Saturday, 28 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Carlos Mello

CÃES DE GUARDA

“Os jornalistas a serviço da ditadura”, copyright Unidade, 02/03

“Está para ser lançado pela editora Bomtempo o livro que, certamente, tomará de assalto as rodas de discussão dentro das redações. É a edição da tese de doutorado da historiadora Beatriz Kushnir, ?Cães de Guarda: Jornalistas e Censores do AI-5 à Constituição de 1988?.

Até agora, a imprensa ignorou por completo o trabalho, fruto de tese já defendida com sucesso no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Beatriz é mestre em História pela Universidade Federal Fluminense e sua tese pesquisou a postura colaboracionista de jornalistas e órgãos de imprensa durante a ditadura militar pós-68.

Em sua tese, Beatriz mostra a estreita relação que houve naquele período entre jornalistas e policiais, como também investiga os estratagemas da direção das empresas de comunicação, ao aceitarem praticar a autocensura, como ?sugeria? o governo militar.

O estudo focaliza a relação dos jornalistas com os censores no Brasil de 1968 a 1988. Ela demonstra, com todas as tintas, a existência de jornalistas que foram censores federais, e que também foram policiais enquanto jornalistas nas redações. Escrevendo nos jornais, ou riscando o que não poderia ser dito ou impresso, colaboraram com o sistema autoritário daquele período. Ela relata: ?Assim como nem todas as redações eram de esquerda, nem todos os jornalistas fizeram do ofício um ato de resistência ao arbítrio?.

Para realizar seu trabalho acadêmico, privilegiou o período do AI-5 à Constituição de 1988. Recuou a março de 64 e à legislação censória no período republicano.

Ela focou sua pesquisa nos jornalistas de formação e atuação, que trocaram as redações pela burocracia e fizeram parte do DCDP (Departamento de Censura de Diversões Públicas), órgão subordinado ao Ministério da Justiça, cargo de Técnicos de Censura. Outro foco da pesquisa foram os policiais de carreira que atuaram como jornalistas, colaborando com o sistema repressivo e censor do pós-64. Para encontrar esse grupo, Beatriz pesquisou a trajetória do jornal Folha da Tarde, do Grupo Folha da Manhã, de 1967 a 1984. Ela teve acesso ao Banco de Dados da Folha, ao DEDOC da Editora Abril, aos arquivos pessoais do jornalista José Silveira (Jornal do Brasil) e da jornalista Ana Maria Machado (Rádio JB). Entrevistou 19 jornalistas que passaram pela FT, onze censores – só dois autorizaram a divulgação de seus nomes, e um grupo de 26 jornalistas, entre eles Bernardo Kucinski, Mino Carta e Jorge Miranda Jordão.

Dez jornalistas, dez censores

A historiadora conta, em uma passagem da tese, que os dez primeiros censores que estiveram em Brasília, quando da mudança da Capital, eram jornalistas. Eram profissionais que foram transferidos para as redações de Brasília e lá acumularam cargos na burocracia do Estado, situação comum à época. Mas eles preferiram ficar com apenas uma atividade. Dez jornalistas optaram pelo trabalho no Departamento de Censura, onde se ganhava mais. Dois deles escreveram um livro explicando aos censores como se deve censurar e quais os artigos que se deve cortar.

O caso Folha da Tarde

Um dos episódios destacados pela tese de Beatriz Kushnir narra a trajetória da Folha da Tarde. Segundo a tese, o jornal foi o reduto, entre 1967 e 1984, de um grupo de jornalistas colaboracionistas, os chamados ?cães de guarda?, que dirigiram a redação como uma delegacia de polícia. Na epóca, a FT era chamada no meio jornalístico como o jornal de maior ?tiragem?, uma ironia à grande presença de ?tiras? na redação.

Em 1967, a FT renasce sob o comando de Miranda Jordão – que hoje dirige a redação de O Dia, no Rio de Janeiro – para fazer frente ao Jornal da Tarde. Sua redação se caracteriza por abrigar bons jornalistas, muitos deles simpatizantes da esquerda. Essa fase não foi longa. Finalmente, com o AI-5, Miranda Jordão é demitido e assume a redação Antonio Pimenta Neves e, posteriormente, Antonio Aggio Jr., hoje assessor de imprensa do senador Romeu Tuma. Aggio vinha do jornal Cidade de Santos.

Segundo a tese, durante uma década e meia o jornal ficou sob o comando da direita e muitos dos seus jornalistas tinham cargos na Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo.

Durante esse período, alguns fatos marcaram a redação. A prisão de Frei Betto, em 11 de novembro de 1969, foi minimizada pelo jornal, que não citou uma importante passagem em sua biografia: Frei Betto foi chefe de reportagem da Folha da Tarde.

No episódio Vladimir Herzog, assassinado nos porões da OBAN (Operação Bandeirante) em 25 de outubro de 1975, a FT ignorou por completo a missa ecumênica realizada na Catedral da Sé, alguns dias depois da sua morte.

Outra prática, que se estendeu a outros órgãos de imprensa, mas foi exemplar na FT, foi a de transmitir integralmente a versão do Estado para desaparecimentos e assassinatos, como no caso de uma manchete de abril de 1971 que anunciava a morte do guerrilheiro Roque, em confronto com a polícia de São Paulo. Roque era o codinome do metalúrgico Joaquim Seixas, que havia sido preso com o filho Ivan Seixas, hoje jornalista. Os dois eram militantes do MRT (Movimento Revolucionário Tiradentes), e tinham sido acusados de matar o industrial Enning Boilesen, um dos financiadores da OBAN. Foram presos e torturados.

Num certo dia, Ivan foi levado pelos policiais para um ?passeio? fora da OBAN e leu em uma banca de jornal a notícia da morte do pai. Quando voltou do ?passeio? ainda encontrou seu pai vivo. Joaquim Seixas viria a morrer horas depois. Os jornais do dia seguinte reproduziram friamente a nota oficial dos órgãos de repressão, mas a FT havia publicado a notícia um dia antes, com detalhes. Muitos atribuem à FT a legalização de mortes em tortura.

Além do caso FT, a tese mostra como redações, entre 1972 e 1975, ?acatavam? os bilhetinhos do Sigab (Serviço de Informação do Gabinete), que notificavam diariamente os jornais sobre o que se podia e o que não se podia publicar.

Beatriz cita o professor Bernardo Kucinski, que lembra: ?A maior parte da grande imprensa brasileira aceitou, ou se submeteu a esse pacto. Para Médici, era melhor que o próprio jornalista se autocensurasse?.

As empresas escolheram então os seus ?quadros de confiança?. Por abrigar jornalistas colaboracionistas algumas redações ficaram conhecidas como ?ninhos de gansos?. Os jornalistas de confinça que cobriam o Deops, por exemplo, não passavam pela revista e seguiam direto por uma entrada lateral, reservada aos policiais, apelidada ?passagem dos gansos?.

?A censura para mim é sempre política?

UNIDADE – Qual a intenção inicial de sua pesquisa?

Beatriz – Eu tinha planejado fazer uma tese sobre a apreensão de imprensa clandestina pelo aparelho do DOPS. Comecei a trabalhar com essa documentação em Brasília, há toda a documentação do Departamento de Censura de Diversões Públicas. Mas a partir daí, percebi que eu podia pensar a censura diferentemente do que havia sido trabalhado. Não como os jornalistas receberam os censores na redação, mas quem eram esses censores, que tipo de trabalho eles faziam, ou seja, a censura contando a sua própria história. É o que faço nos três primeiros capítulos da tese.

UNIDADE – Como surgiu o interesse pelo caso Folha da Tarde?

Beatriz – Num determinado momento Maurício Maia, filho do Carlito, me contou como os órgãos de imprensa publicavam notícias falsas de mortes de militantes, e me chegou a história do Ivan Seixas, que era um militante político do MRT (Movimento Revolucionário Tiradentes), um braço da ALN (Aliança Libertadora Nacional). Ele é preso com o pai, são levados para a OBAN (Operação Bandeirante) e são torturados. O Ivan é levado para dar ?uma volta? e fora da prisão recebe uma informação de que o pai morreu, noticiada pela Folha da Tarde. Quando ele volta à OBAN o pai ainda está vivo, só morreria horas depois. A FT foi considerada o diário oficial da OBAN. A Folha da Tarde é um jornal que renasce em 1967, com o Miranda Jordão, para ser um jornal de oposição ao Jornal da Tarde. Depois do AI-5, ela se torna cada vez mais à direita. O Miranda foge pela fronteira, o Frei Betto, que integrava a equipe do jornal, também sai. Aí assume Antonio Ággio Jr. Tento mostrar como é falsa essa imagem de que a imprensa combateu arduamente a censura. Isso é uma coisa muito delicada para os jornalistas. É delicado perceber que havia autocensura nas redações. A Folha da Tarde se prestava muito para se perceber isso. Se você perceber realmente quando os jornais tiveram censores dentro da redação, então você nota que a autocensura funcionou muito mais do que o censor. Você tem poucos censores nas redações da grande imprensa. (Veja o quadro na página ao lado). Eles estavam na imprensa alternativa.

Gosto muito de uma matéria do Jânio de Freitas, sobre os 30 anos do AI-5, quando ele diz que 30 anos depois são de novo os mesmos jornalistas que estão contando a sua história, e 30 anos depois eles contam a história que eles querem.

UNIDADE – Você quantificou o número de jornalistas que poderiam ter se envolvido com o colaboracionismo? Ou se deteve mais no caso da FT?

Beatriz – Eu não tive essa preocupação de quantificar. A Folha da Tarde é um estudo de caso nos dois últimos capítulos da tese. Mas o que acontece naquela redação? Durante um ano e pouco ela é uma redação de esquerda e durante quinze anos ela vai se tornar uma redação extremamente de direita. Existiam nos anos 70 uns casos que se chamavam desbundes, que eram presos políticos que são presos e depois colocados na televisão para fazer um mea culpa. Alguns desses mea culpa vão se tornar jornalistas da Folha da Tarde, mostrando um pouco dessa relação tão permissiva.

UNIDADE – Conte o que aconteceu com a Folha de S. Paulo e Frias em 1977.

Beatriz – Em 1977, o Boris Casoy assume a redação da Folha. São tirados todos os nomes dos Frias do expediente, que só vão ser recolocados no jornal em 1984, na época das Diretas. É toda uma jogada de marketing da Folha. Se você repensar hoje o Projeto Folha, ele está muito longe de qualquer análise que diga: ali tínhamos uma redação neutra. Mas as pessoas continuam lendo o projeto Folha como isso. Como um momento em que a Folha vai sair de tudo isso como se nada desse passado tivesse a ver com a família Frias, e vai entrar limpa para a história, nesse momento redemocrático do País (as Diretas), o que não é verdade.

UNIDADE – Como os jornalistas que já leram a sua tese a receberam?

Beatriz – A tese fez muita gente pular. Muitos jornalistas não aguentam ver. Por mais que sejam críticos, preferem dizer: o historiador errou na sua análise.

UNIDADE – Durante a elaboração da tese, foi difícil a relação historiadora-jornalistas?

Beatriz – Num primeiro capítulo eu faço uma longa discussão entre jornalistas e historiadores. Como nós dois estamos fazendo uma história do tempo presente. Só que às vezes o jornalista não percebe que ele é nossa fonte, ele não faz uma reflexão. Vocês fazem a história do imediato e a gente faz o que se chama uma história do tempo presente, que é uma reflexão do tempo presente. O que o jornal faz é uma história do instantâneo, e o historiador vai usar aquilo como fonte. Muito pouco da imprensa você tem como espaço de reflexão. Você não tem mais isso hoje em dia. No momento as revistas falam em comportamento, há muito pouca reflexão.

UNIDADE – Ao escrever a tese você se desiludiu com a imprensa e com os jornalistas?

Beatriz – O momento dessa tese é um momento de desilusões. Não existe esse jornalista quixotesco. Ou melhor, não que ele não exista. Ele existe pontualmente, mas não é o que paira na maioria da imprensa.

UNIDADE – Você encontrou dificuldades para editar a tese?

Beatriz – Várias editoras top de linha a pegaram e disseram: você não entrevistou a família Frias. (Os Frias se negaram a falar com Beatriz) A Boitempo foi muito legal. Aceitou dividir a tese em dois livros. Queria escrever mais um capítulo com as 60 horas que eu tenho de entrevista com os censores e não cabia na tese, e ela topou.

UNIDADE – Você fez uma divulgação grande da tese e deu várias entrevistas que não saíram na grande imprensa. Isso é censura?

Beatriz – É uma censura. É mais fácil denegrir um trabalho do que você tentar dialogar com ele.

UNIDADE – No momento do assassinato Herzog como se comportou a imprensa?

Beatriz – A Veja foi proibida de falar sobre o Herzog. Tem um editorial do Mino no qual ele escreve, em dois parágrafos, que ele tem uma dívida com a população naquele momento, porque não está podendo contar uma coisa, e ele espera que a visita do Geisel a São Paulo possibilite que um dia a Veja possa resgatar aquela não-fala, naquele momento. Não-fala é não poder dizer que o Herzog havia sido assassinado. O ano de 75 é o momento em que Geisel vem com o discurso da abertura. Naquele momento os jornais continuam sendo censurados, a autocensura continua presente nas redações. É uma falsa idéia que a censura está acabando naquele período, não é verdade.

UNIDADE – Quando falamos de censura devemos falar dos jornalistas ou dos donos dos jornais?

Beatriz – Não dá pra se eximir. Quem tem mais culpa? É o dono do jornal, é o jornalista? São circunstâncias que se dialogam. Não estou dizendo que todo jornalista exerceu um papel de colaboração, nem que todas as empresas de jornalismo foram colaboracionistas. Eu analisei o caso específico de um grande jornal, mas que você pode estender para outros casos.

Esse termo do colaboracionismo é um termo que doi de ouvir. Isso reflete muito do país, da formação, dos processos econômicos.

UNIDADE – Muita gente preferiu não dar depoimento para a tese, não foi?

Beatriz – Com os Frias eu fiz várias investidas. Alegaram que não podiam, não tinham tempo. Como um empresário que vende esse tipo de serviço se recusa a conversar sobre isso? A minha negociação com o Ággio levou meses e meses, e depois que ele me deu uma longa entrevista, se sentiu tão mal que me mandou um fax, no dia seguinte, sobre o que ele entendia de política. É aquela contradição da contradição.

UNIDADE – A censura está presente em toda a trajetória republicana brasileira?

Beatriz – Eu tento mapear a censura na República, mostrando que ela não é exclusiva de momentos de exceção. No Brasil, mesmo em momentos democráticos ela existiu.

UNIDADE – Qual é a cara dessa censura?

Beatriz – Ela tem uma capa de moral e bons costumes, que em períodos de exceção se divide em política. Mas para mim a censura é sempre política, porque ela está sempre querendo regular o ato político do cidadão.”