que, ante tal fato, a "TV Globo cidadã" deveria correr ao gabinete presidencial e indagar se há espaço para democracia no próximo mandato. E com que recursos? Nesse momento o apresentador telegênico não precisaria explicar que a pergunta não é birra de repórter, mas exigência da cidadania.

A definição de prioridades do próximo governo pelo atual pode ensejar outra pergunta incômoda: para que eleições? E se a resposta não for convincente, o desapreço do eleitor pela democracia não terá sido uma falha de mídia, mas o resultado de sua lógica momentânea.

O pensamento único ri

Mais que nunca é necessário reafirmar que governar é, entre outras possibilidades, promover rupturas e abrir novos caminhos. O que a imprensa tem indagado aos candidatos de oposição não é se vislumbram novos rumos, mas se já conhecem atalhos para acelerar a chegada ao abismo que se anuncia. Pede-se que renunciem à soberania futura para se mostrarem confiáveis. Que não discordem do atual presidente. Que subscrevam seus acordos e endossem seus argumentos. O índice de confiabilidade se mede pela intensidade dos aplausos na Fiesp ou na Bovespa. Os US$ 30 bilhões são demonstração de confiança nos fundamentos da economia. Qualquer exigência ainda não tornada pública deve ser encarada como algo secundário ante a magnitude do socorro. Invertendo a dinâmica sucessória, os candidatos são convocados a uma reunião com o presidente para se inteirarem dos detalhes do acordo. E, deles, se espera a total homologação. Aquele que anuir com mais convicção certamente estará no caminho correto da consagração das urnas. Nos jornais do dia seguinte, provavelmente estarão os indefectíveis "quem ganhou, quem perdeu" nos encontros com FHC. E as pesquisas eleitorais, previsivelmente, registrarão variações favoráveis aos mais dóceis.

Segundo nos relata Paulo Nogueira Batista em sua coluna na Folha, talvez os melhores indicadores da justeza das opções estejam na reação de quem ministra o remédio, vendido pela imprensa como a única terapia possível.


"No início do mês, o diretor de relações externas do FMI, Thomas Dawson, concedeu uma coletiva de imprensa sobre as negociações com o Brasil e outros temas. Um jornalista dirigiu-lhe a seguinte questão: ?Qualquer entendimento [com o governo e os principais candidatos à Presidência do Brasil] será baseado na continuação das políticas atuais, que o FMI sempre elogiou. A pergunta é: se as políticas são boas, por que estamos tendo a crise?? O questionamento foi recebido com gargalhadas, segundo registra o próprio site do FMI (ver Transcript of a Press Briefing by Thomas C. Dawson, Washington, DC, 1? deste mês, <www.imf.org>)."


Não deixa de ser um bom sinal o pensamento único rir de si próprio e dos que nele crêem. Mais que sinalizar a descrença no próprio receituário, revela o charlatanismo do terapeuta. Sobreviva ou não o paciente, ele parece ter os seus rendimentos assegurados. Seria o caso de mais uma vez o prestimoso William Bonner ir a Washington e perguntar ao Sr. Dawson: "De onde sairão os recursos?" Nem que fosse por pura birra de jornalista.

(*) Professor-titular da Facha (Faculdades Integradas de Comunicação e Turismo Hélio Alonso), Rio de Janeiro