Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Casa dos Artistas

MAIS UMA VITÓRIA DO IBOPE

Alberto Dines

Há muito tempo que os jornalões paulistanos não atrasavam tanto as suas edições como na madrugada de segunda, 17/12. Catástrofes, oscares, guerras, finais de campeonato ? nenhum motivo era suficientemente forte e convincente para levar O Estado de S.Paulo e a Folha de S.Paulo a cumprirem com a obrigação comezinha de apresentar aos leitores a cobertura completa de um fato noturno.

O responsável pelo sensacional e consagrador feito jornalístico foi o encerramento do programa Casa dos Artistas, do SBT, que há 50 dias converteu-se no "fenômeno televisivo do ano" esmagando o Fantástico, tradicional atração dominical da Globo.

Os jornalões não estavam minimamente interessados em informar seus leitores no dia seguinte quem abocanhara o prêmio de 300 mil reais. Isso os próprios leitores saberiam antes mesmo de dormir. Os dois ex-figadais adversários e agora felizes parceiros numa empresa de distribuição estavam esperando outro resultado: os arrasadores índices de audiência fornecidos pelo Ibope. Para tripudiar em cima do mais poderoso grupo mediático brasileiro que ambos namoraram seriamente, sendo que a Folha num concubinato ostensivo mantido até hoje.

O Estadão, como vinha fazendo nas últimas segundas-feiras, abrigou a cobertura do evento no seu nobilíssimo primeiro caderno, junto do noticiário internacional. A Folha, menos aristocrática, desbundou: abriu página inteira no caderno "Cotidiano", com cinco fotos em cores. Ambos valorizaram o assunto com chamadas na primeira página.

À festa de encerramento do programa compareceram duas das três figuras nacionais do mais importante partido de esquerda do país ? a prefeita da maior cidade brasileira e o seu ex-marido, senador da República, pré-candidato à sucessão presidencial. Embora mal se falando por causa da separação comemoraram juntos o segundo lugar obtido pelo primogênito no certame televisivo.

Perguntará aquele leitor que passou os últimos dois meses fora do Brasil sem ler nossos jornais ou revistas: por que tamanho escarcéu? Tratava-se, por acaso, de uma competição cultural? Contenda política? Duelo de inteligências? Disputa de talentos?

Casa dos Artistas, apesar do nome, nada teve de arte. E os "artistas" que dela participaram, só com aspas. Foi, na realidade, um show de voyeurismo, exibição gratuita de privacidades, coleção de bobagens improvisadas para excitar a imaginação da classe média paulistana convertida pelo Ibope no espelho distorcido da sociedade brasileira.

O frenesi todo, diga-se, tem mais a ver com o ressentimento contra a TV Globo do que com as qualidades do espetáculo. O espírito de rinha foi transferido para a telinha pelo dois jornalões paulistas, com a decisiva ajuda de Veja e do Jornal do Brasil. O que aconteceu nesses quase dois meses e certamente se desdobrará com lances mais violentos daqui para frente foi uma guerra entre grupos jornalísticos por questões não-jornalísticas, meramente empresariais. E agora também pessoais.

Nada a ver com o interesse público. Mesmo o interesse do público foi grosseiramente magnificado. Alimentaram-no com estatísticas e cifras provando que aquilo a que assistia era muito bom. E ele acabou convencido sem saber exatamente o que é bom.

O Ibope sabe o que convém ao povo brasileiro.

Ninguém se deu conta que esta submissão cega aos ibopes da vida é um traiçoeiro bumerangue que agora, eventualmente, deu um salutar safanão na arrogância do Grupo Globo mas que num ano eleitoral ? como o próximo ? poderá perverter completamente a disputa presidencial. Conviria pensar nisso depois da euforia e da ressaca.

Quando nos anos 1980 a TV Manchete bateu a Globo com a telenovela Pantanal criava-se uma alternativa de qualidade. Agora, quando Casa dos Artistas monta em cima do Fantástico, nivela-se por baixo consagrando o besteirol como aspiração nacional.

É evidente que a Globo fez por merecer esta mágoa generalizada. O sistema de rolo compressor contra todos os que recusam sujeitar-se à sua divina vontade criou um formidável consenso em torno da Vênus Platinada. Sua hegemonia no processo de difusão de informações no país, o quase monopólio que exerce nos principais estados e, sobretudo, a indisfarçável soberba com que atua no cenário brasileiro foram os ingredientes decisivos para alavancar um programa de segunda classe com protagonistas de terceira e colocá-lo no hall da fama.

Casa dos Artistas, clonada de uma produtora holandesa, no seu capítulo final acabou convertida em produto genuinamente nacional: retrato perfeito do nosso amado Brasil.