Saturday, 21 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Carlos Câmara Leme

PORTUGAL

“?Se a Novela Aproximar Os Telespectadores de Eça, Está a Cumprir o Serviço Público?”, copyright Público (www.publico.pt), 23/02/03

“A RTP1 estreia, amanhã, pelas 18h30, a maior novela da sua história, Lusitana Paixão. São 150 episódios. Durante seis meses o universo criado por Eça de Queirós no século XIX vai chegar a casa dos portugueses, reactualizado para o Portugal contemporâneo. Com todos os ingredientes de uma novela, o seu autor, Francisco Moita Flores, pensa que não só há elementos da ficção queirosiana que permanecem na sociedade actual, ?como vão continuar a persistir durante muitos séculos?. Não por acaso, a personagem João Moniz (Gonçalo Wadington) diz logo num dos primeiros episódios: ?Na política, o fundamental é ter-se o apoio do futebol e dos bêbados. São cinco milhões de votos.?

PÚBLICO – Como é que surgiu o convite da RTP para fazer o argumento de Lusitana Paixão?

FRANCISCO MOITA FLORES – Em primeiro lugar, não acreditava que fosse possível. Por um lado, porque é um clássico; por outro, porque me perguntava a mim próprio como é que a obra de Eça, mesmo que trazida para a actualidade, aguentaria 150 episódios. A segunda questão que me levou a hesitar foi o estarmos perante um dos autores mais conhecidos da literatura portuguesa que já foi revisitado de muitas maneiras. Agora era a vez de uma novela.

Quais são as regras, o modelo de uma novela?

Tem que ter vários conjuntos familiares, atingir vários patamares sociológicos e cruzar problemas de diferentes classes. É o padrão da Globo, não é preciso inventar.

Houve alguma novela brasileira que tivesse servido de ponto de partida para a Lusitana Paixão?

Não, de certa forma é uma telenovela experimental, relativamente ao que já tinha feito. Se temos o Eça como a sombra que paira por toda aquela narrativa e estamos a falar de um produto de massas, para milhões, é muito difícil encontrar uma linha para não perder qualidade.

E qual é essa linha?

Optei por uma linha onde fui buscar aquilo que é mais importante em Eça: a narrativa, a beleza estética, o humor, a paixão. Mas ao contrário da novela, que tem, à partida, uma leitura simplista muito redutora, criei alguma conflitualidade.

Donde é que vem o título da novela?

Não fui que o escolhi, foi a RTP; vem do tema musical, que tem esse título. É uma questão de ?marketing?.

Depois da sua adaptação de ?O Conde d?Abranhos?, foi logo escolher a obra-prima de Eça, ?Os Maias?. Não é uma escolha assustadora?

Ainda hoje me assusta! Ainda hoje não consigo dormir bem com a minha consciência. É uma aposta no limite.

Então porquê ?Os Maias??

Por uma razão: desde que haja uma novela no ar que se inspire em ?Os Maias? sem ser ?Os Maias?, tenho a certeza que se vai ler o livro ou outras obras do Eça. A televisão é um instrumento forte e poderoso ao serviço da leitura, desde que consigamos transformar o livro no espectáculo que as grandes massas querem. Se esta novela, ao longo de seis meses, conseguir aproximar um ou dois telespectadores dos livros do Eça, está a cumprir o serviço público. O serviço público será as consequências da novela, que é levar mais gente a ler. E a ler sobretudo os nossos clássicos.

Quais foram os momentos capitais de ?Os Maias? que trouxe para a actualidade?

Não peguei só nos ?Maias?. Deitei mão também de ?O Conde d?Abranhos?, de ?A Campanha Alegre? e de ?O Crime do Padre Amaro?. Os pontos capitais são a relação do avô com o neto (Afonso da Maia e Carlos da Maia) e as relações de Carlos da Maia com João da Ega e com Maria Eduarda. É a partir deste triângulo que ponho estas personagens a olharem este país, com os lados cinzentos com que o Eça olhou o Portugal do s&eaeacute;culo XIX, cruzando uma história de quotidianos com esse olhar amargo e ao mesmo tempo doce.

Não pode ser questionável a passagem de personagens de ficção do século XIX – o Conselheiro Acácio, o Palma Cavalão, o Conde d?Abranhos ou o Padre Amaro – para a paisagem actual?

Há um problema, de facto: o Padre Amaro só é compreensível à luz em que Eça o coloca. Agora qualquer personagem, pela sua própria estrutura e enquanto representação de uma realidade, é sempre uma concretização da memória. O que procurei fazer foi, justamente, partir dessa memória e acrescentar-lhe um discurso dramático onde se encontram novos personagens. Mas persiste a mesma memória. Penso que há aqui uma fatalidade histórica da qual não nos conseguimos libertar: Portugal é muito mais produto do que fomos do aquilo que somos.

Quer dizer que há elementos da ficção queirosiana do século XIX que permanecem na sociedade actual?

Não só permanecem, como vão continuar a persistir durante muitos séculos! Quantos ?condes de Abranhos? não existem ainda por aí?

É o que diz o Eduardo Lourenço: ?A nossa sociedade é ainda muito queirosiana?, ?está em permanente representação, salvo que agora a representação é geral. Toda a gente quer estar no palco, os famosos dez segundos para assegurar uma espécie de glória?.

É ainda mais do que isso! Se nós olharmos para as corridas de cavalos em Lisboa descritas pelo Eça e olharmos para as passagens de modelos de hoje, vamos encontrar o mesmo tipo de pessoas e de comportamentos: a ambição da fama sem olhar a meios. Vimos no Big Brother os participantes ordinários que queriam ser famosos; no Big Brother dos Famosos quem lá estava queria ser ordinária.

Mas há mais: somos o país da Europa que tem mais telemóveis, em que há o culto de todas aparências. Se por mero exercício de especulação sociológica – esquecendo o país onde estamos – lêssemos meia dúzia de revistas de grande tiragem, ficaríamos com a ideia que vivemos numa Atlântida qualquer. É uma fábrica de sonhos cor-de-rosa que eram sonhados pela Bouvarinho. Lisboa está cheia de ?Bouvarinhos? e de ?Raquéis Cohen? – e é nesse universo que coloco as minhas personagens.

Logo num dos primeiros episódios, o personagem que faz de João da Ega (o João Moniz) diz: ?Na política, o fundamental é ter-se o apoio do futebol e dos bêbados. São cinco milhões de votos.? É muito cáustico, não?

Esse tipo de discurso acompanha toda a novela e é uma das minhas preocupações. Não somos apenas esse país sinistro, que ronca, mas não podemos ocultar que ele ainda existe. Não por é por acaso que, a partir do 90? episódio, introduzi um outro tipo de político, que é um autarca sério, embora a nota que eu dê a Portugal – numa escala de 0 a 10 – é entre três e quatro! Já não é mau (risos).

Até no futebol: estamos a construir dez estádios, quando só eram preciso seis! Esta megalomania dos estádios dirigida por um grupo de rapazes de que não se conhece um único texto sobre desporto! Se formos a ver, a maioria dos secretários de Estado ou dos nossos deputados nunca publicaram nada na vida! E voltamos outra vez ao Eça. E se calhar nunca saímos de lá…

Quem é o Conde de Gouvarinho de hoje?

Vejo alguma coisa dele no Manuel Damásio (risos)

E o Conselheiro Acácio?

Talvez o Marcelo Rebelo de Sousa… Mas não me peçam para fazer mais paralelos, porque, por pudor, não sou capaz de responder…

“Um Ponto de Viragem na Telenovela”, copyright Público (www.publico.pt), 23/02/03

“Creio que Lusitana Paixão é um ponto de viragem na telenovela portuguesa, como o foi Chuva na Areia, na qual a ?realidade? política da passagem do salazarismo para o marcelismo era explanada com distinta acuidade, e um melancólico cepticismo. Nesta, a de agora, ?inspirada? no universo de Eça de Queirós, é posta em causa a falsa mobilidade da superstrutura, reclamando-se a narrativa de um mimetismo de linguagem que aumenta uma especial sociologia do lugar. A ?montagem? queirosiana surpreende, por belamente arriscada e significativamente conseguida. Chuva na Areia possuía dois trunfos adicionais: o texto de Luís de Sttau Monteiro e a soberba realização de Nuno Teixeira; Lusitana Paixão, na sua forma de colocar questões, faz enaltecer o trabalho de Francisco Moita Flores, claramente interessado em interpelar o ?destino? português, e traz a marca d?água de um realizador de grande talento, Jorge Paixão da Costa.

Moita Flores recusou a facilidade da caricatura, pecha em que tropeçam e caem aqueles dos quais reduzem a grandeza do romancista às reverberações da ironia. E a transferência dos ?tempos? é feita com extrema destreza e habilidade. Num certo sentido, a ?imitação? do mundo queirosiano ratifica uma associação entre a matéria ficta e a realidade a que Moita Flores procedeu, logo desde os seus primeiros trabalhos no género. Manifesta-se uma ?designação? intelectual que contraria, e até combate, a frivolidade de quase todas as telenovelas portuguesas, e de alguns equívocos que elas provocam. Moita Flores não pisa as areias movediças desses territórios. O seu projecto cultural (digamo-lo, sem receio da palavra) é outro, e baseia-se na consideração por si próprio e no respeito pelos outros, neste caso os telespectadores.

Lusitana Paixão não pretende ser testemunho ou requisitório. Deseja, antes de tudo, ?mostrar? as nossas instâncias nacionais, aquilo que nos define como portugueses: um certo ridículo, um certo fatalismo, e as características perversas de um sistema que nos moldou ao longo de séculos de servidão e de resignação. A feira cabisbaixa de que falava O?Neill, ou a ?loca infecta? do Sena.

Subjacente ao texto novelístico reside a confortável maestria de quem lê e sabe ler com mão diurna e mão nocturna, e uma realização televisiva extremamente ágil, de forma a determinar e a iluminar o conteúdo. Esta ideia é mais larga do que as palavras que a exprimem, porque representa uma passagem, muito significativa, para um outro estádio das telenovelas em Portugal.”

“Será Possível Um 25 de Novembro Cultural?”, copyright Público (www.publico.pt), 23/02/03

“A meio da leitura de Dorian (?O Retrato de Dorian Gray? modernizado por Will Self) e no rescaldo da transfiguração mexicana do ?Crime do Padre Amaro?, aceitei a ?Lusitana Paixão como se aceita a fruta da época?. É obviamente o que está a dar. Trata-se de uma transposição de ?Os Maias?, em que os Maias são Lencastres e o Vilaça é doutor. Nada tenho a comentar sobre o direito da adaptação ou a sua justeza. Fica para apurar, perante o desenrolar da série, se a modernização é compatível com a tensão dramática do original, demasiado dependente de circunstâncias que eram verosímeis em 1880, mas que hoje talvez o sejam menos.

De resto, uma hora passada a ver algumas cenas foi pouco menos do que uma revelação. Os personagens, as conversas, os episódios lembraram-me menos ?Os Maias? do que as outras experiências portuguesas de telenovela, desde a remota Vila Faia. Não me tinha ocorrido antes que ?Os Maias? pudessem ser vistos como o guião original dos folhetins televisivos portugueses, essas variações mais ou menos habilidosas sobre o tema do acesso à cidade de uma grande família rural e do conflito entre gerações. Mas é natural. Creio que foi Jorge de Sena quem disse que não havia em Portugal grandes romances urbanos. Eça era uma das excepções. Não existia, de facto, muito mais por onde escolher. Durante a maior parte do século XX, o génio novelístico dos portugueses esgotou-se bastante numa exploração convencionalmente exótica ou miserabilista da vida no campo. Quem se atreveria, hoje, a fazer uma série de cem episódios baseada no bucolismo negativo dos ?Gaibéus?, do ?Cerromaior? ou da ?Casa da Malta?? O país mudou demasiado para permitir que levássemos a sério histórias de malteses e ganhões com fins de crítica social. Teve de ser ir aos ?Maias?: esta série pode ser vista assim como a homenagem de um género televisivo às suas origens literárias.

Vai ser muito curioso ver as reacções a este folhetim. Não me refiro aos comentários da tribo queirosiana. Refiro-me ao público. Portugal só se democratizou culturalmente na década de 1990: foi quando a velha elite político-literata perdeu a capacidade de impedir o povo de influenciar o conteúdo e o estilo dos grandes meios de comunicação. O Big Brother foi o 25 de Abril da cultura portuguesa, deixando a velha elite, que se diz de esquerda mas foi ainda criada dentro das hierarquias salazaristas, num permanente estado de choque. Pelo formato telenovelesco, este exercício de adaptação queirosiana quer-se popular. É verdade que o público está habituado a este género televisivo. Mas como reagirá ao ?original?, embora modernizado? Haverá subitamente uma redenção literária da nação, uma corrida colectiva à leitura dos ?Maias?, fazendo de Portugal um liceu em véspera de exames? Será possível um 25 de Novembro cultural? Ou vai o público encarar a série como mais uma telenovela, em que a origem queirosiana é irrelevante?

Há mais em jogo. Não cheguei a perceber se o objectivo desta série é o moralismo naturalista (o ferro em brasa nas chagas sociais), ou simplesmente contar uma boa história. No primeiro caso, é preciso recordar que Eça de Queirós partia da antiga cultura masculina de café: esta era dominada por gente que não escrevia nem mandava, e que passava o tempo a dizer mal daqueles que escreviam e mandavam. Foi assim que se criou a lenda piedosa de que, em Portugal, somos todos mais inteligentes do que os supostos Condes de Abranhos e Conselheiros Acácios que exercem o poder. Tem sido esta, secularmente, a base daquilo que se chamou a ?crítica social? em Portugal. Se a série escapasse a esse antigo moralismo, seria de facto um acontecimento. Mas a quem interessaria uma telenovela que nos obrigasse a encararmo-nos a nós próprios, em vez de, mais uma vez, nos rirmos do Conde de Abranhos?”