LEITURAS DA MÍDIA
Ivo Lucchesi (*)
A provocação do presente artigo deve ser creditada na conta do jornalista Clóvis Rossi, articulista da Folha de S.Paulo. Foi sua matéria "Euro, dólar e verdades" (Folha, 21/1/03, pág. A 2) que fez retornar a temas por mim já visitados em alguns artigos publicados ano passado neste Observatório [remissões abaixo].
Analisando as oscilações que têm ocorrido entre o dólar e o euro, o articulista aproveitou para desancar com previsões outrora feitas quanto ao destino vitorioso ou fracassado da nova moeda da União Européia. A alturas tantas, Rossi convoca os jornalistas a um exercício de rigorosa autocrítica:
"É importante deixar claro que os jornalistas temos formidável parcela de culpa nessa história. Estamos abdicando de características que deveriam marcar a fogo o DNA de cada profissional. Passamos a aceitar alegremente teses, idéias e teorias como verdades absolutas, com o que abdicamos da curiosidade, motor principal da profissão, e do ceticismo a respeito do que mortais comuns esgrimem como verdade única e definitiva".
A imprensa de saia justa
Com preciso corte cirúrgico, Rossi resumiu o grave problema que habita o jornalismo atual. Por que, em sua grande maioria, jornalistas reproduzem (ou repassam) conteúdos, quando deveriam produzir seu próprio olhar sobre os fatos do mundo? Essa é a questão que, uma vez tocada, desnuda a verdade que tantos se esforçam por ocultar. A raiz do problema se encontra na formação profissional e na orientação das empresas de comunicação. Sem alterações nas duas frentes, não há como se romper o modelo posto.
A tentativa de analisar critica e desapaixonadamente a questão parece fadada a cair numa armadilha, em razão de dois aspectos que insistem em aprisionar o enfoque: 1) a obrigatoriedade (ou não) do diploma; 2) o perfil predominantemente teórico ou prático do curso. O próprio Observatório da Imprensa tem sido freqüentemente contemplado por artigos e cartas que dialetizam as duas angulações. Apesar dos louváveis esforços, na maioria dos casos não é evitado o tom corporativista no qual as partes atreladas defendem intransigentemente idéias que se confundem com defesa de interesses. A compreensão crítica não deve absorver posições contaminadas pela cegueira funcional.
Os cursos existem e estão espalhados por todo o país. E jornalismo é, como outras, uma profissão regulamentada. Como tal, pressupõe alguns requisitos. Abrir-se a porteira a quaisquer aventureiros não parece ser o atalho mais produtivo. Criarem-se algumas áreas livres, sim. Artigos, entrevistas e críticas que tematizam setores específicos deveriam ser espaços entregues a profissionais de seus respectivos ramos, explorando o conhecimento atinente ao campo temático em questão, o que só enriqueceria o perfil da imprensa. Uma coisa é certa: a nova geração egressa dos cursos de comunicação não sabe entrevistar. A maioria considera entrevista o que não passa de inquérito ou questionário. Na imprensa escrita, isso é fatal. Os "entrevistadores" saem com o elenco de perguntas, sob o severo ditame de uma pauta, e, haja o que houver, o entrevistado responderá ao que foi previamente sentenciado. A maioria ignora o belo livro A arte da entrevista: uma antologia de 1823 aos nossos dias, organizado por Fábio Altman (Editora Scritta, 1995), apenas como uma referência entre outras.
O duelo inútil
Quanto à discussão travada entre "formação teórica" e "formação prática", as vozes que, aqui e ali, se pronunciam a respeito não deixam de gerar certa melancolia. O equívoco já se prenuncia no uso da palavra "formação". Prática não forma. A prática possibilita desempenho funcional; portanto, ela é operatória. É o nível mais primário de qualquer aprendizagem em qualquer ofício. Ela se funda em procedimentos miméticos. A prática se torna eficiente quando embasada em vigorosa expansão do pensamento, o que apenas é alcançável mediante a exposição do ser ao desafio da reflexão, fundamento da formulação teórica. "Com teoria não se fazem matérias", vociferam os detratores do pensamento. Claro, nenhuma teoria "faz" coisa alguma. Todavia, é ela que mobiliza o "pensamento-linguagem", permitindo a expressão do "código-língua" e, por fim, sua conversão em "matéria". É isso que define o resultado final de uma matéria com ou sem qualidade.
O que é reclamado por Clóvis Rossi encontra explicação na "deformação" do jornalista. Como a imprensa diária pode oferecer conteúdo capaz de confrontar a força do "pensamento único" se a maioria de seus novos profissionais está limitada por uma ferramenta simplória a incluir vocabulário restrito, sintaxe banal e informação descartável? De onde se vai extrair conhecimento exigido para a autonomia crítica? Os defensores da "formação prática" têm de oferecer solução para o impasse. A tal "formação" não dá conta de situações que exigem análise, interpretação, prospecções.
A empresa de comunicação
A outra frente a merecer redefinição recai no "modelito empresarial". No mundo da "economia globalizada"(ou de perfil neoliberal ? expressão recusada por alguns), difundiu-se a idéia de que, indistintamente, uma empresa deve ser gerida por princípios e procedimentos em consonância com o que reza na cartilha do mercado. Transposto para a realidade brasileira, no limiar dos anos 90, o ideário rapidamente contaminou setores variados, estendendo-se a áreas de ensino, saúde e comunicação. É óbvio que as conseqüências não poderiam deixar de ser desastrosas, não sob o ponto de vista dos "negócios", mas quanto aos fins. Supõe-se haver profunda diferença entre a finalidade de uma rede de açougues e uma rede de hospitais, escolas ou órgãos de comunicação. O que está imperando ? para nos atermos apenas ao campo da comunicação ? é o complexo midiático industrial na condição de co-partícipe das megacorporações do capital. Desse atrelamento decorre a série de deformações, à altura de modificarem o sentido e a finalidade dos veículos de comunicação.
Desafios à frente
Enfim, a autocrítica reclamada por Clóvis Rossi é tão necessária quanto inadiável. O problema, porém, esbarra na possibilidade exígua de promover o rompimento dos atuais elos que integram a cadeia defeituosa. Embates progressivos estão sinalizados na conjuntura mundial (assunto que deverá nortear a segunda parte deste artigo). Não se trata de tom profético e assombroso. É apenas o reconhecimento acerca do que vem sendo engendrado, em âmbito planetário, e que teve no 11 de setembro de 2001 seu marco oficial. A gravidade da dinâmica em curso vai forçar um redirecionamento qualitativo por parte dos órgãos de comunicação. Isto é inevitável, porque disto também dependerá a preservação das receitas desses mesmos órgãos (ou "empresas"). Cada vez mais, acontecimentos no mundo esbarrarão na necessidade de análises, posicionamentos, ou seja, aquilo que não cabe na frágil fórmula da "informação".
Há uma camada de público que começa a perceber que o "mundo lido" e o "mundo visto pelas telinhas" não traduzem o "mundo real". Será, portanto, a ampliação da massa crítica demandante que determinará a transformação do que ainda hoje se oferece como jornalismo [continua].
(*) Ensaísta, doutorando em Teoria Literária pela UFRJ, professor-titular da Facha, co-editor e participante do programa Letras & Mídias (Universidade Estácio de Sá), exibido mensalmente pela UTV
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