QUASE FOLHETIM
"O primeiro romance-reportagem de nossa literatura", copyright Folha de São Paulo, 31/08/01
"Em 1905, começou a aparecer no ?Correio da Manhã?, do Rio de Janeiro, uma série de reportagens romanceadas, bem ao gosto da época, quase um folhetim e certamente um ancestral das telenovelas de hoje. Até certo ponto, nenhuma novidade. Tanto na França como no Brasil, que lhe copiava os modelos, as modas e, em alguns casos, os vícios, o gênero era comum, servindo ao mesmo tempo para dar um algo mais aos jornais e, eventualmente, um livro a mais às livrarias.
?O Guarani?, de José de Alencar, e as ?Memórias de um Sargento de Milícias?, de Manuel Antônio de Almeida, são dois exemplos notáveis, uma vez que fizeram sucesso nas edições efêmeras dos jornais e logo se constituíram em dois clássicos indiscutíveis de nossa literatura.
Naquele início de século 20, o Rio vivia uma fase de agitação urbanística. Tanto o governo federal como a prefeitura da então capital da República promoviam melhoramentos radicais na fisionomia do centro da cidade. O morro do Castelo, local onde o Rio fora fundado, passou a ser considerado um obstáculo à sua modernização. Com o apoio do presidente Rodrigues Alves e a obstinação do prefeito Paulo de Frontin, o morro foi condenado a desaparecer, criando uma esplanada que obviamente se chamou do Castelo, dando à ponta do Calabouço o espaço físico para o aeroporto Santos Dumont, na época o maior e mais utilizado do Brasil.
Um rapaz de 24 anos, mulato, estudante intermitente da Politécnica, com tendências à literatura e ao alcoolismo, começou a escrever um folhetim com um título bastante usual na época e no meio: ?D. Garça ou o que se Passou em Começos do Século 16 nos Subterrâneos dos Padres da Companhia de Jesus, na Cidade de S. Sebastian do Rio de Janeiro, a Mui Heróica, por Ocasião da Primeira Invasão Francesa ao Mando de Duclerc?.
Mais tarde, o folhetim seria conhecido como ?O Subterrâneo do Morro do Castelo?, tal como está sendo reeditado.
Era anônimo por vários motivos. Antes de mais nada, pelo tom de reportagem e de folhetim ao gosto do século 19, no gênero que fizera a glória de Alexandre Dumas, que aproveitava referências históricas como ponto de partida para a ficção desvairada. O leitor de Dumas, Michel Zévaco, Ponson du Terrail e Xavier de Montépin sabia que metade das histórias que lia tinha um fundo verdadeiro, um tênue embrião de verdade. A outra metade não.
Era anônimo, também, porque seu autor não chegava a ser um profissional. Seria o que agora chamamos de frila, ou free lancer, categoria periférica às redações.
A importância de ?O Subterrâneo do Morro do Castelo? cresceu bem mais tarde, quando se identificou o seu autor: Lima Barreto, o mesmo que aproveitaria os dias que passara na redação do ?Correio da Manhã? para escrever um dos nossos clássicos, ?As Recordações de Isaías Caminha?, retrato insuperável das entranhas de um jornal e da vida literária de uma época.
O folhetim fez sucesso, pois esticou na ficção um acontecimento que mexia física e espiritualmente com a cidade. No cenário real da demolição de um morro histórico, corria a lenda de estranhos subterrâneos abertos pelos jesuítas, que ali escondiam gigantescas imagens de ouro. Expulsos de Portugal e de suas colônias pelo marquês de Pombal, os jesuítas não tiveram tempo de levar o tesouro, daí que o subterrâneo do Castelo foi promovido a uma versão tropical da caverna de Ali Babá.
Lima Barreto limitou-se a escrever a reportagem nos padrões então usados e que vigoraram na imprensa brasileira até a modernização dos textos, já nos anos 50, quando foi abandonado o modelo francês e adotadas as regras do jornalismo norte-americano.
Contudo o grande Lima Barreto já está presente: basta a cena em que descreve a sessão mediúnica em que o espírito do marquês de Pombal se manifesta no próprio prefeito Paulo de Frontin. Ou seja, o famoso engenheiro seria uma reencarnação do reconstrutor de Lisboa às avessas: enquanto Pombal construía, Frontin botava abaixo. Nada mais Lima Barreto.
À margem da comprida reportagem cheia de macetes e alusões pontuais, Lima entremeou uma novela rocambolesca, também com fundo histórico. É sabido que Duclerc, que invadiu a cidade em 1710, foi assassinado na prisão, mas por delito cometido na cama de uma de suas amantes. Desse embrião verdadeiro, Lima partiu para uma complicada e deliciosa aventura amorosa entre um ex-nobre que se tornara jesuíta e uma dama que amava o invasor francês.
Em sua notável biografia de Lima Barreto, que pode ser considerada definitiva, Francisco de Assis Barbosa diz que a novela é apenas ?um ensaio de vôo?. Discordo do famoso biógrafo. Antes desse folhetim, Lima já havia iniciado o esboço de ?Clara dos Anjos?. E, logo após, os meses de experiência na redação do ?Correio da Manhã? deram-lhe cenário e personagens para escrever ?Isaías Caminha?.
?O Subterrâneo do Morro do Castelo? ou ?D. Garça…? estão para a obra de Lima Barreto como ?A Tragédia da Rua das Flores? está para ?Os Maias?. É mais do que um anúncio. É o dedo que revela o gigante."