Saturday, 21 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Caros Amigos e o anti-semitismo

ORIENTE MÉDIO

Luis Milman (*)

O artigo "Serão os semitas humanos?" (Caros Amigos, n? 68, novembro de 2002), do jornalista Georges Bourdoukan, é uma arenga anti-semita que, ao leitor atento, judeu ou não, só pode causar repulsa. O anti-semitismo do texto é auto-explicativo, seja pelo uso pejorativo do termo "judeu" na menção que faz a políticos israelenses, seja porque, entre outras barbaridades racistas, afirma que os judeus sionistas foram os maiores aliados dos nazistas e co-responsáveis pela criação dos campos de concentração.

Nos últimos 40 anos, o anti-semitismo tornou-se mais fácil de ser praticado sob o nome de anti-sionismo. Basta ler os textos dos seus expoentes, como Roger Garaudy, Robert Faurisson, Pierre Guillaume, David Irwing, Serge Thion e Israel Shamir, para citar alguns dos mais conhecidos anti-semitas e anti-sionistas de hoje, da direita e da esquerda ideológica. Os anti-semitas de esquerda e de direita praticam as mesmas distorções e se valem do mesmo arsenal de acusações mentirosas e depravadas. Os mais militantes, à direita e à esquerda, tentam demonstrar a todo custo que Israel não pode existir, porque é racista, confessional, imperialista e por aí vai.

À direita, temos o gaúcho Siegfried Ellwanger e seu séquito de teutômanos. Bourdoukan está à esquerda, como os franceses Thion e Guillaume, que dizem repudiar o racismo e orientar-se pelo internacionalismo antiimperalista. Chegam a reivindicar o marxismo como fonte inspiradora. Há um manifesto que Guillaume sobre a linha de pensamento da editora anti-semita Velha Toupeira (Paris), que invoca a "autoridade do texto fundador de Karl Marx, ?A questão judaica?" para defender o "antijudaismo radical sempre proclamado urbi et orbi ( …)". (P. Guillaume, Carta a Phillip Randa, La Vielle Taupe, 1998).

Eliminar o judaísmo, como propugna Guillaume, é uma coisa. Eliminar os judeus, como os nazistas pretenderam, é outra. Os sionistas gostam de confundir as coisas, como Guillaume esclarece. Os judeus são pessoas como todo mundo, mas o judaísmo e o sionismo, vade retro. Afinal, qual a razão do sofrimento dos povos, da existência das guerras? Quem está promovendo o genocídio palestino? A dominação judaica (dos governos, dos bancos, da mídia, dos cartéis de petróleo). Dúvidas? Basta prestar atenção na grafia real do nome da besta do Apocalipse: George W. ben Bush! A descoberta é de Bourdoukan.

Nesta guerra santa contra os judeus-sionistas é preciso revelar como as coisas realmente são. Esta é a missão revolucionária de Bourdoukan que, diga-se em tempo, ele cumpre de maneira insuperável. Algumas das suas revelações: o hierarca nazista Heirich Heidrych era judeu. A russa judia Golda Meir dizia que as crianças palestinas eram animais de duas patas, e Israel foi criado pelos nazistas. Quem garante é Hannah Arendt!

Mesmo o mais singelo senso de prudência é mandado às favas pelo fervor militante do anti-semita Bourdoukan. Golda Meyer não era russa e jamais disse nada disso sobre os palestinos. E o respeitado texto de Hannah Arendt foi conspurcado pelo racismo hidrófobo do articulista de Caros Amigos. As críticas de Hannah Arendt ao julgamento de Eichmann a antipatizaram com a liderança do Mapai (o partido social-democrata à época no poder, sob a liderança de Ben Gurion), mas nem de forma remota respaldam as tolices que Bourdoukan escreve, entre as quais que Israel foi criado pelos nazistas.

O anti-semitismo é uma patologia moral e política e seus adeptos a exercitam metodicamente com o cinismo, a forma com a qual obtêm prestígio junto a grupelhos de fanáticos. Basta ver como Bourdoukan manipula a biografia de Rodolf Kastner, certamente pouco conhecida para os leitores de Caros Amigos. Segundo ele, Kastner era um médico que visitava campos de concentração para selecionar judeus e levá-los à Palestina, em trens sob a escolta dos SS. Além disto, estava entre os fundadores de Israel e foi morto por sobreviventes dos campos que visitou, durante uma cerimônia. Tudo mentira: Kastner não era médico, mas jornalista. Ele jamais visitou campos de concentração ou fez qualquer seleção biológica, não foi fundador do Estado de Israel e não foi assassinado por sobreviventes dos campos que visitava.

Os fatos são outros. Durante a guerra, Kaster chefiava o Comitê de Salvamento de judeus da Hungria, da Agência Judaica. Fez tratativas com Eichmann, que, em março de 1944 foi para Budapeste organizar o transporte dos judeus húngaros para Auschwitz. Em nome da Agência Judaica, Kastner negociou com Eichmann, desde Istambul, a troca de 1 milhão de judeus húngaros por 10 mil caminhões. A troca fora autorizada por Himmler, mas abortada logo em seguida. Ainda assim, Kastner ajudou a salvar as vidas de milhares de judeus húngaros, em vista das negociações que fez, por sua iniciativa, com Eichmann e Kurt Becker, um oficial graduado da SS em Budapeste. Numa destas operações, 1.615 pessoas foram transportadas de Budapeste para a Suíça, num trem especial que teve escolta de tropas da SS. Entre os resgatados estavam a mulher e os filhos de Kastner.

Ao fim da guerra, ele foi acusado formalmente de colaboracionista no Congresso Judaico Mundial, porque suas tratativas com Eichmann e Becker não eram conhecidas da Agência Judaica. Kastner foi absolvido das acusações. O jornalista também foi arrolado por Becker como testemunha de defesa, no Julgamento de Nuremberg. Kastner depôs em seu favor, alegando que muitas vidas haviam sido salvas devido aos seus contatos com Becker. Depois da criação de Israel, Kastner, que integrava o Mapai, imigrou e passou a trabalhar no Ministério da Indústria e Comércio. Em 1952, suas atividades na Hungria provocaram um novo julgamento, deste vez num Tribunal de Jerusalém, onde voltou a ser acusado de colaboracionismo. Em 1954, em meio à grande repercussão política do caso, recebeu uma condenação moral do juiz que, na sentença, afirmou que ele vendera a alma ao diabo durante a guerra. A direita israelense, liderada pelo partido de Menachem Begin, o Herut, explorou o julgamento para atacar o Mapai e suas lideranças, pelo apoio que deram a Kastner.

O jornalista sempre se defendeu, afirmando que fizera tudo ao seu alcance para salvar vidas. Em março de 1957, enquanto aguardava o resultado de uma apelação à Suprema Corte, Kastner foi assassinado em frente a sua casa, depois de estacionar o carro. O crime, cometido à meia-noite, foi praticado por três integrantes de um grupo clandestino de extrema-direita, o Machteret, de ex-integrantes do Lechi, a organização direitista de combate dissolvida após a criação de Israel, em 1948. Kastner foi assassinado com três tiros à queima-roupa. Seus assassinos foram condenados à prisão perpétua. Nenhum deles era sobrevivente de campos de concentração.

Em 1958, a Suprema Corte de Israel, numa sentença histórica, inocentou Kastner da imputação de colaboracionismo com os nazistas. Na sentença, de mais de 200 páginas, os juízes concluíram que a sua atuação naquele período não poderia ser criticada por ninguém, pois as negociações que ele levara a cabo visavam a salvar a vida de pessoas, num mundo em que as regras básicas da civilização haviam sido abolidas.

Em 1962, o caso Kastner voltou a ser discutido, desta vez durante o julgamento de Eichmann, que referiu-se a ele como "um sionista idealista merecedor de sua estima, com quem havia negociado em várias oportunidades". Hannah Arendt, no livro Eichmann em Jerusalém, discorre sobre o jornalista no contexto deste julgamento e reproduz algumas das declarações de Eichmann que, obviamente, expressavam a opinião do genocida sobre Kastner.

O Armagedon racial

Assim, o brevíssimo relato apresentado por Bourdoukan, quando não mentiroso, é distorcido. Ele tem a mesma visão de mundo que Eichmann e, por isso, conclui que os nazistas eram aliados dos sionistas. Pode causar alguma surpresa que tais informações apareçam numa revista dita de esquerda. Mas, convém lembrar que o oportunismo político fez do anti-semitismo uma ideologia quase-oficial na União Soviética. Stalin comandou o processo, que tinha também uma superdose de demência. Na URSS, a questão judaico-sionista não era racial, porque racismo era coisa de nazistas. Mas era uma questão prioritária, porque os sionistas eram agentes das conspirações imperialistas. Este espantalho foi usado como pretexto para extermínios e expurgos contra-revolucionários, que dizimaram milhões de russos.

Bourdoukan é anti-semita e escreve em Caros Amigos, uma revista de esquerda que, certamente, dirá que repudia o stalinismo. Estranho? Não. Primeiro, porque ninguém mais se reconhece como stalinista, nem os stalinistas que veneravam Stalin; segundo, porque Caros Amigos está mais próxima do estilo ultra-radical: o anarcotrotskismo internacionalista sindical proletário camponês libertário guevarista maoísta humanista revolucionário, que distingue a militância da Democracia Socialista/PT, PSTU, PCO e do MST. Entre outros referenciais, faz parte deste ideário a cartilha da conspiração judaico-sionista-capitalista, difundida por Caros Amigos.

Para ilustrar: em 1998, o jornalista José Arbex Junior, editor especial da revista, escreveu longo comentário sobre uma notícia do Sunday Times, de Londres, segundo a qual os israelenses sintetizaram um vírus que liquida apenas os árabes e poderia ser propagado por ar ou água. Assim, a disseminação não apresentaria qualquer risco aos judeus, se viesse a ocorrer nos territórios palestinos ocupados. A tolice era explícita: para atingir o objetivo, o tal vírus teria que ser imbecil a ponto de se achar capaz de distinguir entre o DNA de árabes e de judeus ou de seja lá quem for. O ponto aqui é que vírus não têm crenças, logo não podem ser imbecis. Por isto, jamais haverá um tão idiota como os anti-semitas que acreditam que um vírus étnico possa existir. Dias depois de sua publicação no Sunday Times, descobriu-se que a notícia reproduzia parte uma novela de ficção de terceira-linha, jamais publicada e escrita por um ex-funcionário de um instituto de pesquisas israelense.

A asneira, inspirada na passagem bíblica do Anjo Exterminador que dizimou os primogênitos do Egito, serviu para Arbex discorrer sobre a sinistra ciência praticada secretamente pelo governo israelense. O jornalista advertia para a degeneração moral dos genocidas sionistas, capazes de criar um monstro que faria Hitler babar de inveja. E, obviamente, esbravejava contra o silêncio da mídia mundial sobre a revelação alarmante.

O artigo de Bourdoukan foi publicado no lugar certo. Depois de oferecer uma antevisão do Armagedon racial made in Israel, Caros Amigos revela, agora, que os sionistas foram co-responsáveis pela criação dos campos de concentração nazistas. Afinal, alguém duvida do que são capazes os sionistas? Não dizia o judeu polonês Menachem Begin, segundo Bourdoukan, que as crianças palestinas são bestas caminhando sobre dois pés? Os anti-semitas sempre foram assim mesmo. Se há algo degenerado que ninguém seria capaz de fazer, então aparece algum judeu ou sionista, como Kastner, Rafael Eitan ou Golda Meir e faz. Nada que venha a causar estranheza. Afinal, os judeus-sionistas eram os maiores aliados dos nazistas e inventaram um vírus que dizima os árabes. Resta-nos esperar, agora pelas novas revelações de Caros Amigos, que apelou ao anti-semitismo em nome da sua luta contra o imperialismo e pela solidariedade aos palestinos.

(*) Jornalista e professor