ZIRALDO
"Tentativa de biografia precoce de Ziraldo", copyright Folha de S. Paulo, 7/12/01
"Nasceu em remoto ano do século passado, em remota região de Minas Gerais, e remotamente foi um rapaz de futuro até que o futuro deu razão ao rapaz e hoje ele é nome de escolas no Uruguai e de bibliotecas espalhadas por remotas terras que o apreciam e que ele também aprecia.
Sua vida pública é mais ou menos sabida pelos brasileiros, por isso mesmo me dispensarei de narrá-la e comentá-la. Fico apenas num episódio igualmente remoto, aliás remotíssimo, que foi a sua colação de grau como datilógrafo da Escola Pratt de Mecanografia de Caratinga, prestigiada instituição na cidade homônima.
O jovem Ziraldo aprendeu a datilografar com os cinco dedos, aliás, com os dez dedos regulamentares. Tirou boas notas e, como disse acima, colou grau em festa cívico-religiosa-cultural-dançante, com direito a paraninfo, missa de ação de graças, baile no principal salão de festas da cidade, foto coletiva dos formandos e orador da turma que, em nome dos demais, prometeu exercer honestamente a função de datilógrafo para o bem da humanidade e fazendo os agradecimentos de praxe aos professores e auxiliares administrativos da Casa Pratt de Caratinga.
Especial menção foi feita aos pais dos ditos formandos, que entre outras coisas pagaram o curso, a festa e a impressão caprichada dos convites numa tipografia local, cujo dono foi também incluído entre os beneméritos da turma porque só cobrou o papel, dando grátis a impressão dos dizeres.
Constituiu um evento importante não apenas na história de Caratinga mas na história do próprio Ziraldo, que, com o diploma de formando em datilografia dentro de um tubo e muitas idéias dentro da cabeça, veio para o Rio e para o sucesso, não em forma de datilógrafo formado pela Casa Pratt, mas de artista em diversos misteres gráficos e não gráficos.
Como outro mineiro ilustre, o vate Drummond de Andrade, que formou-se em farmácia e jamais aviou uma receita ou ganhou um centavo manipulando poções de beladona e codeína, Ziraldo não fez carreira no ofício em que se diplomou. Numa cidade em que todos são mais ou menos humoristas, ele se destacou porque além de humorista, é humanista – o que vem dar na mesma.
Humanista não é, como a palavra parece indicar, um antropófago, comedor de homens, incluindo mulheres e assemelhados. Humanista é um cara que coloca o ser humano no centro de seus interesses pessoais e profissionais.
Muitos são humanistas a partir de si mesmos, mas Ziraldo continua honrando até hoje o juramento que fez no dia de sua formatura da Escola Pratt de Caratinga. Criou personagens de impacto, como a Supermãe e Bonifácio, o Bom. Tem um traço enxuto e moderno, apesar dos coletes que usa, que não chegam a ser modernos porque são eternos, como o citado poeta Drummond desejava para seus versos.
O que vem a ser um colete eterno? Boa pergunta porque não há resposta para ela. O promissor aluno da Escola Pratt de Caratinga fez aquilo que os economistas do governo garantem no final de cada exercício: supera as expectativas. Distraiu adultos, criticou tiranos, elogiou os homens e mulheres de boa vontade, e depois de tudo isso, voltou-se para o menino de Caratinga que fora, antes e durante o curso de datilografia na Escola Pratt, dedicando-se à literatura que alguns chamam de infanto-juvenil e outros de literatura apenas infantil.
Tornou-se recordista de vendas no setor e só não ficou milionário porque a fortuna ganha como escritor mal dá para pagar seus projetos, um deles já em fase final, o relançamento de ?O Pasquim?. No turbilhão de tantas idéias, algumas bem sucedidas, outras nem tanto, o escritor Ziraldo foi relegado a uma pequena obra-prima que espanta a todos os que a conhecem. Um romance, um pequeno grande romance, cujo título é tão estranho como o próprio Ziraldo: ?Vito Grandam – uma história de vôos?.
É o tipo de livro que qualquer autor desejaria ter feito. Tem o mesmo despojamento de traços que marcaram o cartunista, o mais enxuto de nossa molhada paróquia de desenhistas de humor ou sem humor. Não é filosófico como Millôr, nem detalhista como Angeli, nem perfeccionista como Chico Caruso, nem contundente como Paulo Caruso e Aroeira.
É Ziraldo, direto, simples, abrangente. Pinço de seu texto uma frase que poderia servir de epígrafe a uma verdadeira biografia escrita com o rigor histórico do Ruy Castro ou do Fernando Moraes: ?Sei achar ruas quando estou perdido no meio da mata?.
Mais cedo ou mais tarde, alguém escreverá esta biografia. A que ora faço, sendo precoce e falta de engenho e arte, fica apenas naquele rapaz que foi diplomado pela Escola Pratt de Datilografia, em Caratinga, que tirou retrato, ouviu missa de ação de graças e o discurso do orador da turma.
Não sei se ainda existem escolas de datilografia em Caratinga. É possível que com o advento do computador, tudo esteja mudado, sem formatura, sem paraninfo, sem baile, sem missa de ação de graças, sem orador da turma. É uma pena. E justifica a conclusão desta precoce biografia: já não se fazem Ziraldos como antigamente."