Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Carlos Eduardo Lins da Silva

COBERTURA DE GUERRA

“O show de George W. Bush”, copyright Valor Econômico, 29/03/03

“A invasão do Iraque pelas forças militares anglo-americanas ocorre num período em que a programação televisiva em quase todo o mundo é dominada pela onda de ?reality shows? antecipada pelo filme ?O Show de Truman?, de Peter Weir (1998). Assim, não surpreende que o maior sucesso da cobertura jornalística da segunda guerra do Golfo Pérsico sejam as transmissões ao vivo feitas por videofone, um aparelho que pesa oito quilos e cabe numa valise de mão comum, por jornalistas que acompanham as tropas dos Estados Unidos num tipo novo de relacionamento entre as Forças Armadas do país e a imprensa.

O sistema é chamado em inglês de ?embedding? com as tropas (que significa literalmente incrustação, mas vem sendo traduzido como ?estar na cama? com determinadas unidades militares). Cerca de 600 repórteres – muitos deles equipados com videofones – acompanham os soldados como se fossem um deles: dormem nas mesmas tendas, comem as mesmas rações, expõem-se aos mesmos riscos. A idéia foi patrocinada com entusiasmo pelo secretário da Defesa americano, Donald Rumsfeld. Os objetivos são pelo menos dois: aumentar as chances de gerar noticiário simpático ao Pentágono e usar o jornalismo como instrumento de pressão psicológica sobre o inimigo. Ela inaugura um novo capítulo na longa e quase sempre litigiosa história do correspondente de guerra, que se iniciou na Criméia, em meados do século XIX.

Como Phillip Knightley relatou extensivamente numa obra já clássica dos estudos de jornalismo (?A Primeira Vítima?), quase sempre a verdade é sacrificada nos campos de batalha. Os militares, por diversos métodos de coerção ou convencimento, e o sentimento de patriotismo em geral produzem informações que depois se revelam exageradas, distorcidas ou mentirosas. A grande exceção talvez tenha sido a Guerra do Vietnã na fase final do envolvimento americano. Quando a opinião pública mundial foi pega absolutamente de surpresa com as notícias da ofensiva do Tet, em 31 de janeiro de 1968, no momento em que os guerrilheiros vietcongs tomaram a capital do Vietnã do Sul de assalto e chegaram até aos jardins da Embaixada dos Estados Unidos em Saigon, ela se deu conta de que os relatos jornalísticos baseados apenas em informações do comando militar eram falsas.

A reação da maioria dos correspondentes de guerra foi partir para a busca independente de fontes para seus despachos. Estabeleceu-se uma situação de desconfiança recíproca entre militares e jornalistas, que deu o parâmetro dos regulamentos que o Pentágono adotaria para a atuação da imprensa no futuro.

Esse clima de animosidade chegou ao ápice na Guerra do Golfo, em 1991, quando o acesso jornalístico às frentes de combate foi simplesmente eliminado. Surgiu a figura dos ?guerreiros de hotel?, os correspondentes que ficavam confinados a hotéis em grandes cidades, onde recebiam apenas ?briefings? dos comandantes militares sem poder checar sua veracidade no campo. Agora, Rumsfeld inverte a equação, com resultados até aqui considerados satisfatórios por ele. Os jornalistas têm completo acesso aos acontecimentos e podem transmiti-los ao vivo aos seus espectadores, com grau de realismo comparável ao de programas do tipo ?Big Brother?.

Eles têm respondido à oferta de Rumsfeld como previsto pelo secretário: engajaram-se na causa dos soldados, narram os fatos na primeira pessoa do plural, o que desnuda sua completa integração com as tropas, passam ao público a duvidosa aparência de que retratam a realidade crua. O outro objetivo de Rumsfeld era usar os meios de comunicação para ter uma linha direta com os inimigos e assustá-los. Toda a estratégia americana para a operação ?Liberdade no Iraque? parece ter tido como um dos eixos a presunção de que, fora do círculo mais diretamente ligado a Saddam Hussein e sua família, todos os iraquianos apenas esperavam a oportunidade, que lhes seria concedida pelos invasores, para se livrar depressa do tirano.

Assim que soubessem que os anglo-americanos avançavam sobre Bagdá, os iraquianos – de acordo com este raciocínio -, inclusive diversos escalões da hierarquia militar, tratariam de desobedecer ordens, se render ou até ajudar a liquidar o alto comando do ditador. Provavelmente por isso, até nos discursos do presidente George W. Bush e Donald Rumsfeld nos primeiros dias do conflito, sempre havia uma parte dedicada a mensagens diretas para autoridades militares do Iraque.

Ao fim da primeira semana da guerra, no entanto, há motivos para suspeitar de que as hipóteses de baixa disposição para resistir à invasão por parte dos iraquianos podiam estar erradas. Mesmo que elas estivessem equivocadas, porém, ainda estaria aberta a avaliação dos efeitos do uso dos meios de comunicação como meio de atemorizar o inimigo e a população civil do país invadido e convencê-los a cooperar. Ao contrário do que fizeram na Guerra do Golfo, os americanos resolveram inclusive poupar os sistemas de transmissão de TV no Iraque de modo a permitir aos iraquianos se informarem sobre as batalhas.

Essa atitude dos Estados Unidos não foi a única novidade nessa cobertura de guerra. Outra é a multiplicidade de fontes de informação para o público americano e de outras nacionalidades. Na Guerra do Golfo, só havia uma rede mundial de notícias na TV, a CNN. O monopólio acabou. Agora, as informações americanas podem ser contrastadas pelas redes européias e até pelas árabes, entre as quais a Al-Jazeera se destaca como alternativa. Nos próprios EUA, a primazia da CNN é disputada pela MSNBC e principalmente pela Fox News, esta agindo como um verdadeiro braço de comunicação do governo de W. Bush.

Essa diversidade, ampliada pela também inédita importância da internet como fonte de informação sobre as atividades bélicas, torna quase irrelevantes as tentativas de censura que os comandos militares pretendessem exercer sobre os jornalistas. Por exemplo: quando no fim-de-semana passado surgiram as imagens dos primeiros americanos mortos e feitos prisioneiros, o Pentágono fez um apelo aos meios de comunicação americanos para que não as divulgassem, e foi atendido. Mas, além da Al-Jazeera, que pode ser captada por satélite por americanos (embora poucos o façam), a BBC, a DW, a Telemundo, RTP, RAI, RTF e diversos sites da internet não seguiram a orientação do Departamento de Defesa. No final, os parentes das vítimas foram informadas e procuraram os meios de comunicação de maior audiência para contar sua história, que acabou chegando ao público, ainda que atrasada e com menos impacto emocional.

O que Rumsfeld e seus falcões menos desejam é que as salas de estar das casas americanas voltem a ser invadidas por imagens de jovens do seu país despedaçados, como ocorreu na década de 1970. Foram aquelas cenas que ajudaram a inverter a opinião da maioria do país em relação à política no Vietnã. Desta vez, o apoio à posição de Bush no Iraque não é tão irrestrito como era o endosso a Lyndon Johnson no início da grande participação americana no conflito do Vietnã. E talvez uma mudança possa ocorrer ainda mais rapidamente se os correspondentes incrustados nas tropas começarem a transmitir – ainda que nas imagens entrecortadas dos videofones – eventuais desastres com os soldados americanos.”

 

“?Corações e Mentes? e a guerra da informação”, copyright Folha de S. Paulo, 29/03/03

“Até começar a guerra no Iraque, tinha a impressão de que a CNN era o que podia haver de pior na televisão segmentada. Uma espécie de MTV da notícia, em que assuntos graves são tratados rapidamente, a partir de um ponto de vista ideológico claramente demarcado. Globalização da informação, campo sem contracampo.

A cobertura do conflito não tem ajudado a alterar essa percepção. Os gráficos da emissora retomam, em letras garrafais, a terminologia oficial do Pentágono: ?Operação Liberação do Iraque?. Como em um filme B, os iraquianos são muitas vezes apelidados de ?The bad guys?, ?os maus?. Alguns correspondentes da emissora, como W. Rodgers, fazem Galvão Bueno parecer um comentarista comedido. A bordo do 7? regimento de Cavalaria, Rodgers solta pérolas como essa: ?Este é o maior movimento de tanques da história, e está prestes a nocautear Bagdá?…

Na terça à noite, em um comovente exercício de auto-referência, a rede comparou as imagens desta guerra com outras usadas em conflitos armados ao longo do século passado. ?A diferença é que as novas tecnologias trazem a guerra ao vivo, no conforto do seu lar?, ouviu-se.

Foi, certamente, um momento de extraordinária candura: as dezenas de câmeras que acompanham as forças armadas norte-americanas, dos tanques aos porta-aviões, transmitem a estranha sensação de que o fenômeno dos ?reality shows? chegou ao seu máximo ponto de expressão. Como se fosse uma guerra virtual, que pode ser acompanhada a qualquer hora do dia ou da noite na telinha.

Zapeando de um canal a outro durante essa semana, descobre-se que há coisa ainda pior no ar do que a CNN, como a Fox News e a MSNBC. Na Fox, comentaristas vociferantes comemoram o avanço das tropas norte-americanas como se fizessem parte de uma torcida organizada de futebol. Na MSNBC, os soldados são chamados de ?os bravos? e as vítimas norte-americanas, de ?heróis que tombaram?. Um clipe patriótico e recorrente termina com soldados norte-americanos abraçando criancinhas iraquianas, acompanhados do slogan ?Longe de casa, perto dos nossos corações?. Vítimas civis iraquianas são raramente focalizadas. E quando a rede Al Jazeera o faz, as redes norte-americanas reclamam em coro, em perfeita sincronicidade com Donald Rumsfeld.

?A cobertura das redes norte-americanas de TV ajudou a nos levar a essa guerra?, disseram vários analistas independentes ao ?New York Times?, no sábado passado. As televisões não questionaram as supostas ligações que a administração Bush fez entre Saddam Hussein e a Al Qaeda. Resultado: pesquisas recentes apontam que 50% dos norte-americanos pensam que Saddam estava diretamente envolvido nos ataques de 11 de setembro, e que vários dos terroristas eram iraquianos.

Nesse contexto de manipulação da informação, o lançamento recente do DVD de ?Corações e Mentes?,o documentário antiguerra mais emblemático dos últimos 30 anos, levanta questões bastante pertinentes neste momento. Dirigido por Peter Davis, ?Corações e Mentes? disseca a participação norte-americana na Guerra do Vietnã. Foi lançado em 1974, um ano depois dos EUA baterem em retirada de Saigon, e um ano antes dos norte-vietnamitas ganharem a guerra.

?Corações e Mentes? parte de uma pergunta que poderia ser repetida hoje: o que os norte-americanos foram fazer, realmente, no Vietnã? Os depoimentos que abrem o filme dão pistas que podem nos levar ao… Iraque. O presidente Truman lembra que ?a nossa visão de progresso não se limita ao nosso país. Nós a estendemos a todos os países do mundo?. Já o secretário de Estado Foster Dulles revela que a perda da Indochina equivaleria à perda de importantes reservas de tungstênio. E Nixon, como Bush, assegura que, ?no Vietnã, os Estados Unidos estão agindo com um comedimento nos ataques sem precedentes numa guerra?.

As imagens que ?Corações e Mentes? mostra da população civil vietnamita vitimada pelo napalm nos fazem recordar quem efetivamente utilizou, em um passado recente, armas químicas de destruição em massa. Vendo essas imagens, a pergunta indignada de um velho vietnamita, feita no final do filme, ganha toda sua dimensão: ?Que tipo de liberdade vocês querem nos oferecer??.

Na época em que foi lançado, ?Corações e Mentes? foi criticado por pintar o conflito entre os defensores da guerra e os pacifistas de forma redutora. A releitura que se torna agora possível é amplamente favorável ao filme de Davis. Não somente pela forma em que mergulha no drama do Vietnã, mas pela luz que projeta no presente.

?Se foi possível fazer esse filme, foi porque eu me interessei pelo efeito das ações, enquanto as redes de TV só queriam saber de ação. O apetite das TVs pelo que era imediato e espetacular era insaciável?, diz Davis. O Iraque não é, certamente, o Vietnã. Mas, em alguns momentos, a história parece querer se repetir.

P.S.: Talvez seja sintomático que, em um ano como este, ?Chicago? tenha ganho o Oscar. Afinal, o filme fala de uma jovem mulher que, graças à manipulação da mídia e do público, consegue escapar de um crime que ela efetivamente cometeu.”

“Indignação e insanidade”, copyright Jornal do Brasil, 29/03/03

“Os Últimos Dias da Humanidade foi o nome que Karl Kraus escolheu para o monumental painel cênico escrito em 1915 como protesto contra a loucura que levou à Primeira Guerra Mundial. Satirista, iconoclasta, crítico da mídia, filólogo performático, o contraditório Kraus foi um dos expoentes da cultura vienense da primeira metade do século XX. No prólogo, o narrador explica que a peça é sua confissão de culpa, culpa por fazer parte da humanidade demente, entregue ao ódio, incapaz de refletir, de ser humana.

Embora rebelde e marginal, Kraus não distinguiu-se do punhado de intelectuais que levantaram suas vozes contra a catástrofe iminente. O primeiro movimento pacifista organizado de que se tem notícia, ao contrário dos sucessores mais recentes, era rigorosamente neutro, apolítico, contra todos os beligerantes, sem preferências ocultas ou explícitas.

Opunha-se à violência, todas as violências, pressentia no nacionalismo e patriotismo as sementes do fanatismo que compromete o senso moral e deforma o espírito. Razão pela qual aqueles intelectuais pacifistas foram posteriormente reconhecidos como representantes do humanismo moderno. Inclusive o próprio Kraus, que hoje detestaria a companhia em que os pósteros o colocam.

Os últimos dias da condição humana podem ser os de agora. As fúrias estão soltas, os falcões e a rapinagem estão em toda parte e não apenas no Pentágono e na Casa Branca. A incapacidade de sobrepor-se ao rancor parece igualar os campos adversários. A guerra foi concebida e deflagrada pela prepotência estúpida mas está sendo aproveitada pela estratégia da irracionalidade.

Apavorados estão os civis de Bagdá e Basra com o espectro da morte, mas apavorados também estão os civis espalhados pelo mundo que recusam o vale-tudo que nivela por baixo qualquer esforço individuante, humanizador, e sequer deixa espaço para sensações solidárias.

Quando o Nobel de Literatura Romain Rolland antecipou-se aos demais pacifistas, inclusive Kraus, e proclamou o mote Au dessus de la mêlée, Acima da Confusão (surpreendente best-seller na belicosa França), apelava para as consciências individuais atordoadas pela exaltação coletiva. Seus compatriotas o acusavam de traidor, os adversários desprezaram-no como covarde, não teve medo de ficar sozinho na terra de ninguém e não vacilou ao escrever, em seguida, L?Un contre Tous, Um Contra Todos. Sua absurda coragem não apenas animou a minoria pacifista durante o conflito como forneceu nas duas décadas seguintes a matéria-prima para uma das fases de ouro da literatura mundial.

Que socialites promovam o boicote da Coca-Cola e ?imortais? reduzam a cultura americana aos filmes de faroeste não chega a assustar, são manifestações da cultura de massas anti-EUA made-in-USA. Exemplos do marketing da indignação que não deixa espaço sequer para a percepção do desmoronar do colosso americano, que começou a ruir com a ?eleição? de George W. Bush.

Menos divertido, perturbador, foi o discurso na última quarta-feira no Senado da República em Brasília, proferido por um parlamentar experiente, intelectualmente qualificado, ideologicamente coerente, democrata, homem bravo, figura decente, legítimo representante de um dos Estados mais sofisticados da Federação. O senador Roberto Saturnino, do PT do Rio, pediu a palavra para inicialmente condenar a incursão americana ao Iraque, depois fez uma candente defesa da ONU e das soluções multilaterais para resolver os litígios internacionais. E, para encerrar, por falta de um fecho suficientemente dramático, lançou o seguinte desafio: se a ONU não for revigorada, se continuar prevalecendo a tese da força bruta, deve o Brasil repensar a sua posição no tocante ao Tratado de Não Proliferação.

?Se o argumento é só a força, se não vale mais o Direito, se não vale a lei internacional, se não valem os organismos internacionais, se valem a força e o poder militar, então todos os países terão obrigação de se armar, melhorar suas posição militar em relação aos demais países do mundo… Se passa a imperar a força bruta cínica, é bom que adquiramos também, como nação, uma força que, pelo menos, tenha um caráter dissuasório, fabricando o que já podemos (fabricar)…?

?…Não há por que ficarmos respeitando um Tratado de Não Proliferação quando o que prolifera é a força das armas, da força bruta… Se os parâmetros agora são outros, não há por que ficarmos presos a um compromisso que tinha outros pressupostos da legitimidade, do respeito à ONU, do respeito aos tratados internacionais. Se isso não vale, teremos que repensar nossa posição… Se voltar a prevalecer o espírito da legitimidade internacional, continuaremos na nossa linha humanística etc. etc.?

Quando candidato nas últimas eleições, o presidente Lula da Silva fez declarações interpretadas como uma promessa de rompimento do mesmo Tratado de Não Proliferação Nuclear e desmentida peremptoriamente pelos assessores. Esse desmentido é para nós a posição do governo e interpreta o sentimento dos brasileiros verdadeiramente internacionalistas. Se a ONU foi violentada, não podemos violentá-la com ameaças que, além de tornar tenso o clima internacional, põem em risco nossa convivência com os vizinhos.

A cólera esconde a capacidade de enxergar a aproximação das tragédias. Os últimos dias da humanidade, disse Kraus e disseram os profetas, serão dias de ira.”