Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Bourdieu, o "queridinho" e os plantonistas

MÍDIA E POLÍTICA

Gilson Caroni Filho (*)

No dia 6 de março vai ao ar o programa eleitoral (não
sejamos cínicos) do ministro José Serra. Segundo Teresa
Cruvinel , de O Globo ("Panorama Político",
12/2), "a estratégia do PSDB para esta primeira fase
da campanha presidencial é jogar luz, muita luz, sobre a
biografia de seu candidato. Outros recursos serão utilizados
com o mesmo objetivo, contar e humanizar (sic) a vida de Serra".
Falar-se-á de sua militância estudantil, do exílio
e da trajetória política pós-anistia. Estaremos,
em suma, ante uma estupenda máquina publicitária com
apoio explícito de amplos setores da imprensa. Além
do marketing tucano, da inegável competência da assessoria
contratada para a campanha, encastelados nas principais colunas
dos grandes jornais estarão os que, pelo seu alinhamento
incondicional ao projeto de poder dominante nos últimos anos,
chamamos, sem qualquer demérito, de plantonistas palacianos.
Funcionam, sob o disfarce de analistas isentos, como extensão
logística do Palácio do Planalto. Deixemos claro,
já que com ela abrimos este artigo, que Teresa Cruvinel não
é referência de plantonismo no sentido aqui empregado.

Ao trabalhar com a ação midiática não pretendemos enquadrá-la no esquema simplificado do aparato conceitual althusseriano. Não se trata de um mero aparelho ideológico a reproduzir subjetividades requeridas pela formação capitalista. Preferimos trabalhar com a noção de "campo", do sociólogo recentemente falecido Pierre Bourdieu. Não só porque metodologicamente é mais eficaz para a apreensão do tensionamento interno da imprensa, como dá conta melhor de sua interação com outros setores da esfera humana, em especial o da política. Dessa rica imbricação, onde todos mantêm sua autonomia relativa, é traçada a trama da hegemonia. Não são nossos objetivos, ao longo deste pequeno artigo, fazer julgamentos morais ou ditar orientações normativas, mas tentar jogar um foco de luz na ação de certos profissionais recorrentes na ação de incensar o que interessa aos (supostamente) poderosos de plantão.

Seja sob o título de "coisas da política" ou "política das coisas", o que lhes sobra de elegância estilística falta-lhes de abrangência analítica. Sempre rigorosos ao menor deslize dos atores oposicionistas, emocionam pela indulgência quando se trata de registrar as ações de uma das bandas da coalizão governista. O texto conciso soma-se à astúcia de profissionais calejados para perpetrarem, sob a máscara do mero registro jornalístico, peças publicitárias de gosto duvidoso. Embora condenem as campanhas eleitorais extemporâneas e ilegais, não fazem outra coisa sob o signo da mítica "objetividade dos fatos". Tendem, pela própria formação do campo jornalístico, a personalizar o que é processual e, por deliberada opção ideológica, a inverter o processo quando se trata de uma subjetividade ameaçada eticamente por ação política temerária. Seja compra de votos para reeleição ou liberação recorde de emendas represadas no orçamento do ano anterior, os procedimentos condenáveis são naturalizados como "realismo político".

É como se dissessem que, gostemos ou não, é assim que a política é feita universalmente. Para o êxito do empreendimento é necessário, paradoxalmente, despolitizar o texto, em procedimento registrado por Bourdieu:


Todos esses mecanismos concorrem para produzir um efeito global de despolitização ou, mais exatamente, de desencanto com a política (…) A ausência de interesse pelas mudanças insensíveis, isto é, por todos os processos que, à maneira da deriva dos continentes, permanecem despercebidos e imperceptíveis no instante, e apenas revelam plenamente seus efeitos com o tempo, vem redobrar os efeitos da amnésia estrutural favorecida pela lógica do pensamento no dia-a-dia pela concorrência que impõe a identificação do importante e do novo. (Sobre a televisão, pág.139)


Trata-se de, à custa do sacrifício de uma análise diacrônica, registrar o fazer político em termos pontuais e sem qualquer conexão com a historicidade do local em que ocorre ou com aspectos caros à vida do leitor. Teríamos o primeiro passo para o que, à falta de melhor termo, chamaremos aqui de o "eterno sincrônico". Desnecessário pedir que esqueçam o que foi escrito há anos (embora o suposto autor deste pedido negue sua autoria) não só pelo desmemoriamento produzido como, em caso de súbita lembrança, pela total coerência entre teoria e prática. Ao menos para os leitores mais atentos.

No cenário conjuntural, temos um Lula que se afigura, no espaço dos plantonistas, como "soberbo e intolerante" por se recusar a um debate com o candidato tucano. Imprudente por supostamente ter defendido o protecionismo agrícola francês. Míope por não ver a estreiteza do Fórum Social Mundial de Porto Alegre. Este último, por sinal, rotulado de sectário por ter recusado a presença do primeiro-ministro belga que lá queria comparecer como figura professoral. É o caso de se perguntar a esse "colunismo": Davos chamou o MST, a CUT, algum quadro de esquerda ou uma das ONGs presentes em Seattle ou Gênova? Em caso negativo, destacamos o pluralismo de mão única destes profissionais de redação. Outro que peca pela incoerência é Ciro Gomes e sua intempestividade. Parece, aos atentos áulicos, procurar alianças que fogem às tendências seculares do eleitorado. Como se isso existisse por aqui. Itamar é outro incômodo a ser removido, seja por sua instabilidade emocional, que o impediria de exercer o cargo com a previsibilidade solicitada pelo mercado financeiro, seja por seu nacionalismo ultrapassado.

Quem resta?, pergunta a "isenção jornalística". Roseana? Ficção marqueteira das "forças do atraso" que pretendem se auto-reformar, deve ser descartada como opção sucessória. Lembremos que o trabalho é feito para uma das partes, e não para a coalizão governista como um todo.

Sobra Serra e a racionalidade weberiana, que provavelmente o torna um notório insone mal-humorado. Pobre Weber. Portanto, ao "queridinho da mídia" ? adjetivação feliz de Janio de Freitas ? chegamos por exclusão dos demais e mascaramento de sua práxis recente.

Será instrutivo para os estudantes de Jornalismo visitarem, nos próximos meses, algumas colunas de jornais no eixo Rio-São Paulo. Não pelo que revelarão, mas pelos procedimentos de manipulação adotados. Estará lá a informação dando conta de que mais de quatro mil convênios foram assinados pelo Ministério da Saúde, em apenas cinco dias, autorizando a liberação de R$ 541milhões? Um verdadeiro manual de uso da máquina do qual nenhum bom comentarista deveria furtar a seus leitores o conhecimento pleno. Seria, tal como os que vêem o atual governo como emblemático de modernização da prática política, essa dinâmica um exemplo do fim do fisiologismo e do uso racional da estrutura pública? E a distribuição de verbas do ministério de acordo com as conveniências político-partidárias? Teremos alguma inflexão sobre nossa volta a padrões sanitários anteriores a Oswaldo Cruz ? A demissão de cinco mil mata-mosquitos a preceder uma epidemia de dengue será classificada como exemplar enxugamento de gastos desnecessários? Tais fatos e dados não são oriundos de serviços de inteligência secretos. Estão registrados nos jornais de janeiro. Ou o colunismo, se quiser uma aura de credibilidade, mostra os nexos entre política econômica e descalabro epidemiológico ou cria uma interessante "afinidade eletiva" entre Malan, Serra e o Aedes aegypti.

Dificilmente tais fatos estarão na pauta dos áulicos. Mais que analistas deverão ser objetos de análise. Decerto será interessante mostrar o quão ideológico é tratar as coisas da política como política das coisas. Da simbiose de interesses mais uma vez fica o registro de Bourdieu:


É esse método que eu desejaria novamente ilustrar (….) como o campo jornalístico produz e impõe uma visão inteiramente particular do campo político, que encontra seu princípio na estrutura do campo jornalístico e nos interesses que aí se geram. (Idem, pág. 133)


Deitados solertes nos braços de um pensamento deserto de historicidade fazem conjecturas sobre a pouca validade das pesquisas eleitorais mais recentes. Dizem, esperando a decolagem do candidato do poder, que elas só estarão em consonância com a opinião pública após as convenções partidárias e o início oficial da campanha. Por dever de ofício deveriam saber que só muita licenciosidade pode chamar enquete de pesquisa. E seria interessante que se debruçassem sobre a outra ficção tão enfaticamente denunciada por Bourdieu: a existência de uma opinião que possa realmente ser chamada de pública:


Em seu estado atual, a pesquisa de opinião é um instrumento de ação política; sua função mais importante consiste talvez em impor a ilusão de que existe uma opinião pública que é a soma puramente aditiva de opiniões individuais: em impor a idéia de que existe algo que seria uma coisa assim como a média das opiniões ou a opinião média (…) esta opinião é um artefato puro e simples cuja função é dissimular que o estado de opinião em um dado momento do tempo é um sistema de forças, de tensões e que não há nada mais inadequado para representar o estado da opinião do que uma porcentagem. ("A opinião pública não existe", in: Questões de Sociologia, pág.174)


Não estamos solicitando aos plantonistas que primem pelo rigor conceitual. Isso é obrigação do campo acadêmico. Mas que reorientem seus textos para uma análise que dê conta do objeto sobre o qual trabalham. Certamente não serão bem-vistos em coquetéis ou convidados para cerimônias mais íntimas, mas terão dado um enorme passo para resgatar o jornalista que um dia, certamente, já foram. Nesse sentido, Bourdieu lhes será profundamente pedagógico e redentor. Mesmo que façam uma leitura rápida.

(*) Professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Rio)