Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Bruxos pós-modernos e a neo-inquisição

PROPRIEDADE INTELECTUAL

Pedro Antonio Dourado de Rezende (*)

Em coluna do Globo Online de 23/11/03, intitulada "Inclusão chipada", Joelmir Beting escreveu:


"(…) Ou seja: por linhas tortas, o Brasil hospeda uma inclusão digital bem maior que a oficialmente reconhecida pela Anatel e UIT. Por obra e desgraça de um menosprezo ostensivo à propriedade intelectual de estrangeiros e dos próprios brasileiros. Menosprezo festejado em nossas tratativas da Alca. Na pirataria, na falsificação e no contrabando, estamos patrocinando a informalidade e desencorajando o investimento, a pesquisa e o desenvolvimento da TI verde-amarela de raiva. Saiu na quinta-feira da Unctad/ONU: o Brasil consolida-se como vice-campeão mundial da bandidagem digital. Sim, hacker tem de ser criminalizado como bandido. Ou se preferem: como terrorista. Ele pode derrubar avião comercial ou fundir reator nuclear. Não é molecagem de adolescente genial. (…)"


Trata-se de um embrulho que engendra perigosa falácia, repetida a quatro ventos pela grande mídia. Falácia que venho denunciando, que tenta induzir o leitor a acreditar que o respeito ao direito autoral alheio é incompatível com a liberdade humana de conhecer. E que a tal propriedade intelectual, qualquer que seja o seu significado, é protegida por lei sagrada [veja remissão abaixo].

Festejado em nossas tratativas da Alca não é, nem foi, o menosprezo à propriedade intelectual de estrangeiros e brasileiros, mas a resistência, do atual governo brasileiro, em defesa da liberdade de acesso ao conhecimento, contra abusos da sacola de obtusos conceitos jurídicos assim chamada na mídia, quando e onde empregável para fins espúrios.

O que vem a ser "propriedade intelectual", hoje? O problema com esse conceito é que a avareza causa, através dele, insânia na esfera jurídica. Como pode a remessa de royalties a empresas monopolistas transnacionais, pelo uso de coisas que sempre existiram na nossa biodiversidade, ou pelo uso de formato de comunicação digital que, aos olhos de algum juiz estrangeiro, se encaixe nalgum hermético receituário tecnojuridiquês, encorajar a "pesquisa e desenvolvimento da TI verde-amarela"?

O Brasil gasta mais de US$ 1 bilhão anuais em licenças de software proprietário, enquanto exporta apenas US$ 150 milhões em licenças de uso ou em software. Solução proposta pelo status quo? Gastar mais 1 bilhão por ano em licenças, acabando com a pirataria de software proprietário. Quem sabe assim passamos a exportar uns US$ 300 milhões. Só por algum alquímico mistério uma tal aritmética estaria "encorajando a pesquisa e desenvolvimento verde-amarelo", já na mão de agiotas globais.

Como jornalista, o Sr. Joelmir Beting estaria prestando melhor serviço tratando, em vez de mistérios alquímicos, dos reais e potenciais abusos desse oxímoro jurídico que, aliado ao poder econômico, ameaça levar a sociedade digital de volta ao regime escravagista. Por que ele não fala da escalada de custos econômicos e sociais da litigação em torno de patentes e registros cada vez mais esotéricos? Por que não fala do menosprezo sustentado contra toda e qualquer lei de proteção a autor estrangeiro, até meados do século 19 (enquanto nação em desenvolvimento), pela mesma nação que hoje quer impor ao resto do mundo um tal guante neoescravagista?

Enquanto defende as virtudes da vassalagem, o Sr. Beting exercita sua liberdade de expressão e o poder de comunicar, representado pelo espaço que ocupa em grandes veículos da mídia. Mesmo que esteja, indiretamente, fazendo apologia à mais insidiosa forma de pirataria, a do bem público pelo poder econômico, trata-se de filosofia. Nada demais. Até o ponto em que, a exemplo doutros jornalistas que apregoam as mesmas virtudes, resolve qualificar o anglicismo "hacker", como faz naquela sua coluna. Aí, passa à leviandade.

Coação e cooptação

Beting e seus companheiros de fundamentalismo de mercado não são os únicos, nem os primeiros, a empregar a tal palavra. Muitos a empregam, desde bem antes desses fundamentalistas terem-na assim ouvido pela primeira vez, para denotar quem tenha conhecimento, habilidade e curiosidade para programar computadores, e acredita no direito universal à liberdade de se buscar tal conhecimento. Inclusive, o uso do termo ganhou força pelos que o empregavam para falar, neste sentido, de si mesmos.

O Sr. Beting dá a entender que é fácil identificar um hacker-criminoso-terrorista: basta identificar um hacker. Só que ele não explica o que é um hacker. Dá uma tosca dica, dizendo que não é moleque genial, mas nada além. No mais, enjambra um samba do crioulo doido com pirataria e falsificação, que em nada ajuda na tarefa (piratas e falsários não precisam ser hackers).

Se o Sr. Beting acha que "hacker" é mesma coisa que terrorista ou bandido digital, poderia tê-lo dito, mas não o disse. Talvez por saber que não são a mesma coisa, mesmo sem saber direito o que seja uma delas, ele incita, entretanto, que sejam tratados como a mesma coisa: "Sim, hacker tem que ser criminalizado como bandido. Ou se preferem: como terrorista".

No sentido original, em que o termo veio a uso no jargão da digitalidade, existem, sim, hackers que são criminosos digitais (inclusive de alguém), mas existem também ? e em maior número ? hackers que fazem, cooperativamente, softwares de qualidade para uso sadio e de distribuição livre. Enquanto, por outro lado, existem criminosos digitais que não são hackers. Bandidos sem nenhuma habilidade ou curiosidade para programar computadores, mas que sabem como e a quem coagir e cooptar, e o que arregimentar, para suas práticas digitais criminosas.

Hackerismo e bruxaria

Eu, que sou professor na Universidade de Brasília e me considero um hacker, incito qualquer vassalo de punhos rendados a apontar, em minha trajetória de professor, especialista, consultor e escritor na área da segurança digital, conduta que se enquadre, para um observador isento, como bandidagem ou terrorismo.

Se eu puder, no sentido da capacidade, derrubar avião ou fundir reator nuclear, será pela combinação das minhas habilidades e conhecimentos de programador, com a má qualidade dos sistemas informáticos que controlam esses serviços. Essa combinação, de destreza por um lado e vulnerabilidade por outro, não guarda relação alguma com uma eventual intenção, de minha parte, em usar tal destreza com propósito criminoso.

Doutra feita esta combinação guarda, em mim, relação direta com outra intenção: com o senso de dever cívico, para denunciar possível responsabilização de quem fez e faz escolhas técnicas insensatas na especificação, elaboração e operação desses controles (veja-se, por exemplo, meu artigo sobre o incidente em Alcântara, em <http://www.cic.unb.br/docentes/pedro/trabs/alcantara.htm>.

Seria, por acaso, prática terrorista a minha intransigente defesa do direito do usuário de conhecer a lógica daquilo que podem fazer os softwares em seu nome, principalmente sob o efeito de leis que o responsabilizam por tais efeitos (MP 2.200)? Seria a minha habilidade profissional, que não se curva a vassalagens perante a ideologia dominante, por isso crime do qual estaria me acusando o Sr. Beting? Se for, o perigo terrorista estará não só do lado que ele aponta. Pois foi assim que começou a Inquisição, quando hackerismo se chamava bruxaria, propriedade intelectual se chamava "a verdade revelada" e seu mercado se chamava "a santa igreja".

Legado de valor

Software, assim como conhecimento, é arma: pode ser usado tanto para se praticar o mal quanto para dele se defender. O legado social positivo do hackerismo ? o software livre –, ao contrário de promover, elimina o problema da prática da pirataria de software, para quem não pode ou não quer pagar por licenças de uso. Pois sua distribuição é livre, podendo até ser gratuita.

E o que é mais importante, quando se fala em crime digital: software livre é completamente auditável, dificultando a ação dos criminosos que agem através da lógica oculta de softwares proprietários. Crimes e criminosos digitais ? esses de fino trato e em ternos bem cortados ? que, aliás, o Sr. Beting prefere omitir na sua vituperação.

Qual seria o motivo para os ideólogos do fundamentalismo de mercado tentarem seqüestrar, com tanto afã, o significado da palavra "hacker"? Para contaminar, com o pecha de intencionalidade criminosa, a persona guardiã da liberdade no mundo digital e seu legado social positivo? Isso se chama difamação, e teria algum motivo. O Sr. Beting, ou quem quer que seja, não tem o direito de conotar, como faz ele em sua coluna, a habilidade curiosa e o desejo de conhecimento na esfera digital com o significado da intencionalidade criminosa.

Pois tais qualidades também conotam legado de inegável valor social, como a própria internet, conjunto de padrões de comunicação digital abertos e não-proprietários que se engendrou e evoluiu, com dinheiro estatal, pelo esforço e a filosofia hackers. Esforço e filosofia nela ainda estampados não só na natureza da comunicação que possibilita, mas também na ubiqüidade e prevalência de softwares livres de correio eletrônico (sendmail), servidores web (apache) e de nomes de domínio (bind).

As queridinhas dos vassalos

Tal vituperação é, portanto, acusação leviana que, além de irresponsável, faz um jogo ideológico perigoso. O de enfiar na mesma sacola, com rótulo de escória, intenções e posturas emanadas de pólos morais e éticos opostos. Se todo hacker for tratado como bandido ou terrorista porque alguns o são, por que não aplicar a mesma regra a empresários, executivos, economistas, advogados, políticos e jornalistas, para começar?

Este é um jogo perigoso porque reacende o clima paranóico da Inquisição. O que faz o Sr. Beting é apologia ao totalitarismo digital, servindo a espúrias ambições monopolistas de empresas de TI (tecnologia da informação) que têm mostrado completo desdém por qualquer sentido de responsabilidade social.

Desdém escamoteado por cara e sofisticada estratégia de relações públicas, extensiva à cooptação não só de "formadores de opinião" mas, principalmente, do Estado para legitimar o livre curso do seu instinto de sobrevivência: a ganância que, sem contrapesos externos, porá a indústria monopolista de TI no controle dos processos sociais de uma civilização informatizada em que a democracia, como hoje imaginada, se fará quimera.

O fato de as empresas queridinhas dos vassalos do fundamentalismo dominante estarem a produzir e licenciar softwares de má qualidade não é de responsabilidade exclusiva de hacker-bandido-terrorista. Esse fato pode estar relacionado com o esgotamento do ciclo de eficácia do modelo negocial onde operam tais empresas, como tudo indica.

Ganância pela ganância

E se tais indicações estiverem corretas, não adianta jogar mais dinheiro no "problema da segurança", pois a segurança do negócio estaria se contrapondo à segurança do usuário. E não vai ser uma neo-inquisição, sacramentada por uma sacola de regramentos abusivos e absurdos, ungida pelo óleo do dinheiro globalizado para promover temporada de caça sacrificial a bruxos pós-modernos, que há de mudar a lógica dos fatos ou afastar-nos das suas conseqüências darwinianas.

Ao tentarem, a qualquer preço, dar sobrevida artificial a seus modelos de negócio, essas empresas assumem co-responsabilidades pelo que acontece de trágico na revolução digital, não importa quão retrancadas se façam com blindagem jurídica, montada por seu poder econômico, em licenças de uso de seus produtos e no produto de seus lobbies legislativos, sobre o fascínio coletivo pela tecnologia-enquanto-panacéia.

A política de informática do atual governo brasileiro, festejada nas tratativas da Alca, privilegia a liberdade universal de acesso ao conhecimento e, conseqüentemente, as possíveis formas de expressão do conceito de propriedade imaterial que protejam essa liberdade, em detrimento das que visem tolhê-la em favor da ganância monopolista.

E essas formas de expressão existem, no direito autoral e no comércio, no bojo do movimento e dos modelos de negócio em torno do software livre (exemplo: creative commons). Se a política de TI do governo festejar algum menosprezo nas tratativas da Alca, não o será pelo conceito (oximorônico) de propriedade intelectual que se queira lá erigir. Mas pelo seu erguimento com o intuito de promover a ganância pela ganância, em oposição a um fim social que, segundo Montesquieu, deve animar as boas leis.

Telhado de vidro

A filosofia e a prática monopolistas são promovidas pelo fundamentalismo de mercado, que vê a propriedade intelectual como arma jurídica de legitimidade exclusiva nas suas mãos. Em suas mãos ela se legitimaria para proteger a ganância pela e da própria lógica da ganância. Mas a defesa dessa exclusividade se torna, para a vassalagem de punhos rendados, cada vez mais desconfortável na medida em que percolarem, através do tecido social, os efeitos nefastos do descontrole decorrente, que descamba em verdadeiro terrorismo econômico.

Descamba devido à própria e inexorável lógica inconsistente da ganância, não importa quanta propaganda enganosa se espalhe para dourar a pílula, sob a bandeira do progresso, da modernidade ou da inclusão digital. A liberdade da ganância, armada de tecnologia, é incompatível com a liberdade do espírito, com a verdadeira liberdade humana. A ganância, se descontrolada e entronizada, buscará escravizar o espírito à sua lógica inconsistente.

A hipocrisia do "livre comércio", a privatização desregrada de serviços públicos e outros itens da agenda fundamentalista de mercado (exemplo: contratos como o de gás na vizinha Bolívia) já mostram conseqüências que nada deixam a dever, em tragédias, a outros fundamentalismos. Com suas teorias econômicas esquizofrênicas, suas Enrons, suas Andersens e seus tentáculos por todo o planeta, suas guerras de conquista para "reativar a economia", a pretexto de se salvar o mundo doutros terrorismos.

Por que é que bandidagem e terrorismo estariam de um só lado, do lado em que se acredita no saber digital como algo que pode ser tido e havido por bem ou serviço público, a começar pela vontade dos seus próprios construtores? Quem não souber explicar que se acautele em suas vituperações contra a defesa da verdadeira liberdade humana. Quem tem telhado de vidro deve escolher com cuidado onde jogar suas pedras.

(*) ATC PhD em Matemática Aplicada pela Universidade de Berkeley, professor de Ciência da Computação da Universidade de Brasília (UnB), coordenador do programa de Extensão Universitária em Criptografia e Segurança Computacional da UnB, representante da sociedade civil no Comitê Gestor da Infra-Estrutura de Chaves Públicas Brasileira

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