QUALIDADE NA TV
ASPAS
"Na ponta da língua", copyright IstoÉ, edição 1645
"Sofia Maria Ipiadis, dona-de-casa paulistana de 42 anos, sofreu uma agonia de sete minutos de que ela irá se lembrar pelo resto da vida. O nervosismo fazia sentido. Ela precisava garantir os R$ 300 mil oferecidos como prêmio por sua participação no Show do milhão, o programa de perguntas e respostas, comandado por Silvio Santos, que se transformou em verdadeira mania nacional. A questão era qual o primeiro nome do pintor pré-impressionista francês Paul Cézanne. Sofia não sabia, embora naquele pequeno espaço de tempo parecendo uma eternidade tenham lhe passado pela cabeça todos os fascículos dos Grandes mestres da pintura, que colecionara na juventude. ?Abri a boca para chutar uma das alternativas, estava pronunciando Jacques, quando não sei por que falei Paul?, conta. Aflitíssima e tremendo, Sofia cerrou os olhos e só soube que havia acertado pelos gritos do auditório. Todo o seu abalo, no entanto, não foi visto diante das câmeras pelos quase 30 milhões de telespectadores que sintonizam o SBT a cada uma das três edições semanais do novo fenômeno televisivo. Desabando sobre a bancada de acrílico transparente à sua frente, ela obrigou o apresentador a chamar os comerciais. Surpreso, Silvio tentou acudi-la. ?Quer uma água??, ofereceu. A resposta foi desconcertante. ?Não, quero tomar um porre.? Refeita, embolsou o dinheiro e saiu saltitante, certa de que podia realizar pelo menos dois desejos: conhecer a Grécia, terra de seus pais, e adquirir um bom plano de saúde.
Ela fez muito mais. Em sua residência na Vila Carrão, zona leste de São Paulo, os sinais da repentina riqueza são visíveis. Renovou a pintura das paredes, trocou os móveis, recauchutou a casa da família na Praia Grande, litoral paulista, e estacionou na garagem um confortável Corolla zero-quilômetro. Ah!, para a alegria geral da família também comprou um cachorro bassê por R$ 250. São tipos cativantes como Sofia que constroem parte do sucesso do Show do milhão, que já atingiu picos de audiência de 34 pontos e vem sistematicamente batendo a Rede Globo em várias noites, com médias superiores a 20 pontos, de acordo com a medição do Ibope. Sofia integra uma legião de pessoas comuns, cheias de sonhos comuns, com os quais o público se identifica e torce. Em seu primeiro final de semana como nova-rica, ela se lançou numa ansiada aventura consumista. ?Entrei numa loja onde sempre ia com o dinheiro contado e mandei descer todas as roupas, comprei bermuda até para o vendedor. Tive o gostinho de preencher um cheque de R$ 800?, lembra."
"O IBGE e o ‘Show do Milhão’", copyright no. (www.no.com.br), 5/04/01
"Duas pesquisas, o levantamento sócio-econômico do IBGE e o Troféu Imprensa do Sílvio Santos, mostraram esta semana como vai o país. Esta coluna de assuntos televisivos cruzou os dados no computador. Batem justinho. A população de velhos cresceu – e isso explica que ‘Devolva-me’, música dos anos 60, tenha levado o troféu de melhor música de 2000. A expectativa de vida subiu em dois anos – e isso dá esperança para se apostar que agora, com mais tempo, a apenas simpática Carolina Dieckmann, prêmio de melhor atriz, venha a ser uma delas realmente. A fecundidade caiu – e isso explica a garota de programa Capitu, muitos homens e apenas um filho, como prêmio de revelação. Cresceu o número de jovens mortos por violência nas ruas – e isso explica o Rappa, de Marcelo Yuka, paralítico por causa de um tiro, como melhor conjunto musical. Aumentou o número de empregados autônomos, sem carteira assinada – e isso explica o prêmio de melhor programa para o ‘Show do Milhão’, do ex-camelô Sílvio Santos."
"As novas séries, os negros, o futebol e o jornalismo", copyright Jornal da Tarde, 7/04/01
"Continua com bom nível a série semanal A Grande Família (Globo, às quintas-feiras, às 23 h). Já a série das terças-feiras, Brava Gente (mesmo canal), teve uma caída, depois da estréia excelente. Isso porque a história O Tocador de Tuba, de Lauro César Muniz, não passa de uma anedotazinha. Busca aquele Brasil ingênuo e pitoresco do teatro de variedades e dos filmes de caipiras. A presença de Pedro Bismark reforça a impressão, embora ele seja um bom ator para o tipo que os realizadores criaram. Marisa Orth também revela-se uma boa atriz, longe do tipo de decibéis espalhafatosos do Sai de Baixo. O fim da anedota era previsível e já conhecido (o texto é adaptação de uma peça do próprio Muniz), e o autor bem que poderia ter dado uma virada na história, botando no finalzinho o suposto castrado na cama com a mulher do homem da tuba, como se a fama do primeiro fosse um diz-que-diz da cidadezinha, do qual ele se aproveita."
"À mesa, o subúrbio de cada um", copyright Folha de S. Paulo, 6/04/01
"O sitcom está para a novela assim como peça de Noël Coward está para ópera de Richard Wagner. É uma espécie de psicodrama light, quase pueril, com recortes de humor e personagens que gravitam em torno do invariável sofá como convivas de um coquetel íntimo – segundo a fórmula clássica, e literal, chancelada pela Sony, Warner e HBO.
No Brasil, digno até de reivindicar certo pioneirismo, na versão antidiluviana exercitada por Golias, Renata Fronzi e Jô Soares nos anos 60 (?Família Trapo?), a ação muda de cenário. Costuma transcorrer à roda de uma mesa. Impossível adivinhar o motivo: traço canibal de nossa ancestralidade ou culpa do d&eacueacute;ficit alimentar histórico?
A mesa está posta, novamente, em ?A Grande Família? (Globo, às quintas-feiras, depois de ?Linha Direta?). O horário sugere uma ingratidão, mas pode ser interpretado como cautela, já que família como essa, ruidosa e povoada de agregados, não seria conveniente às tardes domingueiras, ao custo de expor os telespectadores a uma realidade insuportavelmente autobiográfica.
Mesa e família voltaram ao vídeo com selos de qualidade na embalagem. Guel Arraes é uma delas. Diretor de um núcleo que já criou um ?Auto da Compadecida? , Guel concede uma espécie de ISO 9000 aos novos conteúdos globais. Cláudio Paiva, redator do ?Sai de Baixo?, passou a dar duplo expediente, traduzindo para o terceiro milênio o texto de Oduvaldo Vianna Filho, criado em parceria com Armando Costa e Paulo Pontes. Se não fosse pelo humor corrosivo e livre da versão de 1973, alguém poderia supor que a trinca constituía, então, uma célula do Partidão.
Ao centro da mesa, ou seja, no miolo da trama, Marco Nanini e Marieta Severo extrapolam o talento daquele que é o casal dramático mais bem-sucedido do país.
?A Grande Família? é folhetim, mas, ao contrário do ?Sai de Baixo?, é também sociologia. O Gilberto Freyre de ?Casa Grande & Senzala? não se vexaria de assinar esse painel genealógico (e ginecológico) de um compadrio à moda urbana em que sogro aposentado, cunhado, nora, irmã e irmão vêm se encostando, aquela coisa família do Garrincha, pencas de desocupados dormitando em encostos de ?courvin? enquanto um pobre diabo se fatiga para pagar as contas. Fellini (mesma vocação antropológica, veículo diferente) entendia do riscado, na caricatura do cunhado vagabundo de redinha na cabeça, a mater famílias extremosa e sanguínea, o pater patético, os filhos belicosos e inúteis.
Sinal dos tempos, o ?aggiornamento? custou a vida ao filho contestador, no sentido anos 70, meio anarco, meio comuna, vitimado pela narrativa mais enxuta e os custos de produção – na versão de Guel Arraes – tanto quanto, é razoável supor, pela circunstância de o muro de Berlim ter lhe caído sobre a cabeça. Onde falta comunismo, sobra o toque à brasileira que, de cara, se impõe no top da nora: a sexualidade latejante, com glacê de ingenuidade. É como se um sopro quente de maresia e desejo bafejasse janela adentro.
É Copacabana que a mesa evoca, dos suarentos edifícios chamados 200, embora Guel Arraes, apud Vianninha, se refira a ?uma família de subúrbio?. É, pode ser. Não o subúrbio depravado de Nelson Rodrigues. Mas o subúrbio mítico, que, da mesma forma como Jorge Luís Borges se referia ao tango, não é um pedaço da realidade, com sede no espaço e no tempo e, sim, um estado de espírito – o subúrbio que há dentro de cada um de nós."
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