Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Cassandras de meia-tigela

LEITURAS DE VEJA

Manoel Franco (*)

Ao passar numa dessas manhãs pela Linha Amarela, em direção à Barra, onde trabalho, tomei um susto ao avistar aquela serpente/dragão na capa da Veja, com a informação de que a inflação está de volta (?!).

Nesse tipo de alarde embute-se uma impressionante falta de compromisso com o futuro da nação, pensei na hora. Saudades do Aloysio Biondi. Respeitado jornalista econômico, Biondi passou a vida lutando contra os catastrofistas de plantão nas redações dos jornais brasileiros. Com ele, repórteres, redatores e editores tinham de buscar informações no mundo real, analisá-las e cruzá-las, e só depois estariam autorizados a construir qualquer comentário sobre inflação.

Trabalhando assim, Biondi não se arriscava a servir de garoto de recado para economistas, especuladores ou vassalos de todos os naipes, em busca de espaço na mídia. Divulgue-se a inflação mensal, claro, mas que ela não tenha lugar cativo nas primeiras páginas.

Na sexta-feira anterior, os jornalões já tinham dado o pontapé inicial nesse jogo alienado/alienante, cedendo escandalosos espaços a manchetes relacionadas com “a maior inflação do real”, na faixa dos 5%, em outubro. Agora, todo fim de mês, vamos aturar a mesmice: “Inflação de tantos por cento é a maior dos últimos … dias (meses ou ano)”. E haja datas para comparar números e índices.

Esse é um dos caminhos mais curtos na imprensa para ativar o efeito dominó sobre os preços e a variante psicóloga que faz todo mundo ? o dono do boteco, do armarinho, do açougue, o comerciante, o industrial, a(o) prostituta(o), o camelô, o cobrador de propina, o pintor, o pedreiro, o encanador etc. ? jogar os preços de tudo o que vendem para a estratosfera. Alarmismo é néctar e ambrosia para o dragão.

Sob a égide de dragões

Já há conseqüências. Ontem, na Barra, fui ao restaurante Nó de Corda, que, como o nome sugere, é especializado em comida nordestina. Até sexta-feira passada o prato do dia custava 4 reais. Ontem, me cobraram 5 reais, um aumento de 25%! A latinha de refrigerante teve o mesmo percentual de reajuste, saltando de 1,20 para 1,50.

Falei sobre a capa de Veja com o Valtencir, garçom da birosca. “Enquanto isso meu salário não aumenta há dois anos”, comentou. Ele está assustado. Diz que seus quatro irmãos ainda são crianças e moram no Nordeste, “onde o problema é muito pior”. Mas ele também carrega uma esperança: “Acho que o governo, agora com o Lula, pode dar um jeito nisso, né não?”.

Concordo com o Valtencir e com quem disser que Lula do PT da Silva vai ter que rebolar para fazer a economia crescer e controlar a inflação. A gente acredita que muitos no PT têm capacidade (evito a palavra competência porque ela me faz lembrar da empáfia do Maluf: “Eu teeenho competêêência”) para criar um grande mercado de consumo, capaz de gerar empregos e dar poder de compra e dignidade (prazer, cultura, roupa, comida, saúde, escola, moradia, transporte) ao povão, de Norte a Sul, de Leste a Oeste. Mas o governo vai precisar de muito peito ? peito de remador, como diz Vinícius ? para iniciar as mudanças em direção a um país decente, absolutamente justo.

As manchetes terão uma participação fundamental nesse processo. A persistir o sensacionalismo, sob a égide de dragões e de assuntos indigestos como a volta da inflação, claro que nem a mais tradicional democracia do planeta consegue se manter de pé por muito tempo. Governar, nem pensar. A inflação, mesmo nas capas de revistas e jornais, e as notícias escandalosas sobre elas só interessam aos poderosos. Não atendem aos interesses do povão.

Vão assustar a mãe, cassandras de meia-tigela!

(*) Jornalista