Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Cacique kubé na terra dos espíritos

ORLANDO VILLAS-BOAS (1914-2002)

Ulisses Capozzoli (*)

Quando as primeiras flores da primavera brotarem é possível que alguma decisão já tenha sido tomada. Os índios do Xingu estarão reunidos mais uma vez para um Quarup, festa religiosa com que rememoram o espírito de seus mortos, quase sempre índios, mas, desta vez incluindo um kubé, o "branco" Orlando Villas Boas.

Há muita história envolvendo o nome desse homem sorridente, gentil, de fala afável que ao longo da vida literalmente assumiu outra cultura e assim passou a pertencer a um outro povo, ainda que continuasse vivendo num bairro de classe média no bairro da Lapa, em São Paulo.

Orlando Villas Boas, sertanista e indigenista que morreu no começo da tarde de quinta-feira passada, já na maturidade caminhava com passos curtos, rápidos e sem tirar os pés do chão, como um velho índio.

Um dia, na entrada de sua casa da Lapa, brinquei: "Orlando, você agora é um índio completo."

Ele respondeu com um sorriso aberto, sem dizer nada. Fechou o portão, com uma chave presa a um pedaço de madeira, para não se perder com facilidade. Fez uma aceno com as mãos, como se fosse ele quem estivesse indo embora, não eu.

Liguei o motor, manobrei uns 100 metros abaixo e quando passei novamente em frente ao sobrado já não havia ninguém. Orlando entrara para o escritório no térreo, depósito de fotos, recortes de jornais, presentes que recebia de índios e "brancos". Depósito de memórias.

Foi a última vez que o vi bem de saúde, sorridente como sempre foi.

A morte de Orlando, o último dos três irmãos Villas Boas, que na primeira metade do século passado mergulharam no desconhecido do Brasil Central, dividiu a imprensa pela última vez. Alguns jornais foram mais generosos. Concederam duas páginas. Outros, mais objetivos, refletindo um ceticismo estéril, como se fosse virtude, abriram uma página só. O mesmo aconteceu com as revistas semanais.

O discurso vazio do ministro

Há muita história, muitos livros e em cada um deles outras histórias. Nem todas edificantes. Os Villas Boas deram um exemplo de como as coisas podem ser, mas certamente não esperavam que pudessem mudar radicalmente o mundo. Flagraram muito oportunismo. Dividiram essa indignação com uns poucos. Generalizaram para os outros.

Talvez por isso Cláudio, menos sociável que Orlando, tenha se refugiado na filosofia e na literatura, os abrigos mais aconchegantes que um homem pode ter. Lá fora o mundo ruge indiferente às lembranças, aos ferimentos que ainda não se fecharam, sob valores que mudam como os anúncios da TV. Na literatura e na filosofia um homem vive à margem do tempo, imune aos seus efeitos.

Quando esteve no Xingu pela última vez, para o Quarup de Cláudio, Orlando combinou com os índios que seria enterrado no parque.

Na curva de um rio, como sugere o título de um dos mais dramáticos relatos sobre o extermínio dos índios na América. Sob a sombra de uma mangueira, na bela aldeia Kamayurá. Num ponto eqüidistante de todos os 16 povos que vivem no parque, para não provocar ciúmes em nenhum deles.

Não houve tempo para detalhes na conversa com os índios. Orlando, untado com urucum, com o cocar que legitimava sua condição de transmutado cultural, estava num transe imperceptível. Olhava com seus óculos de lentes grossas, mas parecia não enxergar nada do presente, com seu espírito navegando no tempo.

Nas proximidades, num jirau, uma enorme quantidade de peixe assado, à disposição dos participantes. Índios enfeitados como criaturas de um outro planeta. A poeira fina subindo feito névoa, perturbando a visão da realidade. Mais de 800 guerreiros dançando, batendo ritmadamente os pés no chão, como se a Terra inteira fosse um tambor surdo a responder aos apelos para que os mortos retornem sob outras formas, mas não deixem de renascer.

Um ministro de Justiça, no Brasil tradicionalmente um cargo passageiro, até que uma oportunidade vitalícia possa aparecer, fala de queimadas na selva sem compreender suas próprias palavras.

Bife, e não peixe

O ministro diz que os índios não devem atear fogo na mata. Mas quem queima a floresta, na vizinhança do parque, é um irmão dele, fazendeiro apegado à história da posse da terra no Brasil, carimbado com as patas do gado, onde cresceram em todo o tempo anterior, até onde pode contar a memória do homem, raízes de todo tipo de árvores.

Orlando caminha, o dorso nu, vermelho de urucum, amparado por Marina, a companheira que encontrou no Xingu.

Numa pista de terra, que em meados do século passado ele mesmo ajudou a abrir, a golpes de machado, enxadões e enxada, pousam aviões militares. Trazem convidados que serão abrigados numa maloca ampla, dividida em muitos dormitórios, tudo coordenado pela Fundação Nacional do Índio (Funai).

Os recém-chegados vão presenciar o Quarup. Um repórter veste uma engomada bermuda branca. Não consegue distinguir Orlando em meio aos "brancos", também pintados de urucum, como se participassem de um evento caras-pintadas no meio da floresta.

O Xingu está cercado por todos os lados pelas patas dos bois. É a capital brasileira do boi gordo. Nos restaurantes das cidades que cercam o parque, caso de São José do Xingu, que os índios chamam sintomaticamente de "Bangue", simplificação de "Bangue-Bangue", é mais fácil e barato comer um bife que um peixe.

O repórter de bermuda branca pertence a uma exótica classe de criaturas. É um dos agregados de um grande jornal paulista.

Agregado é um termo que remete à história senhorial no Brasil. Por isso mesmo tem muitas acepções. Todas elas relacionadas à servidão que se deve prestar a um senhor, em troca de algum benefício.

História sem explicação

O repórter de bermudas brancas, além do emprego assegurado, beneficia-se da vantagem de cobrir qualquer assunto de interesse de seu senhor, onde seja conveniente dar-se uma interpretação tradicional a qualquer que seja o assunto, no país ou no exterior.

Os Villas Boas conheceram todo tipo de jornalistas. Orlando tinha histórias curiosas para contar sobre cada espécime dessa espécie que conheceu bem.

O objetivo imediato do repórter de bermudas brancas é arrancar algumas palavras de Orlando. Mesmo que sejam públicas, ditas sob a sombra de uma estrutura montada com bambus recém-colhidos para amenizar a dureza do Sol.

Se for conveniente ou necessário um outro texto defendendo a presença dos bois, fora ou dentro do parque, o repórter de bermudas brancas não vai hesitar. Recebe as ordens como um militar e está determinado ao seu cumprimento como um escoteiro.

O repórter de bermudas brancas é uma metáfora da imprensa no Brasil, submetida a ordens, interesses e visões familiares.

Orlando não sabe e, se os espíritos murmurados pelos pajés lhe confidenciaram, ele não tornou público. Mas o fim de seu longo percurso não está longe. Ele diz que esta é a última vez que visita o parque. A próxima será definitiva. Mas admite que poderá, numa viagem por avião, talvez visitar alguns de seus antigos camaradas, participantes da famosa Expedição Roncador-Xingu. Os antigos integrantes da expedição, uma cozinheira, um mateiro, um caçador, um tropeiro. Muitos ficaram pelo caminho. Alguns moram em Xavantina, um dos pontos de passagem da expedição, onde ainda está a casa do coronel Vanique. Ali, com um disparo de revólver, a mulher do coronel, um dia, pôs fim à vida.

Orlando socorreu a mulher jovem, lívida pela perda de sangue. Com um fio de voz ela confidenciou que atirara contra o próprio corpo e era a única culpada por sua tragédia. O avião decolou em busca de socorro médico, mas chegou tarde ao seu destino.

O coronel abandonou a casa, as louças, os poucos cristais e os guardanapos de linho branco que sua esposa esperou por longos meses ter a oportunidade de oferecer a um hóspede capaz de reconhecer os pequenos confortos da sociedade urbana.

Os irmãos Villas Boas, apesar de tudo que escreveram, levaram com eles parte da história do Brasil. A saga da Marcha para o Oeste, a conquista do Brasil Central. Ali mesmo em Xavantina, às margens do Rio das Mortes, a que Orlando se referia sempre como o "Mortes", ficou uma história sem explicação e uma casa vazia de gente.

A falta que fará Orlando

Os antigos companheiros dos Villas Boas, a cada ano menos numerosos, incluem velhos garimpeiros de diamantes que inicialmente haviam se estabelecido na barra do Rio das Garças com o caudaloso Araguaia. Alimentam a esperança de um encontro com Orlando, o único remanescente, como se fosse uma rotina do passado.

Mas, de alguma forma, todos correm contra o tempo. Homens práticos, ainda que pouco letrados, sondam o futuro como se medissem o leito do rio. Nem todos acreditam que um dia terão o encontro desejado. Lamentam sem desconforto.

Devem ter sabido da morte de Orlando pelo noticiário da TV. Prantearam sua morte como os índios do Xingu: Raoni, Megaron e Bepkum, dos caiopós, que visitaram o corpo do sertanista na Assembléia Legislativa de São Paulo e partilharam um único lenço para enxugar as lágrimas.

Um dia todos terão partido para o que os índios chamam de "terra dos espíritos". O último dos Villas Boas se foi. Mas também irá o ministro que, apesar do discurso conservacionista no Xingu, atirou nas águas do Araguaia os filmes que documentavam a história da Fundação Brasil Central, o órgão que coordenou a Expedição Roncador-Xingu.

O repórter de bermudas brancas também terá seu último dia e, depois dele, será apenas um ponto esmaecido na história.

Os índios, quando celebram o Quarup, homenagem que devem fazer a Orlando Villas Boas na próxima primavera, reafirmam a força misteriosa da vida.

Os "brancos", que tiraram essa terminologia dos fiLmes de John Wayne, em seu ceticismo cartesiano, dizem uma coisa e fazem outra. Como demonstrou com seu gravador o também desaparecido líder xavante Mário Juruna.

Daí a falta que fará Orlando Villas Boas, que se transmutou de branco para índio para compreender as raízes do Brasil.

(*) Jornalista