Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Carlos Heitor Cony

GUERRA & BIOTERRORISMO

"Assunto único", copyright Folha de S. Paulo, 21/10/01

"Mal saímos da crise gerada pelo pensamento único, que ainda não se esgotou de todo, passamos para outro tipo de perigo em escala mundial: o assunto único.

Pensar da mesma forma, em torno de meia dúzia de axiomas globalizados, entre outras coisas provocou a onda neoliberal, o culto ao mercado como o novo deus da sociedade.

O assunto único, que predomina na mídia internacional, nas esquinas e bares da vida, está chutando para escanteio alguns atos e fatos que deveriam ser debatidos, combatidos ou explicados por quem de direito.

A greve dos professores das universidade federais, por exemplo, só mereceu destaque no noticiário por causa da vaia recebida pela primeira-dama Ruth Cardoso e pelo ministro da Educação.

A bagunça reinante no setor, salários defasados e aviltantes demonstram que o governo dos intelectuais tucanos em nada difere dos governos ditos fisiológicos do passado. Em alguns casos, consegue ser pior.

Casos e descasos que frequentavam o noticiário foram arquivados pelos atentados de 11 de setembro e seus desdobramentos.

Numa hora dessas, embora dramática para humanidade, não posso esquecer os ossos de Dana de Teffé.

Guardadas as proporções, foi também assunto único durante algum tempo na mídia nacional. Um crime idiota, como todos os crimes, empolgou o noticiário, as conversas em todos os segmentos sociais, nos terreiros da macumba e nos salões do café society da época.

Desconfio de que hoje sou o único a me preocupar com os ossos dela. Na época, até que não dei muita bola para o caso, gosto de remar contra a correnteza, é mais emocionante, embora perigoso.

Daqui a alguns anos, quem se lembrará de Osama bin Laden? Quem se lembra de Idi Amin Dada, de Kadafi, de Khomeini, de Bokassa?

Quem se lembra de Dana de Teffé?"

 

"Censura e terrorismo cultural", copyright Folha de S. Paulo, 20/10/01

"?Meu primo: você pode tremer e mudar de cor, reprimir sua respiração no meio de uma palavra, recomeçar e deter-se ainda, como se estivesse perdido e louco de terror?? (Shakespeare, Ricardo 3?)

O rei tirânico, nessa passagem da peça, ironiza o símile antigo da política enquanto espetáculo teatral. Nela, os dominados exibem apenas terror, intimidados pelo príncipe. Dentre as coisas nauseantes do universo regido por Ricardo 3?, salienta-se a perda completa da palavra autônoma. Todos se calam diante dele e são cúmplices da própria desgraça e da ruína coletiva. Esse ambiente pestífero fornece as cores das teorias políticas que justificam a censura e a repressão da escrita e do pensamento.

Contra ele se insurgiram estadistas e filósofos que definiram a democracia e a liberdade.

Para os defensores da repressão, como Hobbes, as pessoas privadas dependem do arbítrio exercido pelo soberano, o único que pode censurar a vida pública. Spinoza nega isso e afirma que o Estado não supõe a perda dos direitos individuais. Ele identifica soberania e povo, soma de indivíduos livres, o que resulta em limites para os governantes. Estes não teriam direitos acima e além dos cidadãos comuns. O pensador não aceita atenuar a liberdade de escrita.

Convidado para a Universidade de Heidelberg, ele recusou, pois foi-lhe dito, em carta oficial, que o eleitor palatino lhe daria ?ampla liberdade de filosofar, desde que não criticasse a religião estabelecida?. A sua réplica serve para todo universitário honesto: ?Desconheço os limites do meu pensamento e não posso garantir que nunca irei incomodar a religião estabelecida?.

Numa época de choque religioso, como a nossa, a lição spinozana mostra-se estratégica. A propaganda oficial norte-americana alardeia que o terrorismo é ?islâmico?. Na verdade dois fundamentalismos hoje se enfrentam: um se reclama do Alcorão e outro parasita os evangelhos. Entre as crenças, balança o pensamento de quem deve dedicar-se à pesquisa, e não aos slogans das seitas, dentro ou fora do poder estatal.

Se é grave a censura que controla a imprensa mundial, a começar pela americana, pior é o silêncio dos universitários diante do estupro à liberdade de pensamento, arrancada com a chantagem do terrorismo, pela direita dos EUA. Spinoza afirma, no ?Tratado Teológico-Político?, que a censura favorece bandidos e prejudica honestos. O Estado sob censura é o campo do medo e da tristeza, segundo o filósofo. Qualquer regime político, se confisca liberdades, deixa de ser democrático. Lembremos a frase de um pai da nação norte americana: ?Quem joga fora a liberdade essencial para obter uma pequena segurança não merece nem liberdade nem segurança? (Benjamin Franklin, em 1759).

É crime de genocídio, hoje, aceitar em silêncio a censura e a autocensura que ocorre na maior parte da mídia, reduzindo seu papel ao de mera propagandista. Todas as desculpas para o assassinato da informação pública pressagiam desgraças e servilismo inauditos. De certo modo, todos repetimos a experiência descrita por Shakespeare em ?Ricardo 3??, todos, em nossos papéis políticos, parecemos loucos e perdidos pelo terror. A censura na mídia a está matando enquanto forma de pensamento e de pesquisa. A universidade caminha a passos rápidos para aceitar limites à pesquisa e ao debate. Some o direito de busca, de erro, de exame.

Entramos no século 21 sob um dos maiores ataques à razão, feito por terroristas de Estado ou de seitas ?religiosas?. Após o golpe de 1964, feito sob patrocínio dos EUA em nossa terra, ressurgiram a censura, as prisões, a tortura e as violências que desgraçaram o país na ditadura Vargas. Os mesmos personagens, como Filinto Muller (que arrancava confissões aplicando ferros em brasa na pele dos adversários), definiram seu mando soberano. Tudo em nome da ?segurança?. Muitos jornalistas e universitários ficaram silentes diante da barbárie ?cristã e ocidental?. Algumas vozes tiveram coragem e ergueram a voz para protestar. Entre elas, a de Carlos Heitor Cony e a de Tristão de Athayde (o católico Alceu de Amoroso Lima).

Este cunhou a expressão certa para os atos dos militares no poder: ?terrorismo cultural?. Ele era um homem lúcido e honesto, ou melhor, um homem. (Roberto Romano, 55, filósofo, é professor titular de ética e filosofia política na Unicamp)"

 

"Nem Pentágono nem Al Jazeera", copyright Folha de S. Paulo, 20/10/01

"Há uma perigosa confusão no ar e nas páginas da imprensa depois do pedido (ou pressão) do governo Bush para que a mídia censurasse a transmissão de novas ameaças de Osama bin Laden. A atitude da conselheira de Segurança Nacional dos EUA, Condoleezza Rice, estaria pondo em risco a liberdade de imprensa e a credibilidade da cobertura dos fatos no Afeganistão por não permitir o acesso da opinião pública à íntegra das gravações da rede Al Jazeera, do Qatar.

Cuidadosas aspas postas pela nossa imprensa na diplomática reação dos executivos da mídia americana ao pedido do governo Bush deixam a impressão de que instituições da democracia ocidental como o ?New York Times? e o ?Washington Post? estariam prestes a jogar décadas de coragem editorial e independência -inigualáveis em qualquer ?grande imprensa? do mundo- na lixeira da xenofobia e da subserviência política.

O tratamento gráfico e editorial dado à censura americana a Osama bin Laden, em alguns casos, foi curiosamente semelhante ao que a imprensa ocidental costumava dar à mordaça imposta a grandes e famosos dissidentes do nosso tempo como Alexander Soljenitsin, Andrei Sakharov, Salman Rushdie, Nelson Mandela, Lech Walesa e Vaclav Havel.

Não parece importante ressalvar que, em vez de projetos políticos libertários, o censurado Bin Laden tenha a oferecer, nos tais pronunciamentos, apenas o filme antigo do ódio fundamentalista e da propaganda política em forma de ameaça. Não parece também relevante esclarecer que Bin Laden é, no máximo, uma expressão criminosa e oportunista das contradições do mundo globalizado, jamais o melhor intérprete do colossal desafio de enfrentá-las e muito menos o guia genial que vai nos indicar o caminho da justiça e da liberdade.

O equívoco, para usar um exemplo brasileiro, é semelhante ao de achar que o debate sobre a criminalidade e a violência urbana em nosso país depende do ideário político e das políticas públicas que Fernandinho Beira-Mar tenha a oferecer à sociedade.

Em contraposição à sugerida capitulação dos jornais e TVs dos EUA, percebemos uma mal contida torcida da nossa imprensa pela rede de TV Al Jazeera, do Qatar, a única oficialmente autorizada pelo Taleban a transmitir ao vivo do Afeganistão. Não há referência ao fato de que a Al Jazeera -ainda que faça um telejornalismo ousado, se comparado ao oficialismo submisso e mentiroso das emissoras do mundo árabe- tem uma credibilidade equivalente à da ?Hora do Povo?, do nosso MR-8, quando o assunto é Bin Laden ou o Taleban.

A Al Jazeera exibe, sem cortes, todos os sermões de Bin Laden. E exibe na íntegra porque sabe que o público dela, formado basicamente por fundamentalistas e opositores aos monarcas árabes pró-americanos, adora ver e ouvir qualquer ataque aos governos autoritários da região e aos EUA.

Saber se Bin Laden afinal assume ou não a autoria dos atentados do dia 11 de setembro -uma obsessão para nós, do Ocidente- simplesmente não é relevante para eles. Os americanos, a julgar pelo material de propaganda exibido entre um e outro programa jornalístico da emissora, se resumem a um bando de encapuzados da Ku Klux Klan.

Os repórteres da Al Jazeera fizeram bom jornalismo quando entrevistaram e puseram contra a parede o primeiro-ministro britânico, Tony Blair. Pena que não possam usar a exclusividade do acesso ao Taleban para fazer com Bin Laden o que as redes americanas fazem rotineiramente com Bush, o que BBC e ITN fazem há anos com Blair e o que a imprensa brasileira faz todos os dias com FHC e seus ministros.

Não será, portanto, o acesso à cobertura ?independente? da Al Jazeera e à íntegra dos ?pronunciamentos? de Bin Laden que vão garantir uma cobertura completa, precisa, equilibrada e abrangente do que está acontecendo no Afeganistão. Quem espera que a história seja escrita por ?briefings? do Pentágono ou de gravações feitas na escuridão de cavernas afegãs deveria se lembrar de que cobrir uma guerra sempre foi e sempre será tarefa difícil e arriscada, ética, editorial e fisicamente.

Cabe às empresas jornalísticas e a seus profissionais avaliar a estrutura, a logística, os contatos e as doses de coragem pessoal disponíveis para a velha e boa busca de fontes independentes e, no caso, alternativas não apenas aos videogames e fotos de satélite americanas, mas também à cantilena fundamentalista de Bin Laden e de seus hóspedes. Não é uma decisão fácil. O Taleban já avisou que qualquer jornalista encontrado em território afegão sem autorização será tratado como soldado americano.

Enquanto continuamos reféns dos ?briefings? do Pentágono e das ameaças em vídeo de Bin Laden, não custa lembrar que a boa cobertura jornalística, muitas vezes, só depende do profissionalismo de quem a coloca no ar. (Ernesto Rodrigues, 47, é jornalista e professor de telejornalismo da PUC-RJ)"

    
    
                     
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