Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Cenas de um filme antigo

DOMINGO ILEGAL

Claudio Julio Tognolli (*)

Apesar da desconversa dos legisladores casuais de plantão, brandindo códigos no pior estilo "niilismo de resultados", a televisão brasileira jamais disporá de um código de ética. Na TV, sempre saiu a ética e entrou, aos socos e pontapés, a estética. De mau gosto. Mas, mesmo assim, estética ? seja a das lamúrias importadas de um Jerry Springer, seja a da incapacitação moral (devidamente convertida em autopunição) de uma Oprah Winfrey.

Já vimos o filme várias vezes e o escândalo exibido na edição de 7/9 do Domingo Legal, de Gugu Liberato, apenas mostra a velha e repassada má estética: em que, apesar de rótulos morais auto-acrescentados farsescamente, os detratores de Gugu, também todos apresentadores, cometem ou cometeram crimes de lesa-pátria iguais ou piores dos ora atribuídos à equipe do Gugu. Mesmo afetando uma moral a empolgar as fantasias da turma de deontologia, são todos filhos espirituais da mesma linhagem de esgoto televisivo.

A "briga" entre Gugu e Fausto Silva tem mais de quarenta anos de idade. É atávica da TV brasileira e ocupou colunas e colunas do finado Nelson Rodrigues ? na época bestificando os desinformados ao expor ao osso as baixarias da briga entre, por exemplo, Flávio Cavalcanti e Chacrinha, como se verá mais à frente.

As TVs que ora sugerem-se bastiões da moralidade televisiva, no episódio Gugu, recentemente cometeram barbaridades tonitruantes. O que se segue ocorreu entre maio e junho de 2002. Tudo começara quando com a ida de José Luiz Datena para a Rede TV!, onde estreou em 7 de maio daquele ano. Datena Repórter Cidadão, noticiário que foi ao ar das 18h às 19h31, alcançou média de 7 pontos no Ibope ? 3 a mais do que a emissora costuma atingir no horário. Mas o programa não conseguiu vencer sua ex-atração, o Cidade Alerta, da Record, então comandado por Ney Gonçalves Dias, que registrou 8 pontos de média de audiência, das 17h40 às 19h24, no dia da estréia de Datena.

A ida de Datena para a Rede TV! e uma suposta negativa de João Kleber a um suposto convite da Rede Record criaram a confusão de então. Na época, este observador recebeu
telefonema de uma produtora do programa da apresentadora Claudete Troiano, da Rede Record. Dizia ela: "Você tem de vir aqui falar da fraude que o João Kleber põe no ar!". "Que fraude?", pergunto. Ela disparou: "Temos informações de que ele teria contratado uma agência de modelos para montar as suas reportagens com câmera oculta, e pagaria para cada encenador uma diária de 140 reais". Ao ouvir a negativa ao convite, a produtora volta à carga: "Você teria os nomes de outros jornalistas que possam vir aqui meter o pau no João Kléber?" .

Na época, o apresentador João Kléber enviou um comunicado oficial à imprensa, em 23 de maio, para rebater as acusações do programa Note e Anote, da Record, segundo o qual ele teria enganado o telespectador ao exibir uma história falsa em seu programa Canal Aberto, na Rede TV!. Eis a íntegra do comunicado:


"O programa Note e Anote da TV Record, nesta quarta-feira, exibiu matéria com intuito de macular a credibilidade do programa Canal Aberto, da RedeTV!. Trata-se de um engodo, visto que, diariamente, a TV Record vem perdendo seus preciosos e mínimos pontos no ibope. Tanto que, na tarde de hoje, conseguiu, com uso indevido da imagem da concorrente, atingir o pico de 11 pontos no ibope.

Alguns veículos de comunicação, atualmente, utilizam todas as armas possíveis para atingir seu maior objetivo: o ibope. É público e notório que o programa Canal Aberto é mais um sucesso. Exibido diariamente, ao vivo, seus principais objetivos são denunciar desmandos e prestar serviços aos necessitados deste País. Mas o programa também é passível de ser ludibriado, visto que, pessoas inescrupulosas podem utilizar seu espaço na mídia, sem que se tenha condição de perceber.

O Sr. Osnei Medes da Costa procurou nossa produção para pedir ajuda. Segundo ele, estaria sendo agredido pelo filho. É importante frisar que, tanto ele quanto o filho, assinaram termos de responsabilidade, atestando a veracidade de suas
alegações. É de conhecimento de todos, que os participantes dos programas televisivos recebem cachês simbólicos, a título de gratificação, pelo uso da imagem e voz. O contra-senso é que, recentemente, a própria TV Record me convidou para integrar seu quadro de artistas. Não conseguindo seu intento, utiliza de expedientes contra minha dignidade e decoro, na intenção de conseguir preciosos pontos no ibope. Trata-se de um ledo engano. É com verdade e competência que se conquista o êxito. Para não ficar obscuro e pairar dúvidas sobre a integridade do Canal Aberto, tomaremos as medidas judiciais cabíveis para o caso. João Kleber".


Em 1? de junho daquele ano o substituto de Datena, Ney Gonçalves Dias, pôs uma "bomba" no ar, bem no finalzinho da tarde, em seu Cidade Alerta. Referiu ter recebido uma ligação do celular do ex-empresário do cantor Belo, procurado pela polícia sob suspeita de envolvimento com o narcotráfico carioca. Gonçalves Dias conta que o ex-empresário do cantor, Hamilton Pereira, teria-lhe confessado que Belo estaria se entregando ao 3? Distrito Policial, na rua Aurora, centro de São Paulo, após ter passado mal. Estaria hospedado no Hilton Hotel, no centro da capital paulista. E teria sido atendido no Hospital Santa Isabel, também na região central da cidade.

Tanto bastou. O "furo" de Ney Gonçalves Dias levou uma legião de repórteres e cameramen às portas da delegacia, do hospital e do hotel. Ney referia que o telefone celular fora checado, e que seria mesmo do tal empresário Hamilton Pereira. Mas era uma "barriga" homérica. Mobilizou profissionais de imprensa e policiais de plantão. Na porta do hospital, os famosos "populares" garantiam de pés juntos que haviam visto o cantor Belo entrar ali, num Jeep Cherokee, "agachado e com um um tiro na barriga, apalpada pela mão direita dele". A Rede Record garantia que o próprio secretário da Segurança Pública de São Paulo estaria no local para negociar a rendição de Belo ? quando na verdade ele se encontrava no interior do estado entregando carros policiais na companhia do governador Geraldo Alckmin.

A "barriga" que se apresentou não foi aquela imaginária, do Belo, vista pelos populares. Foi uma bem palpável: a de Ney Gonçalves Dias. Na mesma hora, José Luiz Datena meteu a boca na sua antiga emissora, condenando a colocação de informações "não checadas" no ar. No domingo (2/6/2002), outra série de especulações: Datena põe no ar uma fita que lhe teria sido fornecida pelo advogado do cantor Belo, Alberto Louveira. Nela constava uma conversa entre Belo e um ex-advogado do cantor, Sílvio Guerra. A fita, constante do processo que apura os supostos crimes de Belo, traz diálogos entre o cantor e Guerra ? nos quais este solicita a venda do automóvel Audi de Belo. O dinheiro seria para pagar ? diz o advogado Silvio Guerra, na fita ? suposta propina exigida pelos delegados cariocas Ricardo Hallack e Álvaro Lins, que investigam Belo.

Antes que o furo de Datena se convertesse numa "barriga" à la Ney Gonçalves Dias, aquele consegue ouvir, por celular, o advogado Silvio Guerra, que estava em Natal (RN). E confessava a Datena, no ar, que as acusações contra os policiais cariocas eram na verdade uma forma de pressionar Belo para que este lhe pagasse os honorários devidos por serviços de advocacia.

Os facínoras

O crítico de cinema Fernando Zamith gosta de lembrar do filme de John Ford, O Homem que Matou o Facínora ("The Man who shot Liberty Valence", 1962), em que o personagem-repórter Edmond O?Brien dispara a frase "Quando a lenda for mais interessante que a realidade, imprima-se a lenda". Para Zamith, a frase é de uma estrutural sapiência para se entender a imprensa em geral e a TVem particular: ou seja, sem nunca articular interesses claros, a não ser os do mero e mais vil sensacionalismo, nossa mídia afeta uma submissão abjeta aos números de Ibope e de vendas, mesmo que isso contribua para o despudor, incúria e ao processo pelo qual a ética murcha à irrelevância face aos interesses de mercado.

Daria uma vulgata de páginas olímpicas descrever o quanto a mídia já meteu os pés pelas mãos em publicar lendas, como dizia Edmond O?Brien. Temos o clássico caso de um grande jornal de São Paulo que, nos anos 1980, publicou história referindo que comerciantes do ABC paulista haviam criado uma milícia armada e encapuzada para exterminar ladrões. Na foto dominical, os comerciantes posavam à la Ku Klux Klan. Graças a um delegado de polícia que anotou a placa de um automóvel que aparecia na foto publicada, pôde-se mostrar que a imagem fora montada pelo repórter, que inclusive colocara o motorista da reportagem posando de justiceiro.

Lembremos também do recente caso em que uma jornalista (hoje no SBT, então trabalhando para uma emissora de rádio) colocou no ar um "enfermeiro" contando como atendera uma famosa atriz global que tentara o suicídio porque "pegou na cama" seu
novo marido com sua filha pós-adolescente. Lembremos daquele Le Monde que nos anos 1960 "matou" a atriz Mônica Vitti por ter acreditado num telefonema anônimo dando conta que ela morrera. E, só para constar: vejamos o que aconteceu com o cinegrafista anônimo alcunhado Pica-Pau, que há quatro anos deu a duas emissoras de TV paulistas fitas comprovando crimes da Polícia Militar paulista. Vive ainda foragido, em estados do Nordeste, sobrevivendo de "caixinhas" mensalmente remetidas por cinegrafistas, freudianamente empregados dessas duas emissoras…

Tudo isso para mostrar que não se criou ainda um código de ética claro entre os digladiantes pela audiência, tampouco existe um código para proteger as fontes: falta-nos uma Convenção de Genebra para a Mídia. Se a mídia não inventa, volta e meia joga na fogueira a fonte. Como notava Janet Malcolm, freudiana de carteirinha, o jornalista dócil que faz a entrevista "é a mãe que tudo permite", mas o jornalista que publica e entrega a fonte a qual prometera sigilo "é o pai que tudo castra".

Estão, portanto, moral e igualmente desautorizados todos os apresentadores que ora criticam Gugu. Um exemplo que os torna farinha do mesmo saco foi dado num curso de aperfeiçoamento a jornalistas de TV, promovido ano passado em São Paulo, em que uma produtora de um desses críticos de Gugu Liberato revelou o seguinte: "Quando caía o Ibope, pegávamos fitas de acidentes horríveis ocorridos há mais de um ano e botávamos novamente no ar. Me dava dor no coração às vezes ouvir, em telefonemas à redação, mães chorando e dizendo "meu filho foi enterrado há tanto tempo e ainda vocês põem no ar imagens do acidente, por que isso???".

Seu Sete da Lira

Uma prova de que nossa TV continua tão ruim como há quarenta anos já virou tema científico. Em setembro de 2002, o pesquisador João Freire Filho apresentou ao 25? Congresso da Intercom (Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação), em Campo Grande (MS), o estudo "TV de qualidade: uma contradição em termos?"

O trabalho tomou como base crônicas escritas por Nelson Rodrigues nos anos 1960 e 1970. Refere o autor:


Como logo se aperceberam os leitores de O Globo, Nelson Rodrigues andava meio enfezado lá pelos idos de setembro de 1971. O motivo? Chegara ao auge, naquele mês, a campanha nacional por uma televisão mais "civilizada", mais "culta". Capitaneado pelo governo militar, o movimento recebera apoio expressivo da "classe média do milagre", da
Igreja e de diversos intelectuais: "Todo mundo está discutindo o nível da nossa televisão. ?Baixíssimo?, dizem uns; ?Baixíssimo?, afirmam outros; ?Baixíssimo?, juram terceiros. Não dou um passo sem esbarrar, sem tropeçar num sujeito indignado", observou o cronista (Rodrigues, 1996, 232).


Para o pesquisador João Freire Filho "longe do rotineiro tom chapa-branca de seus textos jornalísticos, Nelson contestou aberta e asperamente o ministro da Comunicação Hygino Corsetti, classificando de ?uma selva de equívocos? seu pronunciamento sobre a programação das emissoras brasileiras. Nelson abusou do sarcasmo para desacreditar o adversário: a verdade inapelável e fatal ? insinuou ? era que o ?sr. ministro? só pudera iluminar a todos com uma ?minuciosa análise reflexiva sobre as nossas TVS (sic)?, porque, no fundo, fazia parte dos oito milhões de brasileiros que passavam os dias e as noites diante da telinha; era, entre quatro paredes, um telespectador atento, fanático, ?dos que vêem novela, e tanto as vê que acha algumas de uma extensão fatigante".

Diz o pesquisador:


A chiadeira contra a má qualidade da TV no Brasil ganhara força no finalzinho da década sessenta, quando o veículo se consolidava como um típico meio de comunicação de massa ? só para se ter uma idéia, o número de aparelhos em uso no país saltou de irrisórios 2 mil, em 1950, para 760 mil, em 1960, e 4 milhões e 931 mil, em 1970 (Mira, 1995, 30). O novo dispositivo audiovisual cresceu rodeado de suspeitas por todos os lados: muitos palpitavam que "a máquina de fazer doidos" ? na definição de Sérgio Porto ? seria responsável por toda uma geração de enfermos sexuais, mentecaptos ou deficientes visuais (os terríveis raios catódicos, lembram-se?). "Fábrica de psicopatas, segundos os psiquiatras, e transmissora de subcultura, vendida como bem de consumo, segundo os sociólogos, a TV carioca está ameaçando de entorpecimento e alienação total cerca de 2 milhões de pessoas que a vêem diariamente…"


O levantamento mostra que quem abrisse o Caderno B do Jornal do Brasil, na manhã de 16 de junho de 1968, era brindado "com mais uma extensa reportagem sobre os poderes luciferinos da televisão". Em reportagem de Israel Tabak, destacam-se as palavras do psiquiatra e psicanalista Leão Cabernite: a televisão estava se tornando a nova "bolinha"; seu "vício" começava a criar o problema da dependência física. Após acentuar a péssima qualidade da programação, Cabernite alertou que "a continuar desta maneira, em bem pouco tempo a nossa televisão poderá transformar-se numa imensa e eficiente fábrica de psicopatas". Para reverter esse processo, era preciso, primeiro, "uma competente legislação", depois, "uma competente polícia sanitária" que garantisse o cumprimento da lei.

Mostra aquela reportagem do JB que dos cerca de 2 milhões de telespectadores "colados" diariamente aos 600 mil aparelhos ligados no Rio de Janeiro em 1968, 1 milhão e 400 mil eram pobres ou muito pobres (favelados). Relembra o autor que o telespectador de nível cultural mais elevado e maior poder aquisitivo sentia-se ? nas palavras de Tabak ? "relegado e agredido" pela linha de programação vigente; em protesto, conservava o aparelho de TV geralmente desligado (40% do total). Uma "rápida pesquisa" revelava o que esse esquadrão dissidente (formado por "jovens universitários, intelectuais e em geral o setor instruído da classe média") esperava do veículo: "shows bem-feitos de música popular, sem a imposição de ídolos, documentários e filmes de bom nível, telejornais que
exploram mais a imagem dos fatos, e debates políticos livres".

Vejamos as manchetes da época levantadas pelo trabalho:

** "Mendigos, indigentes, loucos, viciados, casais desajustados, ladrões. O desfile se repete há 4 anos no Rio e São Paulo para uma platéia que o Ibope revela ser fiel." ? Era o que dizia Veja, em setembro de 1968 ("Mundo cão, não", 25/09/1968). A revista oficializava,
com a reportagem, seu apoio à campanha contra o "grotesco na TV" organizada, no Rio de
Janeiro, pelo jornal Última Hora. Danton Jobim (presidente da Associação Brasileira de Imprensa e diretor da UH) descera a lenha nos programas que veiculavam "casos de desgraça humana" e "a exploração sensacionalista da miséria", pedindo ao governo que censurasse a "televisão-espetáculo".

** Veja voltava à carga em 1969. Diz o estudo que a virada do ano não prometia, entretanto, grandes novidades nesse sentido, lamentou, uma vez mais, a revista: o Homem do Sapato Branco continuaria fazendo desfilar diante das câmeras "uma galeria de hermafroditas e marginais"; Dercy Gonçalves, "a título de caridade", seguiria apresentando "cancerosos e débeis mentais"; e autora de novelas Glória Magadan manteria em funcionamento a indústria de "lágrimas, drama, violência, emoção popular. Tudo elaborado mediante cuidadosas pesquisas de mercado" ("TV em 1969: O velho é novidade", 1/1/1969).

O autor nos mostra que a tradição dos domingos não é tão nova assim ? e, se temos de aturar sobras e dejetos no primeiro dia da semana, é porque isso vem de longe. Conta João Freire Filho:


O acirramento da dominical da "guerra de audiência" (a expressão data dessa época) entre Chacrinha e Flávio Cavalcanti ocasionava seguidas celeumas. Sem perder o ar intelectual, Flávio começou a usar certas armas do concorrente: o júri composto para avaliar músicas passou a julgar também "a comida mais gostosa", "o bebê mais bonito", "o português mais sofredor"; os maestros Chiquinho e Erlon Chaves disputaram o melhor arranjo para Coração de Luto, de Teixeirinha ? a canção (mais conhecida como "Churrasquinho de
mãe", graças, outra vez, à criatividade de Sérgio Porto) era uma das mais execradas por Flávio em sua antiga fase ("Flávio x Chacrinha: Este duelo é o vale-tudo da TV", Fatos e Fotos, 1/10/1970).


A exemplo do que hoje ocorre entre Faustão e Gugu, mostra-nos o autor:


Dizendo-se "copiado", Chacrinha partiu para o contra-ataque ? comprovou que uma fita com as emocionantes últimas palavras de um suicida, exibida por seu competidor mais direto, era uma farsa. Flávio admitiu o engodo, pondo a culpa numa certa Equipe 2001, especialista na venda de reportagens mundo-cão e em descobrir os podres dos artistas que se sentavam no banco dos réus de Quem Tem Medo da Verdade? ("Chacrinha denuncia fraude de Flávio", Amiga, 17/08/1971; "Flávio: Chacrinha fez o que eu faria", Amiga, 24/08/1971).


Agora vejamos o belíssimo extrato levantado por João Freire Filho: logo em seguida, no dia 29, último domingo de agosto de 1971, aconteceu o episódio que mexeu de vez com a suscetibilidade e os brios dos partidários da censura.


A disputada mãe-de-santo Dona Cacilda de Assis (que dizia receber o espírito do "Seu
Sete da Lira", um exu da Umbanda) transformou os estúdios da Globo e da Tupi em verdadeiros terreiros de macumba. "Embora as apresentações diferissem", relatou o Estado de S. Paulo (3/9/1971), "o espetáculo em si foi o mesmo: os umbandistas de ?Seu Sete? invadiram o palco (baianas, cantores, pessoas bem vestidas, em ?relações-públicas?…) num tumulto indescritível." A Censura qualificou a apresentação de "Seu Sete" de "baixo espiritismo, exploração da crendice popular e favorecimento da propaganda do charlatanismo"; a Igreja, por intermédio do secretário geral da CNBB, declarou que a "inclinação à transcendência do povo brasileiro" estava sendo utilizada por "indivíduos sem
escrúpulos, em atividades pseudo-religiosas" (Jornal da Tarde, 3/9/1971)


Ele prossegue:


Reza a lenda que a primeira-dama D. Cyla Médici caiu em transe, enquanto assistia ao programa (Costa et al., 1986, 249). Foi nesse contexto conturbado que Hygino Corsetti fez o pronunciamento que avinagrou o humor de Nelson de Rodrigues. O ministro chegou a ventilar a hipótese de cassar a concessão das emissoras que insistissem com o sensacionalismo" e a "baixaria"; no final, limitou-se a anunciar que o governo pretendia acabar com as transmissões ao vivo na televisão brasileira (com ou sem a presença de público no auditório), e que seria nomeada uma comissão interministerial com a responsabilidade de fixar, no prazo de um mês, normas de condutas para as emissoras ("Cassação", O Estado de S. Paulo, 10/9/1971; "TV perde programas ao vivo", O Estado de S. Paulo, 11/09/1971).

Antecipando-se às medidas governamentais, Globo e Tupi assinaram um protocolo de autocensura cuja validade se estenderia até a entrada em vigor do "Código de Ética da Televisão Brasileira", em estudos na área federal. Segundo o então diretor da Central Globo de Produção, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, o acordo firmado entre as duas emissoras com intuito de "eliminar os espetáculos de mau gosto" permitiria que impusesse "uma nova mentalidade aos programas de nível popular" (O Estado de S.Paulo, 3/9/1971).


Por essas e por outras, contrariando o Dr. Pangloss, vivemos no pior dos mundos possíveis quando se fala de TV. Que continuará, por mais quarenta anos, tão ruim como sempre. Pelo menos enquanto hordas e hordas de telespectadores derem atenção ao esgoto televisivo, ele existirá, reproduzindo-se por cissiparidade. A não ser que façamos como o Nelson Rodrigues dessa época gostava de sugerir: trocar o povo por outro povo.

(*) Repórter especial da Rádio Jovem Pan, professor da ECA-USP e do Unifiam (SP), membro do International Consortium of Investigative Journalists (
www.icij.org
)