Saturday, 21 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Bom mesmo é um belo happy-end

TV DIGITAL

Paulo José Cunha (*)

Falar em televisão digital é deslumbrar-se com a possibilidade de acesso a centenas ou mesmo milhares de canais, provocando o desabamento dos grandes impérios de audiência, alterando hábitos, revolucionando a agenda de assuntos.

Igualmente, falar em televisão digital é falar em interação absoluta, representada pela fusão entre o atual aparelho de TV e o computador, um fazendo as vezes do outro, o outro fazendo as vezes do um. Na prática, isto significa uma forma nova de assistir televisão. Na verdade, uma forma tão nova que a palavra "assistir" já nem serviria mais. Quando a TV digital chegar, talvez a gente precise inventar alguma palavra ou expressão pra pôr no lugar de "assistir". Algo como "entrar na TV", um similar ao "navegar" criado quando a internet começou a se popularizar. Ao mesmo tempo, a fidelidade da audiência estará por um fio, tantas as possibilidades de acesso abertas aos telespectadores. Uma revolução sem tamanho!

Quer saber de uma coisa? A maioria dessas previsões não passa de conversa, e conversa fiadíssima. A história ensina é que as grandes inovações tecnológicas interferiram muito pouco nas formas de acesso do público aos veículos de comunicação. A informatização das redações, por exemplo, não mudou a forma de ler jornais, ouvir rádio, assistir televisão.

Esses veículos apenas melhoraram a apresentação dos seus conteúdos, ganharam agilidade na pesquisa e puderam avançar mais nos horários de fechamento. Mas a forma de ler jornais continua a mesma: letras para serem lidas e imagens para serem vistas, impressas em papel ou exibidas numa tela de computador, tanto faz. Agora, é possível ouvir rádio no computador. Mas o rádio continua rádio. E com a banda larga chegando aí já-já a gente vai ter acesso ao conteúdo da TV com excelente qualidade de imagem na tela do PC. Mas vai continuar sendo TV… no computador! Já os conteúdos, como a voz daquela moça do comercial dos anos setenta, estes vão continuar os mesmos, pelo simples fato de que a audiência é formada por gente. E gente, desde que o mundo é mundo, gosta de boas histórias, reais ou imaginárias.

Imaginar que a disponibilização de centenas de canais vai fazer a audiência zapear como louca ou supor que cada pessoa vai montar um cardápio particular de programas pinçando o que interessa de cada canal é tão fantasioso quanto esperar que todo dia a gente chegue no restaurante self-service e monte um prato inteiramente diferente. Nada mais falso.

Quem gosta de frango vai continuar se servindo de frango, eventualmente experimentando uma outra comida aqui ou ali e é só. O básico vai continuar o mesmo. Da mesma forma, quem gosta da TV Globo vai continuar fiel a sua programação. Até porque, para a maioria esmagadora da população, assistir ao Jornal Nacional não é apenas uma forma de se informar mas, também, uma forma de integração social. Tal como, nos Estados Unidos, todo mundo precisa dar uma olhadinha na CNN pra ficar por dentro. Ou, na França, saber o que diz o Le Monde, até mesmo pra poder criticar. Sem isso, não tem papo no trabalho, falta assunto no boteco, perde-se o agenda setting que nos permite trocar dois dedos de prosa com o pipoqueiro ou jogar um lero praquela moça de bumbum buliçoso.

Conversar sobre… o quê?

As pesquisas indicam que a maioria dos assinantes de TV a cabo paga para ter a possibilidade de acesso a dezenas de canais, mas termina assistindo mais é à TV de sinal aberto. Ou então dá uma beliscadinha ali no canal de esportes, bigbroda a MTV pra saber o que a molecada anda aprontando por lá, pega um filmezinho maneiro no Telecine ou na HBO e tamos conversados. A audiência, aqui ou em Pequim, é essencialmente conservadora. Da mesma forma, imaginar que a TV digital vai promover uma revolução no conteúdo é tão falso quanto supor que o self-service da esquina, que agora pode servir pratos da cozinha escandinava, vai mudar substancialmente os hábitos de seus clientes. Tudo conversa. Quem gosta de feijão com arroz vai continuar se servindo de feijão com arroz e ponto final.

Agora, o self-service que vai ganhar a concorrência será o que produzir o arroz com feijão de melhor tempero, escolhendo os melhores produtos com os acompanhamentos certos, de acordo com o paladar da clientela. Talzinho como hoje, sem tirar nem pôr. Com a TV digital pode-se finalmente colocar em prática o sonho de ter três ou vinte finais para uma mesma história, para o telespectador escolher o que mais lhe agrade. Com certeza, vão tentar botar isso em prática, revivendo uma espécie de Você decide mais incrementado. Até o dia em que a audiência se cansar de decidir e exigir de volta as histórias com início, meio e fim, de preferência com um happy-end de arrepiar ou um final surpreendente.

Como brincadeira, a gente até dá uma olhada num livro com três finais. Mas, no duro mesmo, quer é acompanhar passo a passo uma bela trama armada pelo gênio de uma Agatha Christie, de um Jorge Amado, de um Dias Gomes, de um Jaime Monjardim.

Pra chegar lá no final do livro, da minissérie ou da novela e poder comentar com a vizinha: "Você viu, menina? Que coisa, né? Quem poderia imaginar?"

Ora, se cada um se danar a montar sua própria grade de programação ou escolher o final que mais lhe agrada, a gente vai conversar sobre… o quê?

(*) Jornalista, pesquisador, professor da professor da Faculdade de Comunicação da UnB. Este artigo é parte do projeto acadêmico "Telejornalismo em Close", coluna semanal de análise de mídia distribuída por e-mail. Pedidos para <pjcunha@unb.br>