COBERTURA DE GUERRA
“Guerra e imprensa: uma relação difícil”, copyright Comunique-se (www.comuniquese.com.br), 30/04/03
“O filme norte-americano ?Fomos Heróis? (?We Were Soldiers?, título original), produzido em 2002, sob a direção de Randall Walace, com Mel Gibson, Madeleine Stowe, Sam Elliot, Greg Kinnem e outros, é mais uma película de guerra – tão comum na cinematografia ianque. Sua história é simples.
Em plena Guerra do Vietnã, no ano de 1965, o tenente-coronel Hal Moore (Mel Gibson) é designado para chefiar o 7? Regimento de Cavalaria, o mesmo que foi comandado pelo general George A. Custer, morto, junto com todos seus soldados, na batalha de ?Little Bighorn?, em 1876, pelos guerreiros da tribo Lakota, sob a liderança do chefe Sitting Bull (Touro Sentado). Moore transforma o regimento de cavalaria em uma tropa aero-transportada, usando helicópteros para levar rapidamente os soldados para o campo de batalha.
Numa ação para ocupar uma colina, perto da fronteira do Camboja, ele e mais de 400 soldados do regimento são cercados por quase 3.000 combatentes vietnamitas. A batalha que acontece neste local é uma das mais sangrentas da história militar ianque, fazendo com que o lugar passasse a ser conhecido como ?Vale da Morte?.
Durante os combates aparece um personagem importante na história. É um repórter fotográfico norte-americano, que consegue chegar à frente de batalha num dos helicópteros do regimento. Passa então, a registrar os horrores dos sangrentos combates entre os dois exércitos. A mortalidade é muito alta em ambos os lados. Moore e seus soldados são muito ligados emocionalmente e isso fica claro desde o início do filme. Ele se sente responsável por todos seus comandados e se recusa a deixar o campo de batalha em vários momentos, mesmo quando é ordenado que o faça por seus superiores. Essa relação emocional acaba se estabelecendo, também, entre o jornalista e o coronel.
Num determinado momento da história, o repórter larga as camêras fotográficas e pega um M 16, arma dos soldados ianques. Participa de um violento combate, atira e mata vietcongues. Depois, larga o rifle, retoma os equipamentos fotográficos e volta a registrar o sofrimento e agonia dos soldados ianques. No final da película, dois momentos importantes: depois da batalha final, onde se vê uma pilha de corpos vietnamitas, Moore, totalmente abalado e chorando, pede ao jornalista que escreva o que havia acontecido naquela batalha para que o povo norte-americano fique sabendo dos fatos; depois, na cena derradeira, narrando em ?off?, o comandante deixa claro que os soldados não lutaram ou morreram pelos EUA, mas sim por eles mesmos. A última cena é o jornalista tentando escrever a história numa máquina, visivelmente emocionado, e não conseguindo o intento. O final fica em aberto.
Da ficção para a realidade, o conhecido fotógrafo Robert Capa, nascido em 1913, na Hungria, como André Friedmann, ficou famoso por suas coberturas fotográficas de muitas guerras em que participou como repórter. Desde a Guerra Civil Espanhola (1936/1939), passando pela Segunda Guerra Mundial (1939/1945), Capa teve intensa participação nesses momentos cruciais da história do Homem. Atuou, muitas vezes, como repórter incorporado às forças armadas e foi assim que morreu, em 1954, na Guerra da Indochina – Vietnã, ao lado das tropas francesas. Morreu trabalhando, registrando a bestialidade da guerra.
Tanto Capa, na vida real, quanto o fotógrafo da ficção, acabam se envolvendo emocionalmente com o trabalho, com o objetivo de registrar os fatos como eles são. Claro que comparar um personagem fictício com uma pessoa de verdade não dá bom resultado. E nem é essa a intenção. Acontece que, para ilustrar um pouco o tema proposto – a relação entre a guerra e a imprensa – essas duas situações opostas servem de apoio para tentar explicar um pouco mais a parcialidade da cobertura jornalística ianque e inglesa, na recente invasão do Iraque.
Nessa invasão houve, a grosso modo, duas categorias de jornalistas e de coberturas realizadas pela mídia internacional. Os jornalistas ?embutidos? (embedded), que faziam parte das tropas, acompanhando de perto os combates e os avanços dos exércitos ianques e ingleses; e os jornalistas independentes, que, a serviço de vários veículos da mídia mundial, ficaram em Bagdá ou no Kuwait. Esses profissionais não tinham acesso direto ao que estava acontecendo. Os que atuaram em Bagdá estavam por sua conta e risco. A morte de 13 jornalistas neste conflito dá a dimensão dos riscos que enfrentaram. Os ?embutidos? tiveram de assinar um acordo com os governos norte-americano e britânico de só divulgarem informações permitidas. Os outros atuavam normalmente, livres deste tipo de situação, mas não de serem mortos.
O que se viu foram dois tipos de cobertura do conflito. Os ?embedded? – jornalistas ianques e ingleses – fazendo uma cobertura com uma boa dose de ?torcida? para o sucesso das tropas da coalizão anglo-americana – mais propaganda do que jornalismo. E os outros repórteres, inclusive alguns ingleses, procurando mostrar os fatos, narrando o que estava acontecendo, com alguma análise dos acontecimentos. Em suma, prevalecendo a lógica da cobertura, da reportagem.
A diferença entre as duas formas de cobrir jornalisticamente um fato ficou muito evidente. Guardadas as proporções, é a mesma situação entre o repórter fotográfico do filme ?Fomos Heróis? e o que Robert Capa fez na sua vida de jornalista. O da ficção, que se auto-incorporou ao regimento de Moore, acaba se envolvendo com a situação, com os soldados, com o comandante do regimento, misturando, em determinado momento, o papel de repórter e o de soldado. Pega uma arma e participa do combate.
Esse dilema já tinha sido mostrado num outro filme, ?Sob Fogo Cruzado?, passado na Nicarágua, quando o exército Sandinista estava tomando a capital Manágua. O ator Nick Nolte, também representando um repórter fotográfico, numa cena de batalha, onde um guerrilheiro é morto por um soldado somozista – Somoza, ditador da Nicarágua – na dúvida entre carregar a máquina fotográfica e um rifle para se proteger, acaba ficando com o equipamento fotográfico.
Há, claramente, na figura do repórter-soldado, no filme ?Fomos Heróis?, a opção em participar junto com os soldados do regimento na luta contra os vietcongues. Essa escolha interfere na função de jornalista, no trabalho de colher informações, mostrar os fatos como eles são realmente? Como é uma obra de ficção, essa questão fica em aberto. Robert Capa, mesmo incorporado aos exércitos – coisa comum na época – por onde passou e atuou, sempre foi um fotógrafo, um jornalista. Nunca um soldado.
Uma informação adicional sobre Capa. Há quem duvide da veracidade da sua mais famosa foto de guerra, onde um combatente republicano espanhol recebe um tiro, na Guerra Civil. Fala-se que essa foto teria sido arrumada por Capa ou que o soldado teria escorregado, dando a impressão de ter sido atingido por um disparo.
Os jornalistas ?embutidos? não foram soldados. Até onde se saiba, não pegaram em armas. Só que suas coberturas jornalísticas foram parciais, serviram mais como propaganda do que como informação, respeitaram demais o acordo firmado com as forças armadas na íntegra. Além disso, ao atuarem tão próximos das forças armadas, com um convívio total – sempre junto, acompanhando os avanços e as batalhas – acabaram por desenvolver uma relação emocional – amizade etc. – com os combatentes. Porque não? Afinal, eram norte-americanos ao lado do exército ianque ou ingleses junto às forças britânicas. Muita coisa em comum. Mesma pátria, mesmos valores, língua, gostos etc. Agora, terminada a invasão, espera-se que algum repórter ?embutido?, relate o que de fato aconteceu nesse conflito.
Fica difícil, se não quase impossível, manter um distanciamento crítico, se não houver uma grande firmeza de posição e de caráter do jornalista ?embutido? ou ?incorporado?. A ética e a responsabilidade profissional e social do repórter, numa situação dessa, é a sua principal arma contra a hipocrisia, a mentira e a propaganda. Há momentos especiais, como foi a Segunda Guerra Mundial, onde se lutava contra o nazismo. Naquela situação, seria muito difícil para algum jornalista ?incorporado? aos aliados trabalhar contra eles. Havia um forte motivo para a luta, um apelo ideológico muito pesado naquela guerra e isso, com certeza, pesou muito para que grande parte das coberturas jornalísticas nesse período tivesse, como tiveram, um forte viés propagandístico. A Segunda Guerra Mundial não foi um conflito localizado ou uma invasão como a do Iraque.
Sob a justificativa de respeitar o acordo assinado, os jornalistas ?embutidos? e os veículos de mídia ajudaram a diminuir a credibilidade que a imprensa mundial vem conseguindo nessas últimas décadas. Ou se faz propaganda – e se for isso, tudo bem, desde que fique claro – ou se faz jornalismo. As duas coisas juntas é impossível, principalmente se o objetivo for uma imprensa livre, ética e responsável socialmente.”
“Que matem também a reportagem”, copyright Comunique-se (www.comuniquese.com.br), 30/04/03
“?Li os Aforismos de Schopenhauer e tentei ler Kant. Faltavam-me todos os pré-requisitos para a compreensão de A crítica da razão pura. Alguns colegas falavam muito sobre esse livro, e fiquei constrangido por não tê-lo entendido. Mais tarde descobri que eles também não entendiam e só estavam se gabando. (…) A inteligência pela inteligência, ser capaz de conversar com sagacidade, de desenvolver idéias e de filosofar sobre os pensamentos de outros eram alguns dos atributos essenciais de uma pessoa que pensava ser alguém. Admito que não estava à altura, embora não fosse burro?. Wilhelm Reich (1897-1957), psicólogo austríaco, em ?Paixão de Juventude–Uma autobiografia, 1897-1922?, Editora Brasiliense (1996, 1a edição, p. 80.).
O trecho acima pousou-me sobre a cabeça; de pára-quedas, suponho. Eu acabara de ler uma notícia da Reuters sobre o declínio da audiência dos telejornais americanos, depois de três semanas ininterruptas de cobertura da invasão do Iraque.
Que correlação poderá haver entre as palavras do sexólogo e uma reportagem da agência britânica? Vamos tecer a trama.
O informe da Reuters aponta uma queda nos índices de audiência no horário nobre das redes de tevê a cabo Fox News Channel, CNN e MSNBC e nos jornais noturnos das três maiores redes de tevê aberta do país – as ?Big Three? ABC, CBS e NBC. O estudo conclui por uma involução da audiência, entre a primeira e a terceira semana da cobertura. Adiante, temos a explicação do diretor do Centro de Estudo da Televisão Popular da Universidade de Syracuse, Robert Thompson: a inexistência de ?surpresas? durante o avançar das tropas invasoras.
A Reuters acrescenta: ?Essas quedas de audiência acontecem num momento em que jornalistas têm acesso inusitado às zonas de combate, graças à reportagem em tempo real feita desde as linhas de frente por equipes de jornalistas ?implantados? em unidades de combate norte-americanas no Iraque?.
No que tange ao jornalismo, o desinteresse gradativo do público dá relevo a um fenômeno que se defronta, petulante, com um dos sacros pilares de nossa profissão: a reportagem e toda a sua miríade de conceitos – da gênese ao seu arco infinito de conseqüências; da técnica à máxima televisiva de que, entre a palavra e a imagem, deve-se priorizar a imagem (contanto que se disponha das informações básicas sobre o fato em evidência).
Uma parcela avultada do público americano, curtida na aguardente de todas as guerras, tomou da bacia e triou o que lhe convinha triar: a vitória. Nada mais poderia interessar – nem mesmo os seus próprios soldados, nem mesmo o que os Estados Unidos viriam a fazer dali em diante. O ?serviço? patriótico tinha sido feito. Debalde o esforço de repórteres in loco. O patriotismo matou a reportagem. ?Preciso de um resultado?, dirá um desses telespectadores, antes da guerra. ?O que eu tinha de saber eu já sei?, concluirá, definida a vitória. Nada mais. Nenhuma informação, nem ?contra?, nem ?a favor?. Nada. O que será do Iraque? Qual foi o saldo da invasão? O que pensa a população civil? O que restou do patrimônio histórico da humanidade? O que será dos que conseguiram sobreviver? O que será dos ?libertados?? Vitória, responderão.
A ignorância mata a reportagem. Quem precisa? Afluímos para Wilhelm Reich. O ideal da segurança intelectual, da prateleira de informações, do empilhar de dados cerebrais… Tudo isso é, à primeira vista, a contrapartida da insciência. Nem sempre. Leitores, telespectadores, ouvintes, internautas, jornalistas… Todos precisamos da linha da informação, a guiar-nos na direção da verdade – antes, ao apreender de muitas verdades. Será inútil, entretanto, ostentarmos um colar de informações. As contas do colar, cedo ou tarde, envelhecerão. Uma dessas peças nos soprará: ?Não leia, não veja, não ouça, não saiba mais?; outra nos iludirá: ?O colar está bonito. Mostre-o aos outros, temos tudo de que precisamos. Mostre-o, é o suficiente?.
Um estudo do Instituto Paulo Montenegro (Ibope), publicado em Comunique-se, concede-nos uma medida dessa fragilidade (leia Ibope: leitor não entende gráficos): 76% dos entrevistados que completaram o ensino médio (muitos cursam a faculdade) não souberam interpretar um gráfico simples sobre a evolução dos gastos do governo. A maioria, digo eu, continuará sem sabê-lo. Gosta do colar de estimação. Tem diploma e tem ?estudo?. Jacta-se de outras vitórias de antanho – às vezes, de anteontem. O gráfico será dispensável, foi publicado por enfeite. ?O que eu li está bom?. Muitos nem sequer lêem o texto inteiro. Saem, contudo, a discorrer sobre o que não leram. Eles usam um colar formoso. Telespectadores americanos não precisarão de reportagens sobre a guerra; leitores brasileiros viverão faceiros, sem gráficos, nem leitura.
Reich não nos conheceu. Se o houvesse, escreveria um pouco mais.”