NOTAS DE UM LEITOR
Espaço para o pós-materialismo
Luiz Weis
Ponto para a Folha de S.Paulo pelo editorial "O véu da polêmica", publicado no domingo (14/12). O assunto é a decisão do governo francês de proibir alunos, professores e funcionários de escolas públicas a utilizar ornamentos religiosos ? crucifixo sobre o uniforme, quipá (solidéus judaicos) na cabeça e chador (os véus com que as mulheres muçulmanas ortodoxas cobrem o cabelo e/ou parte do rosto).
A Folha merece o elogio não porque criticou a decisão, mas porque, diferentemente dos seus competidores, acha que o leitor brasileiro deve estar a par dos fatos e opiniões relacionados com a ampla gama de assuntos que os cientistas sociais agrupam na categoria "agenda pós-materialista" ? e que mobiliza cada vez mais a opinião pública dos países onde ir para a cama de estomago cheio deixou de ser a prioridade das prioridades para a esmagadora maioria de seus habitantes.
Questões ambientais, de gênero, de expressão da sexualidade, de diversidade cultural, de direitos das minorias étnicas e religiosas, de usos sem precedentes da ciência médica, do direito à morte assistida ? temas reais e presentes no cotidiano de incontáveis milhões de cidadãos (e não cidadãos) do mundo desenvolvido ? costumam merecer da mídia brasileira tratamento de segunda classe. Mesmo quando esses problemas, ou alguns deles, mexem com uma parcela da população brasileira ou são percebidos por ela como seus também.
A explicação para a conduta da imprensa, no caso, é óbvia e não desprovida de sentido. Sendo finito o espaço nos periódicos (e escassos os meios de produção de informações, na pindaíba em que eles se encontram), é apenas natural que o noticiário, as colunas de opinião e os editoriais se concentrem nos temas macro que afligem o povo deste país antes injusto do que desenvolvido.
Eis por que economia e política ? o papel do Estado e a crise estrutural das finanças públicas; a atividade produtiva e o emprego; o comércio exterior e as negociações internacionais; os programas sociais e o combate à miséria ? representam a parte do leão da mercadoria vendida ao leitorado todo dia ou uma vez por semana. Além, evidentemente, da violência que se impõe aos brasileiros de domingo a domingo.
Em qualquer latitude
Perto disso, não faltará quem argumente, que importância jornalística tem a legalização das uniões de pessoas do mesmo gênero (o chamado "casamento dos homossexuais"), ou o direito ao aborto, ou mesmo o desmatamento da Amazônia?
Mas essa parece ser apenas parte da resposta. Porque em diversos jornalões existe um entranhado preconceito contra aqueles temas ? "perfumaria" e "coisa de veado", como não raro se ouve nas respectivas redações.
Quanto mais não seja, trata-se de um crasso erro mercadológico. Os mesmos barões da mídia que se queixam do envelhecimento da população leitora deixam passar entre as pernas o fato de que os jovens lêem menos do que seria desejável (para todos) entre outros motivos porque estão muito mais antenados para o pós-materialismo do que, por exemplo, para a reforma da Previdência ou para o destino dos dissidentes do PT.
(Este leitor aproveita a ensancha para manifestar o seu desagrado com o uso corrente, na mídia, do termo "radical" para designar a turma da senadora Heloísa Helena. É um adjetivo carregado de conotações, que atropela a desejável isenção da cobertura a respeito. O mesmo se aplica ao seu antônimo ? "moderado". Por que não chamar a turma do ex-deputado José Genoíno simplesmente de "majoritária"?)
A Folha, reconhecidamente ágil em tomar a pressão do público e se pautar por suas pulsações, percebeu isso faz tempo. Daí porque, no caso específico da proibição francesa ao chador, não bastasse ter coberto razoavelmente bem o assunto e ter aberto espaço para duas opiniões divergentes em relação ao caso, em breves artigos, deu-lhe um editorial no dia em que mais se lê jornal ? domingo.
Com isso, a Folha passou ao leitor brasileiro um recado mais importante do que o da sua própria posição sobre uma polêmica que rola em um país do outro lado do oceano. O recado é: essas coisas contam no mundo de hoje, em qualquer latitude.
Ao emitir esse sinal, a Folha fez o que cabe a um jornal de olhos abertos.
Apenas pela tirada na sua coluna de
terça-feira (16/12) – "Pegaram o Saddam. Agora só
falta o Bush!" -, o humorista José Simão, da
Folha de S.Paulo, já justifica a sua presença na capa
da Veja São Paulo desta semana, que o apresenta como "a
língua mais ferina" da cidade. Dá razão
também ao colega de jornal Clóvis Rossi quando este
o considera, com ironia mas nem tanto, "o melhor comentarista
político do país".