MODERNIDADE SEM LIMITE
Gilson Caroni Filho (*)
Se há uma vitória inegável da hegemonia neoliberal na última década, ela só pode ser compreendida em seu tríplice campo de ação. A mais importante, amparada nas novas mídias, foi a morte dos projetos coletivos e a hipertrofia dos mecanismos individuais de autocentramento. Serviu sobejamente à exitosa investida na esfera pública e sua redefinição como vitrine para avaliação dos investidores externos. A política transforma-se no espetáculo solicitado pelo mercado. Quem compõe com quem e até que ponto esta composição é confiável tornou-se o reality show do capital voyeur. Finalmente, matou-se o indivíduo e ninguém foi ao cinema. Publicizando sua privacidade, o homem contemporâneo assentou a estaca no mais sagrado princípio definidor do que se convencionou chamar de modernidade.
Tornou-se anacrônico falar de direitos individuais, posto que o indivíduo morre como categoria para dar lugar ao conformado cidadão-consumidor. A própria ciência, outrora liberta da religião, é reapropriada pela indústria cultural como clone. Novamente subsumida a outra esfera, a produção científica vira apêndice da lógica espetacular. O moderno galileu cabe numa vinheta.
Assistimos ao fim das utopias. U-topos é o não lugar em que não somos incomodados. Fica na esquina e trabalha com belas grifes. Revisitamos Thomas Morus e lhe oferecemos uma atualização pós-moderna. Morre a imaginação para que vença a fantasia. Evapora o real destronado pelo simulacro. "Navegamos" na internet mas a rua é longínqua e perigosamente material. A cidade é uma impossibilidade geográfica, sem espaços para barricadas ou desejos. As primeiras pela falta de sentido para resistir, os últimos pela impossibilidade de corpo.
De país a mercado
Ao desinvestimento político na possibilidade de pensar alternativas ao modelo dominante corresponde o desejo intenso de interagir com o simulacro. Estamos embevecidos com o desempenho do roqueiro Supla e sua virtual parceira. Ou indignados com o suposto racismo da jovem senhora no programa concorrente. Saber quem vai para o "portal" ou quem sobrevive à versão televisiva do darwinismo social é preocupação de todos os cidadãos. Cidadania que se define pela passividade do consumo simbólico ou material.
E como se passariam as coisas no mundo concreto? À crise energética, ao aumento do desemprego, à precariedade da saúde pública subsiste, segundo a última pesquisa CNI/Ibope, um brasileiro "feliz" com o ano que vai se despedindo. À crescente sobretaxação da renda do trabalho para recompor perdas das isenções dadas ao grande capital, um muxoxo e uma vaga promessa de vingança nas urnas. Com 50 milhões de analfabetos funcionais ? alguns já ingressando em cursos superiores ?, exclusão étnica e padrões africanos de mortalidade infantil, a nada reagimos, ou se o fazemos é por breves espasmos.
Se há um legado destes oito anos de hegemonia oligárquica-financeira, o mais importante dele é a conversão operada. De país fomos transformados em mercado. Uma casa tropical onde habitam 170 milhões de autistas. Todos no portal. Sem limite ou apetite.
(*) Professor de Sociologia da Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso